Diante de um Teatro Dante Barone da Assembleia Legislativa lotado, com muitas pessoas sentadas nos corredores ou acompanhando de pé, o escritor e teólogo Leonardo Boff ministrou no início da noite desta segunda-feira (14) uma aula pública sobre o atual momento da democracia brasileira.
Uma das lideranças populares mais próximas do ex-presidente Lula, a quem visitou na semana passada, Boff destacou em Porto Alegre a importância de analisar conjuntura atual a partir de três pontos: o rompimento do pacto social, a influência de grandes corporações e dos EUA e o ataque à soberania nacional.
A aula pública foi mais de uma série de eventos que vem sendo realizados no Estado nas últimas semanas pela união de partidos do campo da esquerda e por movimentos sociais. Ela foi precedida por falas dos petistas Henrique Fontana e Miguel Rossetto, de Manuela D’Ávila (PCdoB), Pedro Ruas (PSOL) e representantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).
Boff iniciou sua fala relembrando a visita que fez ao ex-presidente Lula no dia 7 de maio, quando este completou 30 dias preso na Superintendência da Polícia Federal, em Curitiba. Foi a primeira visita autorizada ao ex-presidente para além de sua família, advogados e parlamentares com mandato em vigor (que utilizaram de uma prerrogativa do cargo para visitá-lo).
O teólogo contou que a primeira coisa que os dois fizeram ao se verem foi se abraçarem e chorarem, porque Lula “tinha saudade de gente”. “Ele está muito bem, com a mesma cara e humor que conhecemos. Agora, profundamente indignado, principalmente com o Moro”, contou Boff, destacando que a visita, que deveria durar apenas 1h, acabou durando 1h30.
Assim como havia dito logo após a visita, Boff repassou a mensagem de que Lula ainda é “candidatíssimo” à presidência da República e que “quer fazer muito mais do que fez”. Segundo o teólogo, Lula tem aproveitado o tempo na prisão para refletir sobre os erros e acertos do passado e teria chegado a conclusão de que o cárcere é um “designo”, uma situação semelhante ao que passaram passaram Gandhi, na Índia, e Nelson Mandela, no Áfica do Sul, mas que ainda pretende fazer muito pelo Brasil.
Em um segundo momento, Boff fez uma análise em três pontos da conjuntura atual do Brasil. O primeiro deles é de que o pacto social que precedeu e culminou na Constituição de 1988 foi rompido com o golpe contra a ex-presidenta Dilma. Segundo ele, a carta magna é fruto de um momento histórico em que ocorreu um acerto das “classes que olhavam para frente” e que se configurava um tempo de otimismo para os movimentos progressistas. Contudo, as modificações feitas de forma “arbitrária” por um governo “ilegítimo” representariam o fim desse pacto.
O segundo ponto é de que não é possível pensar o Brasil apenas a partir do Brasil, pois é necessário compreender a influência das grandes corporações e dos Estados Unidos nos acontecimentos mundiais. Lembrando o historiador Moniz Bandeira, destacou que o objetivo dos EUA é ter um “império total”, que afeta todas as áreas de influência e atua para desestabilizar os governos que não se alinham à sua lógica imperial, se não mais apoiando golpes militares, mas golpes parlamentares, como o ocorrido no Brasil.
O terceiro ponto é o movimento de liberação da economia, buscando sempre mais espaços para o mercado, que não mais teria como objetivo a privatização dos bens e serviços públicos, mas a desnacionalização dos recursos nacionais, o que se manifesta, não só pela onda de privatizações que vieram e foram propostas após o golpe, mas também com a venda de terras para o agronegócio global. Segundo Boff, está ocorrendo um “assalto a terras na Amazônia”.
Essa desnacionalização reflete-se então no ataque à soberania nacional e teria, por objetivo, produzir uma “recolonização do Brasil”, voltando a reduzir o papel do País a mero exportador de commodities. “Nos relegam a uma posição marginal, à exportação de coisas que eles já não têm mais”, disse, destacando ainda o interesse internacional nas reservas de água potável brasileiras, em especial o Aquífero Guarani.
Combate à desigualdade
Em um terceiro momento de sua aula pública, Boff ressaltou a necessidade de união para o combate à desigualdade. Citando o economista americano Joseph Stiglitz, destacou que atualmente há um 1% de super ricos no mundo que controlam a maior parte de toda a riqueza mundial e que 10% desses 1%, controlam 95% das “vias do capitalismo financeiro mundial”.
Citando o sociólogo e ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Jessé de Souza, destacou que, no Brasil, a maior parte das riquezas e a política são dominadas por uma elite que de 71 mil super ricos, que representam menos de 0,05% da população, seriam os responsáveis pelo golpe “em conluio com o império”.
“Nós estamos numa situação como nunca houve. Nunca houve uma crise tão grave como essa que atinge os fundamentos das nossas relações sociais. Nunca vimos tanto ódio”, disse, destacando que este ódio é o mesmo que a elite da Casa Grande dos tempos coloniais desferia aos escravos e que se transformou em ódio às camadas populares na atualidade.
O teólogo salientou que é precisar buscar um pacto social mínimo sem o qual uma sociedade não pode viver. “Vivemos em uma sociedade de lobos, com os grandes devorando os pequenos”, disse. “As classes dominantes fazem um conluio contra o povo porque não tem projeto de país, tem um projeto para eles”.
Boff avaliou que o cenário atual “não é uma tragédia”, mas sim uma grande crise, de poder e civilizatória, que remete sim ao tempo em que a “Casa Grande dominava”, mas, como toda crise “purifica”, é também uma oportunidade para um “salto de qualidade”. “Como as crises que as pessoas passam, mas superam e retomam a vida, recuperando os valores do cotidiano, como estar com a família, tomar uma cerveja”, disse.
O teólogo finalizou dizendo é que preciso a construção de uma frente ampla unindo todos os partidos progressistas e os movimentos sociais para pensar para frente e não recuperar o passado, buscando a refundação do Brasil com outras bases e mirando outro estágio civilizatório, e não o prolongamento da dependência, como caracterizou a alternativa proposta pelas forças de direita.
A despedida de Boff foi seguida pelo canto de “Olê, olê, olê, olá, Lula, Lula” de grande parte da plateia.
Depois da aula pública, o escritor autografou o seu novo livro “Brasil: concluir a refundação ou aprofundar a dependência”.
Da CUT