O pacote “big bang” do ministro-banqueiro da Economia, Paulo Guedes, acertou em cheio o que ele chama de “andar de baixo”: trabalhadores e famílias que, hoje, sobrevivem do que recebem do auxílio emergencial. Além de reduzir o valor pela metade, o governo adotou novos critérios que, na prática, excluirão pelo menos 5,7 milhões dentre os atuais 67,2 milhões de beneficiários do programa, segundo dados oficiais.
Em julho, 4,4 milhões (6,5%) de domicílios brasileiros sobreviveram apenas com a renda do auxílio emergencial, apontou estudo publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Uma das maldades dos novos critérios é que nem todos os beneficiários receberão as quatro novas parcelas. O pretexto do desgoverno Bolsonaro é que a ampliação do benefício vai apenas até dezembro, portanto, apenas quem recebeu a primeira parcela em abril terá direito às cotas extras.
Os que começaram a receber entre maio e julho receberão uma parcela a menos, sucessivamente, até o pagamento, em dezembro, de apenas uma parcela aos que passaram a receber a partir de julho, quando se encerraram as inscrições no programa. A Medida Provisória anunciada pelo presidente Jair Bolsonaro na última quinta (3) ainda prevê que não ocorrerão novas inscrições para o recebimento do benefício.
Além disso, as regras relativas ao quantitativo de cotas para cada família também foram ajustadas. Segundo a MP, o recebimento do auxílio emergencial residual será agora limitado a “duas cotas por família”. Na redação da lei do auxílio de R$ 600, o recebimento do benefício era limitado a “dois membros da mesma família”.
A mãe solteira continua com direito a receber duas cotas. Mas na prática, caso outra pessoa elegível ao benefício seja da mesma família, ela não poderá mais receber, uma vez que o critério de duas cotas por família já terá sido satisfeito.
Quem está no cadastro do Bolsa Família voltará a receber o que tem direito pelo programa. Caso esse valor seja menor que R$ 300, apenas a diferença é que será paga via auxílio. Nos cinco meses iniciais do programa, os beneficiários deixaram de receber o Bolsa Família e recebiam 100% do auxílio.
“Eu sei que R$ 300 é pouco, mas para quem paga, que é o Brasil, é muito. Não podemos continuar nos endividando com quase R$ 50 bilhões por mês”, declarou singelamente Bolsonaro, como se estivesse negociando o valor da mesada do filho 04. Em seu socorro, o vice-presidente Hamilton Mourão, com o cinismo peculiar, apontou para onde vai, ao final, o dinheiro do auxílio: os patrões.
Nesta quarta (9), Mourão afirmou que o valor pornográfico de alimentos da cesta básica, como o arroz, “é uma questão da oferta e da procura”, e culpou o benefício pela inflação descontrolada no país. “Uma porção de gente comprando porque o dinheiro que o governo injetou na economia foi muito acima do que as pessoas estavam acostumadas, tanto que está havendo grande compra de alimentos e de material de construção”, admitiu placidamente o vice.
Guedes não pensava no controle inflacionário ao reduzir o valor do auxílio pela metade e adotar regras draconianas claramente voltadas a “enxugar” o número de pessoas elegíveis. Seu objetivo foi rebaixar em 67% o custo mensal do auxílio, que cairá para R$ 16,9 bilhões no período de setembro a dezembro, ante R$ 50,8 bilhões na fase anterior, entre abril e agosto.
Segundo os tecnocratas de Guedes, o custo total do programa de renda emergencial sairá a R$ 321,8 bilhões em 2020 – uma bagatela frente ao R$ 1,2 trilhão liberado para o sistema financeiro. A diferença obtida com as manobras para reduzir o custo mensal do auxílio, à custa do sofrimento de mais de um terço da população brasileira, deverá ter o mesmo destino.
Queda na pirâmide social
O auxílio de R$ 600 começou a ser pago em abril, após negociação do PT e partidos de oposição, que defenderam um piso de R$ 1,2 mil. Bolsonaro e Guedes sustentaram enquanto puderam que R$ 200 eram suficientes. Depois, tentaram se apropriar indevidamente do crédito pela adoção do valor.
Bolsonaro ainda tenta faturar alguns décimos de popularidade com a manobra vigarista, mas de lá para cá, houve erros no cadastramento dos requerentes, irregularidades e até denúncias de fraude no processo de pagamento. Milhões de brasileiros seguem sem receber o auxílio, e não mais o receberão.
“Isso [a redução do auxílio] só vai aumentar as desigualdades. Enquanto aperta para o povo, este governo afrouxa para os bancos, que desde o início da pandemia já receberam mais de R$ 1,2 trilhão em recursos. Esse é o governo que prometeu cuidar do povo?”, questiona a presidenta do PT e deputada federal Gleisi Hoffmann (PR).
