Criado pela Medida Provisória 132/2003, posteriormente transformada na Lei n° 10.386/2004, o Bolsa Família é um dos mais bem-sucedidos programas de transferência de renda do mundo, e foi o caminho por onde o Brasil saiu do Mapa da Fome das Nações Unidas. Também tornou-se um dos maiores alvos de ataques de um então deputado obscuro do baixo clero do Congresso, que se orgulhava de ter sido o único parlamentar a votar contra o Fundo de Combate à Pobreza, em 1999.
Alçado à condição de presidente, Jair Bolsonaro agora planeja mudar o nome do programa e relançá-lo como forma de obter a reeleição em 2022. Não que ele se importe com os mais pobres do país. No Orçamento da União de 2020, por exemplo, a verba destinada ao programa caiu de R$ 32,5 bilhões para R$ 29,5 bilhões, e a fila para o recebimento do benefício, zerada ao fim do governo de Dilma Rousseff, voltou a crescer.
Em março, foram cortados 158 mil beneficiários do Bolsa Família, 61% no Nordeste. Os governadores recorreram ao Supremo Tribunal Federal (STF), que na semana passada confirmou a decisão do ministro Marco Aurélio de proibir novos cortes enquanto durar a pandemia. Em junho, o governo tentou tirar dinheiro do Bolsa Família para gastos com publicidade do Planalto.
No início da pandemia do novo coronavírus, Bolsonaro e seu ministro da Economia, Paulo Guedes, pressionados por demandas para socorrer os trabalhadores mais vulneráveis, anunciaram que pagariam apenas R$ 200 a título de auxílio emergencial para os informais. Foi preciso que o PT e outros partidos de oposição lutassem para que o valor chegasse a R$ 600.
Em julho, novamente pressionados, os dois cúmplices anunciaram a prorrogação do auxílio por mais dois meses. E então surgiu a ideia da criação de um novo programa de transferência de renda, colocando em xeque a bandeira do liberalismo econômico que Bolsonaro levantou na campanha presidencial de 2018 para conquistar as oligarquias. Obcecado pela reeleição, o presidente agora tenta esquecer o que disse. Tarde demais.
Crítico contumaz
Os comentários mais duros de Bolsonaro contra o Bolsa Família ocorreram durante sessões ordinárias da Câmara dos Deputados. Em agosto de 2010, por exemplo, o então deputado federal pelo Rio de Janeiro argumentou que o programa seria uma espécie de moeda de troca, a fim de comprar votos no Nordeste.
“Se, hoje em dia, eu der R$ 10 para alguém e for acusado de que esses R$ 10 seriam para a compra de voto, eu serei cassado. Agora, o governo federal dá para 12 milhões de famílias em torno de R$ 500 por mês, a título de Bolsa Família definitivo, e sai na frente com 30 milhões de votos”, afirmou em discurso no Plenário. Logo depois, completou: “Disputar eleições num cenário desses é desanimador, é compra de votos mesmo. Que bom se o eleitor tivesse o mínimo de discernimento!”.
Em fevereiro de 2011, Bolsonaro chegou a cogitar a hipótese de colocar um fim ao programa: “O Bolsa Família nada mais é do que um projeto para tirar dinheiro de quem produz e dá-lo a quem se acomoda, para que use seu título de eleitor e mantenha quem está no poder”, disse em discurso no plenário da Câmara. E defendeu, “se não um ponto final, uma transição a projetos como o Bolsa Família”.
À mesma época, no mesmo plenário, ele também afirmou que o fim ou transição do programa eram necessários porque “cada vez mais, pobres coitados, ignorantes, ao receberem Bolsa Família, tornam-se eleitores de cabresto do PT.”
Em julho de 2011, referiu-se ao programa como assistencialista. “Alguém tem alguma dúvida que programas assistencialistas, como o Bolsa Família, que acostuma o homem à ociosidade, são um obstáculo para que se escolha um bom presidente?”, questionou ao responder perguntas dos leitores da revista ‘Época’.
Em diversas ocasiões, o deputado defendeu não a extinção do programa, mas uma porta de saída para ele. “Eu não admito o Bolsa Família como proposta permanente de ajudar o pobre. Tem que ser transitória. Tem gente que está há nove anos no Bolsa Família e não quer ser empregado”, afirmou em entrevista ao portal ‘UOL’ em 2011.
Em 2012, na Record News, ele voltou a afirmar que o programa deveria ser temporário, e falou novamente sobre a compra de votos. “Se eu der R$ 20 pra você votar em mim, posso perder meu registro, ser cassado. Agora o governo dá para 10 milhões de família de forma vitalícia, R$ 40 bilhões por ano, e tudo bem”.
O então deputado chegou a lamentar as dificuldades para contratar serviçais por causa do programa. “O Bolsa Família é uma mentira, você não consegue uma pessoa no Nordeste para trabalhar na sua casa. Porque se for trabalhar, perde o Bolsa Família.”
Em 2017, como pré-candidato, afirmou que “não partiria para a demagogia” em busca de votos. Ele teceu críticas ao programa quando visitou Barretos (SP), em agosto, quando já postulava o cargo. “Para ser candidato a presidente tem de falar que vai ampliar o Bolsa Família, então vote em outro candidato. Não vou partir para demagogia e agradar quem quer que seja para buscar voto.”
Apenas em 2018, já como candidato, ele começou a suavizar o discurso, mas mencionando fraudes. “Não quero acabar com Bolsa Família, mas tenho certeza de que metade deixará de existir porque ou é fraude ou tem como inserir no mercado de trabalho. Essa é a minha política de distribuição de renda”, afirmou em Roraima.
Após a posse, a metamorfose se completou, e Bolsonaro chegou a prometer um 13º salário para os beneficiários do Bolsa Família, dizendo que acabar com o benefício seria um “ato de desumanidade”. Em vídeo gravado ao lado de dois deputados recém-eleitos pelo PSL, Bolsonaro contou que a sugestão foi feita pelo seu vice, o general Hamilton Mourão (PRTB), que poucas semanas antes havia chamado de “jabuticaba” o 13º salário e dito que o Bolsa Família era uma “mochila nas costas de todo empresário”.
Quem tentou se apropriar de R$ 83 milhões do Bolsa Família destinado ao povo pobre do Nordeste para financiar fake news não pode ter boas intenções com o programa
Em junho, o senador Jean Paul Prates (PT-RN) afirmou em pronunciamento que a mudança no programa anunciada por Guedes é motivo para a sociedade ficar alerta. Segundo ele, o Bolsa Família “é um marco civilizatório do qual todos os brasileiros devem se orgulhar, é um programa aplaudido pelo mundo inteiro pelo seu poder de minorar as desigualdades que, infelizmente, ainda são a marca do nosso país”.
Jean Paul Prates advertiu que os planos para o Bolsa Família não estão claros e criticou a possibilidade de o programa ser vinculado à Carteira Verde Amarelo para atender trabalhadores informais. Para o senador, esses trabalhadores precisam de ações sérias e concretas, que não podem servir de pretexto para fragilizar o Bolsa Família.
“Quem tentou se apropriar de R$ 83 milhões do Bolsa Família destinado ao povo pobre do Nordeste para financiar fake news não pode ter boas intenções com o programa. O Ministério da Economia não é o mais adequado para mexer num programa de assistência social, não tem técnicos qualificados para isso. Pior, nos últimos tempos tenho até duvidado de que tenha técnicos qualificados para trabalhar com economia em si”, criticou o senador, concluindo: “Ministro Paulo Guedes, fica aqui o nosso recado: tire as mãos do Bolsa Família”.