Os dados da pesquisa “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil” são mais um indicativo do êxito da Lei de Cotas, Lei 12.711 de 29 de agosto de 2012, sancionada no governo Dilma, quando eu era ministro da Educação e a guerreira e saudosa Luiza Bairros ministra da Igualdade Racial. A pesquisa foi feita pelo IBGE e divulgada na quarta-feira (13/11), uma semana antes do Dia da Consciência Negra, que celebramos hoje.
Com as cotas, em nossos governos, a presença dos negros aumentou 267% na educação superior. Agora, os dados de 2018 revelam que, pela primeira vez na história, o número de estudantes negros passou o de brancos nas universidades públicas brasileiras. Em 2018, mais de 1,14 milhão de estudantes pretos e pardos estavam nas universidades públicas, o que representa 50,3%.
No curso de pedagogia já são 58,53% e na enfermagem 52,8%, mas nas engenharias são 40,9% e nas faculdades de medicina 39,9%. É preciso aprofundar esta análise. A oferta de cursos de medicina está muito abaixo das necessidades do país, apesar de termos feito um grande esforço de ampliação das vagas, modificação no processo de aprendizagem, na avaliação e na residência média. Depois do golpe de 2016, que afastou a presidenta Dilma sem crime de responsabilidade, foi decretada uma moratória de cinco anos, sem abertura de novas vagas em medicina.
A grave restrição da oferta e a concentração regional dos cursos de medicina seguramente contribuem para o impacto ainda insuficiente da Lei de Cotas nesse segmento. É preciso considerar ainda que importantes universidades públicas estaduais não adotaram as cotas na mesma dimensão das federais.
Além disso, as cotas foram introduzidas de forma progressiva, sendo que o índice de 50% das vagas para cotistas ainda é muito recente, só foi atingido a partir de 2016. Como os cursos de medicina são de seis anos, o impacto é mais lento e certamente esse também é um outro fator explicativo. Mas, é evidente que há restrições estruturais, decorrentes da profunda desigualdade social e racial em nosso país, presente no processo escolar.
A força da política de cotas ganha ainda mais relevância quando observamos que 35% dos formandos, que participaram do Enade em 2015, foram os primeiros da família a receberem um diploma de curso superior, uma profunda mudança intergeracional. A Lei de Cotas ataca duas dimensões fundamentais do problema histórico da exclusão educacional brasileira: a desigualdade social e a discriminação racial.
Entretanto, a aprovação da Lei de Cotas, sofreu grande resistência, especialmente no Senado Federal, onde a bancada da direita, sempre respaldada por poderosos meios de comunicação, alegava que as cotas comprometeriam a meritocracia e a excelência no ensino superior. Diziam ainda que o país não era racista e que as políticas de ações afirmativas raciais quebrariam esta condição e deflagrariam conflitos raciais no Brasil.
Lutamos por 13 anos por sua aprovação e o DEM, mesmo depois da aprovação, recorreu ao STF para tentar impugnar a Lei de Cotas. Isso, em um país com enormes desigualdades, que foi o último de toda a América a abolir a escravidão e que carrega um passado de educação retardatária e de exclusão educacional profunda.
É verdade que outros instrumentos de acesso favorecido à educação superior, com foco nos alunos de escolas públicas e de baixa renda, implementados nos governos Lula e Dilma, como o ProUni e o Fies, também sofreram resistência. Entretanto, nenhum desses foi tão criticado e combatido como foi a política de cotas, muito em razão da ignorância, do preconceito e do racismo.
A Lei Áurea, de 13 de maio de 1888, tinha só dois artigos e cinco linhas. “Fica abolida a escravidão em todo o território do Império do Brasil. Revogada as disposições em contrário”. Teve um imenso alcance social.
