Ao discursar, nesta sexta-feira (17), na Segunda Cúpula Virtual Vozes do Sul Global, organizada pelo governo da Índia, Lula afirmou que as instituições internacionais vivem uma crise de efetividade e credibilidade, não sendo capazes de evitar tragédias humanitárias, como as guerras, a fome e as consequências das mudanças climáticas.
Em seu discurso (leia a íntegra abaixo), o presidente avaliou que é preciso “resgatar a confiança no multilateralismo”, o que só ocorrerá por meio de uma “nova ordem internacional justa”, na qual todos os povos tenham voz.
“As tragédias humanitárias a que estamos assistindo evidenciam a falência das instituições internacionais. Por não refletirem a realidade atual, elas perderam efetividade e credibilidade. Em seu mandato no Conselho de Segurança da ONU, o Brasil tem trabalhado incansavelmente pela paz. Mas as soluções são reiteradamente frustradas pelo direito de veto”, lembrou Lula, referindo-se aos esforços de seu governo em relação à guerra entre Israel e Hamas.
Em seguida, acrescentou: “Precisamos resgatar a confiança no multilateralismo. Precisamos recuperar nossas melhores tradições humanistas. Nada justifica que as principais vítimas dos conflitos sejam mulheres e crianças. É preciso restituir a primazia do direito internacional, inclusive o humanitário, que valha igualmente para todos, sem padrões duplos ou medidas unilaterais”.
Para o presidente, esse objetivo só será alcançado com a união dos países do Sul Global, que não precisam antagonizar com as nações do Norte. “Como Sul Global, nossa intenção não é – e não deve ser – antagonizar o chamado Norte. Mas uma ordem internacional justa exige que todos tenhamos voz. E falaremos mais alto se falarmos juntos”, argumentou.
Pouco antes, o presidente lembrou que, em dezembro, o Brasil assumirá a presidência do G20, quando aproveitará para “lançar luz sobre as necessidades do Sul Global”. “Dedicaremos forças-tarefas especiais ao combate à fome e ao enfrentamento da mudança do clima, as duas maiores urgências do nosso tempo”, antecipou.
A cúpula
Lula participou da cúpula a convite do primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, anfitrião do evento. A iniciativa juntou 125 países do mundo, para trocar impressões sobre suas prioridades, desafios e soluções, a partir da perspectiva do mundo em desenvolvimento.
O presidente Lula foi o segundo chefe de Estado a discursar, logo após o primeiro ministro da Índia, na condição de próximo presidente do G20. Nessa sessão de encerramento, falaram os chefes de Estado e Governo de Bahrein, Egito, Guiana, Jamaica, Malawi, Moçambique, Nepal, Sérvia e Trinidad e Tobago.
Leia a seguir a íntegra do discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na abertura da Segunda Cúpula Virtual Vozes do Sul Global
Parabenizo o primeiro-ministro Modi por esta oportuna iniciativa de reunir o Sul Global em um contexto tão desafiador.
Estar aqui me fez lembrar de uma obra muito famosa do artista uruguaio Joaquín Torres García, chamada “América Invertida”.
Ele retratou a América do Sul de cabeça para baixo.
Colocou o cone sul – que costuma aparecer distorcido nos mapas tradicionais – no topo da imagem, e o norte na parte de baixo.
Com isso, demonstrou como, muitas vezes, adotamos, sem refletir, pontos de vista alheios, que não nos favorecem.
Nossos países já foram chamados de terceiro mundo e de países em desenvolvimento.
Fomos divididos em países emergentes e países menos desenvolvidos; e em países de renda média e países de renda baixa.
Há quem questione o conceito de Sul Global, dizendo que somos diversos demais para caber nele.
Mas existem muito mais interesses que nos unem do que diferenças que nos separam.
Assumir nossa identidade como Sul Global significa reconhecer que vemos o mundo de uma perspectiva semelhante.
Ao longo de décadas, trabalhamos juntos por um mundo mais equitativo.
Enfrentamos o desafio da descolonização, assumimos o desafio do desenvolvimento e agora temos de abraçar o desafio da paz.
Nossa mobilização mais recente resultou nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, que são o resumo mais fiel das nossas aspirações conjuntas.
Mas só um quinto das suas metas estão progredindo como esperado. A implementação de um terço delas está estagnada ou regrediu.
Quando falei da tribuna da Assembleia Geral da ONU, em setembro, propus que assumíssemos a redução das desigualdades como nosso objetivo-síntese.
Caso contrário, o abismo entre países ricos e pobres só irá crescer.
Falharemos com as milhões de pessoas que passam fome no mundo, enquanto bilhões de dólares são gastos para travar guerras.
Seremos os mais afetados pela mudança do clima, mesmo que não tenhamos sido, historicamente, os maiores responsáveis pelas emissões de gases do efeito estufa.
Nos tornaremos vítimas de nova corrida predatória por recursos naturais, incluindo minerais críticos, sem a oportunidade de diversificar nossas bases produtivas.
Seguiremos sem acesso a medicamentos, repetindo – na expressão do diretor-geral da OMS – o “apartheid de vacinas” que vimos na pandemia de Covid-19.
Viveremos o impacto da inteligência artificial sobre nossos empregos, sem participar da sua regulação.
E muitos de nós continuarão sufocados por dívidas que limitam a capacidade do Estado de promover o desenvolvimento sustentável.
A presidência brasileira do G20, que se inicia em dezembro, irá – assim como fez a Índia, a Indonésia antes dela e certamente fará a África do Sul depois de nós – lançar luz sobre as necessidades do Sul Global.
Dedicaremos forças-tarefas especiais ao combate à fome e ao enfrentamento da mudança do clima, as duas maiores urgências do nosso tempo.
Na COP30 – que sediaremos no coração da Amazônia –, insistiremos para que países desenvolvidos assumam metas mais ambiciosas e cumpram seus compromissos.
Para avançar nesses temas, será incontornável abordar a questão da reforma da governança global.
As tragédias humanitárias a que estamos assistindo evidenciam a falência das instituições internacionais.
Por não refletirem a realidade atual, elas perderam efetividade e credibilidade.
Em seu mandato no Conselho de Segurança da ONU, o Brasil tem trabalhado incansavelmente pela paz.
Mas as soluções são reiteradamente frustradas pelo direito de veto.
Precisamos resgatar a confiança no multilateralismo.
Precisamos recuperar nossas melhores tradições humanistas.
Nada justifica que as principais vítimas dos conflitos sejam mulheres e crianças.
É preciso restituir a primazia do direito internacional, inclusive o humanitário, que valha igualmente para todos, sem padrões duplos ou medidas unilaterais.
Como Sul Global, nossa intenção não é – e não deve ser – antagonizar o chamado Norte.
Mas uma ordem internacional justa exige que todos tenhamos voz. E falaremos mais alto se falarmos juntos.
Muito obrigado.
Da Redação, com Palácio do Planalto