Nesta segunda-feira (9), Dia Internacional dos Povos Indígenas, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) apresentou denúncia contra Jair Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia. Com isso, ele pode se tornar o primeiro brasileiro réu no TPI, o principal órgão de Justiça das Nações Unidas.
A entidade acusa Bolsonaro de genocídio pela morte de 1.162 indígenas de 163 povos durante a pandemia de Covid-19. Também pediu à Corte que o enquadre por ecocídio, nova tipificação de crime contra a humanidade, sobretudo contra o meio ambiente.
Esta é a terceira denúncia contra Bolsonaro à justiça internacional. Uma foi apresentada no fim de 2019 pelo Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (Cadu) e Comissão Arns. Outra é assinada pelos líderes indígenas Raoni Metuktire e Almir Suruí, mas foi elaborada por um escritório de advocacia francês.
“A nossa compreensão é de que, desde então, o presidente agravou os seus atos em relação aos direitos socioambientais e dos povos indígenas. Agora não se fala mais em incitação, mas em genocídio”, detalha Eloísa Machado, advogada do Cadu que colaborou com a Apib.
O extenso documento de 148 páginas da entidade é o primeiro redigido por advogados indígenas. As sete pessoas da equipe jurídica, que inclui duas mulheres e dois brancos, trabalharam no texto por um ano, lideradas por Luiz Henrique Eloy Terena.
“Não foi por acaso que saímos da aldeia e fomos estudar”, afirmou Terena em entrevista ao El País. “Faz parte de uma estratégia de longo prazo do movimento indígena, ciente de que a luta não deve ser apenas com arco e flecha, mas com a caneta.”
O TPI foi criado com base no Estatuto de Roma, assinado em 1998, para julgar crimes de guerra, crimes contra a humanidade, de genocídio e de agressão de forma independente dos Estados. São considerados crimes contra a humanidade ataques sistemáticos à população civil, como extermínio, tortura, escravidão, apartheid e outras condutas.
Para os advogados da Apib, Bolsonaro comete tais crimes ao incentivar a invasão de terras indígenas por garimpeiros e madeireiros; contrapor essas atividades, ressaltadas como “contribuições à economia brasileira”, aos modos de existência indígenas; prometer liberar e legalizar o garimpo e não aplicar a legislação ambiental aos criminosos; não demarcar ou homologar terras indígenas; destruir a infraestrutura pública de garantia dos direitos indígenas e propagar a Covid-19.
“São fatos e depoimentos que comprovam o planejamento e a execução de uma política anti-indígena explícita, sistemática e intencional encabeçada pelo presidente Jair Bolsonaro, desde 1º de janeiro de 2019, primeiro dia de seu mandato presidencial”, diz o documento dos povos originários.
“Essa política afetou a vida, a saúde, a integridade e a própria existência dos povos indígenas no Brasil, com especial atenção para povos isolados ou de recente contato, os Mundukuru, os que vivem na Terra Indígena Yanomami, os Guarani-Mbya e Kaigang, os Guarani-Kaiowá, os Tikuna, os Guajajara e os Terena”, prossegue a denúncia.
“Isso mostra que há, sim, indícios de crime de genocídio, já que esses eventos colaboram para a destruição dos povos, aumento da violência e morte”, afirmou a advogada Samara Pataxó em entrevista à DW Brasil.
“A nossa expectativa é causar um impacto político e social. Nós, indígenas, temos medo de retaliações, de ataques, o que se tornou comum neste governo. Mas esperamos que a sociedade veja que nós criamos formas de reagir e que nos apoie”, comenta Pataxó. “Esperamos também que sirva de incentivo a outros grupos que estão sendo atacados.”
Crimes de genocídio e contra a humanidade
Desde o início do mandato de Bolsonaro, a média do desmatamento na Amazônia cresceu 70% em relação à registrada entre 2009 e 2018 pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Entre agosto de 2019 e julho de 2020, a floresta perdeu uma área de 11 mil km², a maior taxa registrada em 12 anos.
“A disputa pelo território é a base sociológica da violência praticada contra os povos indígenas e suas lideranças”, afirma o documento enviado ao TPI. “A política anti-indígena em curso no Brasil hoje é dolosa. São atos articulados, praticados de modo consistente durante os últimos dois anos, orientados pelo claro propósito da produção de uma nação brasileira sem indígenas, a ser atingida com a destruição desses povos, seja pela morte das pessoas por doença ou por homicídio, seja pela aniquilação de sua cultura, resultante de um processo de assimilação”, alegam os advogados.
No Brasil vivem cerca de 850 mil índios, pertencentes a 305 povos originários, 114 povos isolados e de recente contato. Falantes de mais de 270 línguas diferentes, eles habitam em torno de 1,3 mil territórios – apenas 408 deles formalmente reconhecidos pelo Estado. Quando tomou posse, Bolsonaro suspendeu todos os processos de demarcação.
O ecocídio é mencionado na denúncia da Apib com o intuito de “estimular o debate internacional para que seja tipificado” este crime contra o meio ambiente recém-definido por um comitê de 12 juristas. O objetivo é que se junte aos quatro crimes contra a humanidade que o TPI está julgando. O jurista indígena afirma que sua denúncia é “uma resposta à altura da opressão sofrida pelo nosso povo”.
Após a apresentação da denúncia, o trâmite do processo se dá na Procuradoria do tribunal internacional, que vai analisar se abre ou não investigação contra Bolsonaro. “No TPI vale o Princípio da Complementariedade: a responsabilidade primeira para punir indivíduos que cometeram crimes de altíssima gravidade é do Estado. Se o Estado não pode, ou não quer punir, o TPI tem jurisdição para julgar”, explica André de Carvalho Ramos, professor de Direito Internacional da Universidade de São Paulo (USP).
O Brasil reconheceu em 2002 a jurisdição da corte internacional, o que, segundo o entendimento de Ramos, possibilita a entrega de um brasileiro nato caso haja uma ordem do TPI. “Nesses crimes de alta gravidade não há qualquer tipo de imunidade”, diz o professor, mencionando o Estatuto de Roma.
Para os advogados que recorrem à instância internacional, não se trata de ganhar a ação. “A gente quer que Bolsonaro pare de promover crimes contra povos indígenas, que cesse a perseguição, o extermínio, essa política de destruição ambiental”, finaliza Eloísa Machado.
Da Redação