“Quero lhe manifestar minha proximidade espiritual e o encorajar pedindo para não desanimar e confiar em Deus”. A troca de cartas entre o Papa Francisco e Lula ocorreu ainda durante o cárcere político do ex-presidente. Mesmo preso ilegalmente, em uma trama persecutória que chamou atenção do mundo, Papa e Lula iniciaram um diálogo que culmina, nesta quinta-feira (13), no primeiro encontro presencial entre eles.
Mais do que proximidade espiritual, os dois líderes mundiais dividem carisma e admiração mútua: a trajetória e a visão de mundo de ambos têm, em sua centralidade, ideais humanistas, como o combate à fome, à intolerância e às consequências nefastas do neoliberalismo que transforma pessoas inevitavelmente em mercadoria.
Tal sistema, somado à onda conservadora, amplia cada vez mais o terror resultante do capitalismo em sua face mais cruel, a que aumenta as desigualdades, empobrece nações e macula a alma dos desamparados. De acordo com dados da ONU, divulgados em 2018, 880 milhões de pessoas famintas no mundo.
No que tange à concentração de renda, o Catar é o país mais desigual, seguido do Brasil, onde 1% da população ganha 33,8 vezes mais que os 50% mais pobres.
Para o teólogo Leonardo Boff, um dos principais interlocutores do ex-presidente, o pontífice quer entender as iniciativas e políticas sociais dos governos de Lula, cujos efeitos tiraram o Brasil do Mapa da Fome das Nações Unidas pela primeira vez na história.
Segundo a FAO, órgão da ONU para Agricultura e Alimentação, o Brasil reduziu em 82% a população em situação de subalimentação, entre 2002 e 2012.
Além de tornar o combate à fome uma política de Estado, a ONU destacou outras iniciativas de Lula que tornaram o Brasil referência mundial. Foram 22 milhões de empregos criados, aumento real de 77% no salário mínimo, merenda escolar distribuída diariamente a 43 milhões de crianças e jovens e a criação do Bolsa Família, o maior programa de transferência de renda do mundo.
O encontro entre o líder religioso e o presidente com a maior aprovação popular já registrada (87%) acontece em momento turbulento do país. Desde o golpe de 2016, o Brasil tem recuado com espantosa velocidade no que diz respeito às políticas sociais, com a ameaça iminente de retornar ao Mapa da Fome, e à concentraçãoc de renda, com recorde atrás de recorde. São resultados inegáveis da política predatória neoliberal implantada no país.
Dados revelados pelo IBGE comprovam que, entre 2016 e 2017, a pobreza da população brasileira passou de 25,7% para 26,5%. Já os extremamente pobres, que vivem com menos de R$ 140 mensais, saltaram de 6,6%, em 2016, para 7,4%, no ano seguinte.
Para além da fome e desigualdade social, a proteção ao meio ambiente e o combate à intolerância também são pautas que devem emergir durante o encontro. É o que sugere o documento referente ao Sínodo da Amazônia, apresentado pelo Papa nesta quarta-feira (12). “Na Amazônia aparece todo tipo de injustiça, destruição de pessoas, exploração de pessoas em todos os níveis. E destruição da identidade cultural”, afirmou, sem mencionar diretamente o embaixador da destruição da floresta amazônica, Jair Bolsonaro.
O atual e despreparado presidente da República gera outra preocupação no religioso: a intolerância, que foi institucionalizada e transformada em política de Estado pelo ex-militar. Bolsonaro é a versão subserviente de outras lideranças mundiais, como Donald Trump, que, a partir de um discurso macartista, recheado de ódio, sectarismo e nacionalismo, manipulam o povo enquanto destroem o mundo, matam e violentam os pobres.
É quase utópico, mas é impossível não sonhar com um mundo em que esses e tantos outros disseminadores de ódio viessem a comungar das ideias de Luiz e Francisco. Dois latino-americanos que, acima da política e da religião, se comprometeram com o ser humano e com o amor cristão.
Jilmar Tatto é ex-secretário de Mobilidade e Transportes das gestões de Fernando Haddad e Marta Suplicy, foi deputado federal e é secretário Nacional de Comunicação do PT
*Artigo publicado originalmente na Revista Fórum