Para qual tipo de normalidade as sociedades modernas pretendem voltar em um eventual cenário pós-pandemia? O questionamento foi levantado pelo ex-presidente Lula, na abertura do seminário Cooperação multilateral e recuperação regional pós-Covid-19, nesta quinta-feira (18), em Madrid, na Espanha. Não poderá ser para um mundo onde impera a miséria, defendeu o petista. No evento, que contou com o ex-presidente espanhol José Luis Rodríguez Zapatero, Lula condenou o que considera uma inaceitável concentração de renda no planeta, enquanto milhões de famílias convivem a mais cruel das chagas mundiais, a fome.
“É urgente uma reconstrução profunda do mundo, sobre os alicerces da igualdade, da fraternidade, do humanismo, dos valores democráticos e da justiça social”, argumentou Lula. “Porque mesmo que sobrevivam à Covid, 800 milhões de pessoas hoje não conseguem escapar de outro terrível flagelo: a fome”, afirmou o ex-presidente, reiterando que ele mesmo já sofreu os efeitos do temor dos que não sabem se poderão comer amanhã.
“Sei a dor que a fome provoca no ser humano, porque vivi na pele”, disse. “Nasci numa das regiões mais pobres do Brasil, filho de uma mãe pobre, analfabeta e lutadora, que criou seus oito filhos sozinha. Enfrentei a fome, o trabalho infantil, o desemprego, as injustiças”, relatou.
Assista o discurso de Lula na abertura do seminário:
Covid-19 aprofundou a desigualdade
“A verdade é que muito antes do primeiro caso de Covid-19, o mundo já estava doente, vítima de um vírus igualmente mortal chamado desigualdade”, refletiu o ex-presidente. “A desigualdade está na raiz de incontáveis mortes que acontecem ao redor do mundo. Inclusive quando o atestado de óbito informa como causa da morte a Covid-19”, apontou. “Este não pode ser o normal a que a humanidade deseja voltar”.
Para Lula, “não podemos aceitar como normal que um seleto grupo de homens brancos e ricos façam turismo no espaço, enquanto aqui na Terra milhões de pessoas pobres, principalmente mulheres e negros, continuam a morrer de fome. Que centenas de milhões de pessoas não tenham acesso a água potável, luz elétrica, moradia digna, saúde e educação”.
Apartheid de Vacinas
Lula também criticou a o desequilíbrio na distribuição das vacinas contra a Covid-19, resultando em um quadro sanitário e econômico catastrófico para os países mais pobres. Ele chamou atenção para o fracasso das metas de imunização da Organização Mundial da Saúde (OMS), que estabeleciam a vacinação de 10% da população de cada país deveria até o fim de setembro.
“No entanto, quando setembro chegou, mais de 50 países ainda não haviam atingido a meta inicial, que era bastante tímida. E apenas 2% da população das nações de baixa renda haviam recebido ao menos uma dose da vacina”, disse Lula. “Vivemos um verdadeiro “apartheid de vacinas”, como definiu o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, Tedros Adhanom”, lembrou. “Em países como Benin, República Democrática do Congo, Chade, Guiné-Bissau e Etiópia, a taxa de vacinação não chegava a 1%”.
Ele voltou a defender a quebra de patentes das vacinas para permitir uma distribuição mais equitativa. “Reconstruir o mundo pós-covid significa, portanto, dizer que a vida é o bem mais precioso que existe, e que a propriedade intelectual, que enriquece uma minoria, não pode estar acima da sobrevivência de toda a humanidade”.
“Fome tem cura”
Lula reafirmou que a guerra contra a fome e a miséria pode ser vencida, desde que haja vontade política para transformar as sociedades modernas. “E a fome tem cura”, assegurou Lula. “Sou capaz de dizer isso porque em apenas 13 anos de governos do Partido dos Trabalhadores no Brasil, fomos capazes de retirar o país do Mapa da Fome da ONU pela primeira vez na história”.
Ainda de acordo com o líder petista, “não existe vacina contra a fome, e não foi preciso inventá-la para livrar o Brasil desse flagelo. Bastou vontade política para implementar medidas tão simples quanto revolucionárias, a exemplo do Bolsa Família, considerado o maior programa de inclusão social do mundo”.
Para isso, ressaltou, é necessário incluir o pobre no Orçamento e tornar o Estado um instrumento de distribuição de riquezas. “O Bolsa Família não fez sozinho a revolução pacífica que mudou o Brasil”, enfatizou. “Transformamos o Estado num poderoso e eficiente indutor da economia, e fomos capazes de gerar mais de 20 milhões de empregos, com todos os direitos trabalhistas garantidos”.
Lula encerrou seu discurso apontando os caminhos para a construção de um futuro de prosperidade. “Nosso maior alento é a certeza de que a construção de um outro mundo é perfeitamente possível, porque já fomos capazes de construí-lo. Um mundo mais sustentável, menos desigual, mais justo, mais solidário e mais feliz”, clamou o ex-presidente. “É este o novo normal que desejamos. E que vamos construir juntos”.
Zapatero enaltece Lula
Em discurso emocionado, José Luis Zapatero enalteceu a presença de Lula, reforçou a importância do trabalho do petista na Presidência da República e defendeu um novo modelo de governança global. “Não temos um estado global, mas existe uma sociedade global”, pontou.
Zapatero declarou que o ressurgimento de Lula será o “ressurgimento do Brasil”. O ex-presidente espanhol definiu Lula como “o mais amado, o mais respeitado e o líder político que mais lutou pelos pobres nos últimos 50 anos no mundo”.
A volta de Lula à Presidência, na visão do líder espanhol, representa um passo importante para “a América Latina mais uma vez entrar em um estágio de progresso e integração necessárias”, diante da “evidente agonia da Organização dos Estados Americanos (OEA)”.
Ainda na França, nesta quarta-feira, o ex-presidente Lula manteve encontros com o ex-presidente da França, François Hollande, e o líder da França Insubmissa, Jean-Luc Mélenchon (veja abaixo)
Da Redação, com Europa Press