A previsão da deputada é confirmada pelos pesquisadores. O resultado da manobra financista de Guedes e seu chefe, Bolsonaro, será o retorno de pelo menos 13,1 milhões de trabalhadores às faixas de renda D e E, formadas por famílias com renda mensal de até R$ 2,5 mil. Em julho, esse contingente havia saído do grupo das pessoas com renda per capita inferior a meio salário mínimo (R$ 552), movidas principalmente pelo auxílio de R$ 600.
“Como a mágica da melhora temporária na renda devido ao auxílio emergencial vai acabar, pelo menos 13 milhões de pessoas voltarão para as faixas mais pobres. Elas devem voltar para o estrato mais baixo já ao longo deste ano”, aposta o diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV Social), Marcelo Neri, ao ‘Correio Braziliense’.
Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados, avalia que o processo deverá ser mais perceptível no Nordeste e no Sudeste. “O agravante da piora na distribuição de renda que ocorrerá em 2021 é a deterioração do mercado de trabalho, com o aumento da base de assistência social hoje concentrada no Bolsa Família”, projeta.
“O aumento da desigualdade, com mais pessoas perdendo renda e retornando para as camadas mais pobres, vai prejudicar a retomada em 2021, especialmente via consumo das famílias. Desigualdade maior não ajuda o crescimento, e o padrão de consumo será em produtos básicos. Não haverá o salto de consumo que poderia ocorrer via crédito, porque a renda das pessoas não vai crescer”, explica o economista.
Na segunda semana de agosto, 12,9 milhões de pessoas estavam desempregadas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A taxa de desocupação subiu para 13,6% — bem acima dos 10,5% da primeira semana de maio, quando grande parte das pessoas ainda não saía de casa para procurar emprego.
A economista Alessandra Ribeiro, sócia da Tendências Consultoria, prevê que o desemprego chegará a 15,7% em 2021, mesmo com o Produto Interno Bruto (PIB) crescendo 3%. “O mercado de trabalho não vai ser capaz de absorver todas as pessoas”, argumenta a economista, observando que as classes D e E já representam quase 60% da população. “Com as pessoas perdendo o emprego, pelo menos 3,8 milhões de domicílios devem ser adicionados às faixas mais pobres.”
Jefferson Nascimento, coordenador de pesquisa da Oxfam Brasil, nota que a desigualdade, medida pelo Índice de Gini, vinha caindo desde 2001, mas voltou a crescer a partir da recessão de 2015, apesar de apresentar pequena variação em 2019. “E, agora, possivelmente, tornará a aumentar”, diz.
Para o economista Fernando Ribeiro, professor do Insper, é apenas “momentânea” a “calmaria institucional” que o governo tentou transmitir à sociedade ao encaminhar ao Congresso o projeto de reforma administrativa e a proposta orçamentária dentro do teto de gastos. Tudo porque, diz o economista, o principal motor do crescimento, o investimento, não deve reagir tão cedo.
“Há uma trava política que também atrapalha o processo de retomada. O risco fiscal é muito elevado e os investidores estão receosos, principalmente quando olham para a piora dos dados ambientais, que é o que vai pesar nas decisões”, explica.
Mais perdas para quem manteve o emprego
A perda brutal de renda também afetará os atingidos por outra Medida Provisória do desgoverno Bolsonaro. A MP 936, que permitiu a suspensão de contrato de trabalho e a redução de salário, incidirá diretamente sobre o cálculo do 13º salário a ser pago a trabalhadores urbanos, rurais e domésticos que possuem carteira assinada, sob o regime CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas), podendo reduzi-lo pela metade.
No início, quando a MP foi lançada, ela só permitia suspensão de contrato por até dois meses. Mas na medida em que a pandemia seguia, o governo estendia esse período. Primeiro para quatro meses e agora, mais recentemente, para até seis meses de suspensão do contrato. Até 31 de agosto, mais de sete milhões de acordos de suspensão já haviam sido firmados, segundo o Ministério da Economia.
O cálculo do 13º considera o valor do salário do mês em que o benefício é recebido, dividido por 12 (quantidade de meses do ano) e multiplicado pelo número de meses em que o trabalhador prestou serviços por mais de 15 dias. O problema é que as contas incluem as férias, como está previsto em lei, mas deixam de fora os meses de suspensão de contrato.
O trabalhador que teve contrato suspenso, mas recebeu a quantia usual da primeira parcela do 13º, paga entre fevereiro e novembro, deve se preparar. A segunda parcela trará todos os descontos, inclusive os acarretados pelos efeitos da MP 936.
“O empregado ainda sentirá os efeitos da crise mais uma vez no fim do ano com a redução proporcional do 13° salário e redução no período de férias futuras”, diz em nota, o advogado trabalhista Mourival Boaventura Ribeiro, sócio da Boaventura Ribeiro Advogados.
Da Redação