“A democracia no Brasil é um grande mal-entendido”, disse certa vez Sérgio Buarque de Holanda, escritor de obras clássicas de interpretação do Brasil. O que ele queria dizer ao pronunciar a frase? O nosso autor clássico remetia a duas questões principais.
Em primeiro lugar, a constatação que na história do Brasil a interrupção da ordem democrática sempre foi mais a regra que a exceção. Na breve história republicana apenas seis constituições foram escritas, duas das quais em plena ditadura (1937 e 1967), e, após a clivagem de 1930, apenas cinco presidentes eleitos cumpriram o mandato em prazo integral (Dutra, Juscelino, FHC, Lula e um mandato de Dilma).
Depois, as nossas classes dominantes, nem mesmo em processo de formação, jamais cultivaram virtudes revolucionárias e se alinharam invariavelmente aos ditames daquilo que Marx chamava no século XIX de “partido da ordem”.
Por consequência, plasmou-se no Brasil uma república desprovida de “pais fundadores”, representativos da unidade entre povo e sentimento nacional, a exemplo, inclusive, de outros países vizinhos latino-americanos. Em vez de uma guerra civil conduzida por um libertador, a exemplo de Simón Bolívar, a independência brasileira resultou de uma articulação transada de superestrutura, na qual se afastou de cena o domínio colonial português, mas ao talante da continuidade da corte.
Tais são os pontos mais salientes e renitentes da miséria política do autoritarismo de raiz brasileiro, bem como uma indeclinável vocação de solucionar os conflitos populares cotidianos pela via da repressão policial.
Assim, no Brasil não houve uma revolução burguesa, sequer uma revolta de libertação nacional. Parafraseando Florestan Fernandes, a “revolução burguesa” entre nós não se deu pela burguesia nacional, nem pela cultura nacional-popular, mas pelo capital monopolista. Neste sentido, a burguesia brasileira é absolutamente sem credo. Esta via heterodoxa de realizar a transformação capitalista requisitou, no plano político, sucessivos regimes autoritários – o penúltimo dos quais a ditadura civil-militar (1964-1985).
Por tudo isso, o golpe branco do Impeachment da presidenta Dilma Rousseff esteve longe de ser uma espécie de “raio em céu azul”. Pelo contrário, deita fundas raízes na história brasileira. O normal da regra retornou. Chegou ao poder o regime de neoliberalismo ortodoxo de Temer e seus asseclas – conhecidos caciques partidários da tradicional elite política.
Embora o Brasil não seja uma ditadura (algumas liberdades civis e políticas permanecem em vigor) e não esteja descartada uma evolução do processo nesta direção – inclusive a da ditadura militar – já não pode se afirmar que o Brasil viva um regime de democracia plena. Talvez seja melhor defini-lo como uma semidemocracia, como bem definiu o sociólogo Marcelo Zero.
São muitas as novidades do golpe de Estado do Impeachment brasileiro de 2016. Antes, a exceção se generalizava nos episódios de instauração de regimes autocráticos e ditaduras militares – sendo, portanto, de mais fácil identificação. Atualmente, não tem sido mais necessário haver a interrupção abrupta e formal dos institutos universais do Estado de Direito para que a exceção possa ir se generalizando e molecularmente ganhando espaços no aparelho de Estado e na sociedade civil.
Neste sentido, tem sido decisivo o papel do poder judiciário e os processos movidos contra o ex-presidente Lula são emblemáticos. No processo contra Lula, várias práticas forenses de acusação vêm reintroduzindo perigosamente lógicas semelhantes à do amigo/inimigo schmittiano, uma das quais identificadas pela defesa do ex-presidente como “métodos de lawfare”, ou seja, de “uso das leis e dos procedimentos jurídicos como arma de guerra para perseguir e destruir o inimigo”.
Socialmente, sempre, o judiciário brasileiro se caracterizou – com as exceções de praxe -, como um segmento das classes dominantes que se comporta como um estamento oligárquico. Contudo, apenas a remissão histórica é insuficiente para entender o que se passa em nosso poder judiciário, hoje.
Vivemos um momento da maior gravidade. O pacto da constituição de 1988, que permitiu trinta anos de relativa estabilidade democrática ao país e revezamento dos partidos no poder, especialmente o PT e o PSDB, está sendo aceleradamente rompido. A aposta projetual do golpe é construir uma espécie de democracia sem trabalhadores, no qual o protagonismo da esquerda será reduzido a um papel meramente decorativo.
Estão rasgando a constituição brasileira e quem mais sofre são os trabalhadores. A história do Brasil no século XX, como de resto no mundo, pode ser interpretada como um complexo processo de constitucionalização dos direitos do trabalho. Sob Temer, o sinal se inverteu e o processo passou a ser de desconstitucionalização.
Começou com a assim chamada Emenda Constitucional 95, que aboliu na prática as vinculações constitucionais de saúde, educação e assistência social. Prosseguiu na reforma trabalhista, que produziu uma reforma estrutural no mercado de trabalho brasileiro, precarizando-o em níveis radicais. A última pá de cal do processo de desconstitucionalização será a virtual aprovação da reforma da previdência.
Mas, apesar de toda essa demonstração de força, o golpe não deu certo. Faltou combinar com o povo brasileiro.
Em síntese, qual era a ideia do golpe? A ideia era implantar um governo de prazo limitado (dois anos), encomendado a fazer o trabalho sujo – construir a nova institucionalidade autoritária de “paraíso burguês” neoliberal – e entregar o poder, em 2018, a um presidente eleito do mesmo bloco – de preferência do PSDB. As eleições de 2018 funcionariam como uma espécie de detergente do golpe. Neste sentido, o golpe brasileiro foi uma bem arquitetada “doutrina de choque”. Que seria isso? Nos termos da escritora Naomi Klein, glosando um ensaio de Milton Friedman, “somente uma crise –real ou pressentida– produz mudança verdadeira. Tão logo uma crise se instalava, o professor da Universidade de Chicago defendia que era essencial agir rapidamente, impondo mudanças súbitas e irreversíveis”. Assim foi feito no Brasil.
A situação atual de estagnação econômica (perspectiva de crescimento de 1% em 2017), antecedidos por dois anos de grave recessão (2015 e 2016 de perda de 8% do PIB), provocou efeitos inevitáveis no campo da política. À esquerda, especialmente, a popularidade do ex-presidente Lula, voltou a crescer avassaladoramente. Participei das caravanas do ex-presidente Lula no Nordeste, em Minas Gerais e no Rio de Janeiro. Impressionante.
Em todo lugar do Brasil, as pessoas mais humildes, o sertanejo do nordeste, o garçom de um hotel no Rio de Janeiro, um jovem estudante da baixada fluminense, todo mundo corre, com um sorriso ou os olhos lacrimejando, ao abraço do ex-presidente. Se Lula já era grande, as perseguições e o deserto de alternativas políticas críveis do regime do golpe o tornou ainda maior. Uma verdadeira lenda viva.
O atual momento brasileiro é de encruzilhada histórica. Ou os golpistas dobram a aposta e, em definitivo, cassam a candidatura do ex-presidente Lula, ou serão dobrados por uma derrota eleitoral acachapante. As cartas do jogo histórico estão na mesa. Nele, estão sendo decididas as principais determinações da história brasileira pelos próximos anos e décadas.
Lindbergh Farias é líder da bancada do Partido dos Trabalhadores no Senado.
Publicado originalmente em JornalGGN.com.br