A estrutura de poder no Brasil possui profundas bases no processo escravista que se desenvolveu no país até o Século XIX. Como último país a abolir a escravidão, os efeitos desta relação política, econômica e social se estendem até hoje na vida de cada homem e cada mulher negro/a desta terra.
Inicio este texto com esta nota, pois considero que estamos na era do cinismo factual, do país que contesta qualquer ação afirmativa que esteja destinada a reparar a enorme dívida histórica que este país possui com a população afrodescendente. “Que dívida? Eu nunca escravizei ninguém na minha vida”, disse o homem branco mediano, que com muita tranquilidade nega ser beneficiado pela estrutura de poder branca que ainda persiste no país (e ainda se elege Presidente).
Entre os Marinhos, Safras, Moraes, Moreiras Sales, Camargos, Villelas, Maggis, Aguiars, Batistas, Odebrechts, Civitas, Setúbals, Igels, Penidos, Feffers e Lemmans estão os meninos mimados que infelizmente governam a nação. Quinze Famílias brancas, Homens Brancos, Masculinidades Brancas, comandando um país que nos primeiros dias de 2019 já registrou 126 Feminicidios além de 67 tentativas, após intensa campanha que teve como alvo principal as minorias políticas. O poder brasileiro é dominado por esta cadeia de privilégios, que personificada vive ramificando suas raízes pela política, transferindo o poder de pai pra filho (no masculino, mesmo), ao mesmo tempo em que endossa uma política de morte que tem como função não deixar que negros, mulheres, LGBT’s, sem-terra, sem-teto o obriguem a se levantar da cadeira.
Aprendi que pra lavar roupa da rua, primeiro se precisa lavar a roupa de casa. E considerando que os partidos enquanto instâncias de disputa da institucionalidade reproduzem as características e as relações de poder vigentes na sociedade, considero crucial lançarmos olhar sobre o Processo de Eleições Diretas (PED), que irá escolher a próxima direção partidária. Uma eleição interna em meio a um cenário nacional que criminaliza o partido e seus militantes, com ameaças a integridade física e fake news que buscam difamar os seus membros. Nosso principal líder preso, multas, dívidas de defesa, o partido não atravessa seu melhor momento, mas respira bem e promete fortes sinais de recuperação. A imagem de Haddad enquanto liderança desponta e aproveitar esse ciclo será muito importante para os próximos 4 anos. Enfrentar o governo Bolsonaro e os seus desmontes, nos orientou Lula.
Nesse cenário de dificuldades e colocadas às devidas questões, quero refletir fraternalmente e sinceramente sobre as nossas direções partidárias, o poder à moda brasileira e a questão racial e de gênero, o que no fundo é uma reflexão sobre a nossa capacidade de colocar a mão na cabeça e abençoar figuras que quebrem o padrão de comando estabelecido pelo país.
A Bahia, enquanto estado mais negro fora da África, que apresenta 51,8 % de sua população de Mulheres Negras, precisa e tem todas as condições de comandar a reflexão sobre o perfil de quem ocupa a cabeça das nossas direções partidárias. E este não é um debate apenas sobre identidade, é um debate de como quebrar a estrutura de legitimação que se transfere de homens brancos para homens brancos e em raríssimas (quase inexistente) vezes repousa a mão sobre um homem negro.
A renovação partidária, precisa ser compreendida não como um favor prestado a minorias, mas como uma divida histórica de comando a quem melhor compreende o que é ser trabalhador/a nesse país. Transições geracionais são cruciais para a renovação, mas há um processo de embranquecimento (e de machismo) que precisa ser quebrado de forma que o Partido dos Trabalhadores realmente tenha a cara da massa trabalhadora deste país, na perspectiva da representatividade e da construção de instâncias pautadas nos valores das comunidades negras de solidariedade e resistência.
“Numa sociedade racista, não basta não ser racista. É necessário ser antirracista.”, nos apresenta a brilhante Angela Davis, ela mesma líder do Partido Panteras Negras e candidata a Vice-Presidente dos EUA. A genialidade da icônica frase de Davis é nos apresentar uma chamada de orelha aos que sempre ocuparam o poder: para ser antirracista é preciso abrir mão de privilégios, quebrar a cadeia de transferência de poder, ser “companheiro”, ser “companheira” para os/as negros/as que ousam disputar este espaço.
Para além dos nomes que se apresentam, ou irão se apresentar a disputa, chamo a atenção para o fato de que em 39 anos de partido na Bahia, nenhuma mulher negra ou homem negro dirigiu o Diretório Estadual do PT-BA. Isso é um fato histórico, comprovado, palpável. Não podemos fugir dele e é preciso que este deixe em cada um de nós essa insólita sensação de constrangimento, que crie em cada um a raiva, nos moldes que Audre Lorde nos orienta: “a raiva da exclusão do privilégio inquestionável, de distorções raciais, do silêncio, maltrato, estereótipo, defensividade, errar nomes, traição e cooptação.”
“Mas não temos nomes”. Contesto. Em nossas fileiras, diversos negros e negras tem se debruçado, dedicado suas vidas e capital intelectual. E mesmo que não o tivéssemos, por que não o temos? Como se forma um militante, como se forma politicamente alguém para chegar a capacidade de comando partidário? Considerando que as mulheres negras convivem com triplas jornadas de trabalho, com todos os impactos da intersecção do machismo e racismo, com a cobrança de provar a todo momento a sua capacidade, usar o discurso de ausência de nome, na verdade nos coloca diante a uma falha, a uma incapacidade nossa. Temos tornado o PT um espaço frio para a militância negra?
A contribuição que trago nesse texto, nem de longe se constitui em um erguer de muros, mas um chamado a reflexão sobre Empoderamento. Na compreensão de Patrícia Hill Collins, Joice Berth e tantas outras que apresentam este como um movimento de resposta interna a estímulos externos. Há uma divida com a militância negra a ser paga. Ela existe. Um salve aos que (um dia) tiverem a coragem.
Enquanto isso se faz necessário reforçar o quanto a questão racial e de gênero precisa ter centralidade nesta próxima disputa. Campanhas encabeçadas por brancos, precisam se comprometer em distribuir o poder com o olhar racial, analisar em que posição estão os negros/as que estão em suas fileiras de luta, ou de fato abandonar o caráter antirracista, o que não é uma opção para este Estado que tem encabeçado e é o que melhor tem se posicionado em relação as questões afirmativas e políticas de igualdade racial.
Que esse texto, desperte em nós a vontade de construir outros 39 anos de PT. Mais negro, mais feminino, mais LGBT, mais popular.
Lula Livre Já.
Luana Soares é membro da Executiva Municipal do PT-SSA. Estuda questão racial e feminismo.