A história comprova que o fim da escravidão, da forma que se deu no Brasil, manteve o negro, estigmatizado pelo seu passado de senzala e chicote, em uma condição de subcidadania. Uma realidade de baixa escolaridade e de subemprego, que ajuda a explicar porque durante tanto tempo fomos uma das sociedades mais desiguais do planeta, condição para a qual, infelizmente, as políticas ultraliberais do governo Bolsonaro estão nos empurrando novamente.
As políticas de ação afirmativa no Brasil para mitigar a desigualdade social e a discriminação racial só começam a virar realidade no Século XXI, mais de um século depois da abolição da escravidão. A 3ª Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e formas correlatas de Intolerância, promovida pela Organização das Nações Unidas (Onu), em Durban, na África do Sul, seguramente contribuiu para fomentar essa nova agenda, corajosamente assumida pelos governos Lula e Dilma.
Apenas em 2010, o presidente Lula sanciona a Lei 12.288, que institui o Estatuto da Igualdade Racial. Mesmo assim, frente ao incontestável passado de exclusão dos negros, as cotas são a mais ousada ação afirmativa que se tem registro na história do nosso país, desde a Lei Áurea, sendo responsável direta por romper um ciclo vicioso, em que os estudantes de famílias da elite econômica estudavam em escolas particulares até o ensino médio, faziam tantos vestibulares pagos quanto necessário e tinham acesso as universidades públicas e gratuitas, prejudicando o acesso dos mais pobres.
O novo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), implantando por Fernando Haddad, que também sofreu todo tipo de resistência, mas que unificou o acesso de forma republicana, e a Lei de cotas mudaram essa lógica. Esses dois instrumentos combinados asseguraram que pelo menos 50% das vagas ofertadas devem ser para estudantes das escolas públicas, com recorte de renda e acesso, favorecidos para negros e indígenas, proporcionais aos seus pesos demográficos da raça em cada unidade da federação.
Além disso, também já caiu por terra a crítica central contra a Lei de Cotas, segundo a qual esse instrumento agredia a meritocracia e comprometeria a excelência nas universidades públicas, dois valores que devem orientar o acesso à educação superior. Entretanto, a meritocracia não pode ser considerada fora das condições socioeconômicas e históricas, porque, isoladamente, contribui para reproduzir e perpetuar a desigualdade social e racial e a exclusão educacional. Nunca é demais lembrar que os estudantes matriculados nas escolas públicas de ensino médio respondem por 87% das matrículas.
Portanto, assegurar metade das vagas de acesso às universidades públicas, com um processo seletivo específico, é uma política muito razoável e adequada, que trouxe extraordinários resultados
Quanto à questão da qualidade, pesquisas acadêmicas apontam para o excelente desempenho dos alunos beneficiados pela política de cotas. A inclusão por cotas não comprometeu a excelência dos cursos, mas encerrou um longo ciclo elitista e abriu novas oportunidades para os estudantes do ensino médio público, que nunca tiveram a oportunidade de ingressar no ensino superior.
A pesquisa do professor Jacques Wainer da Unicamp e da professora Tatiana Melguizo associada da Rossier School of Education da University of Southern Califórnia, por exemplo, avaliou o desempenho de 1 milhão de alunos no Enade, entre 2012 e 2014. A conclusão é de que a qualificação dos formandos, que tiveram acesso ao ensino superior em razão das políticas de inclusão social, equivale ou até supera a qualificação dos demais alunos.
Ademais, os estudantes beneficiados pela lei de cotas têm em média, ao final do curso, um desempenho equivalente aos não cotistas. No Prouni, os bolsistas têm um desempenho superior aos não bolsistas e no Fies ligeiramente inferior.
Resultados de pesquisas da UFBA, da UnB e da UFRN sobre cotistas e não cotistas nessas universidades federais também apontaram no mesmo sentido. Todos esses resultados comprovam o êxito das políticas de democratização de oportunidades na educação superior e enterram, de uma vez por todas, o preconceito e esses argumentos dos que são e continuam sendo contra as cotas.
Sabemos que a Lei e Cotas isoladamente não resolve os problemas de desigualdade social e de discriminação racial. Mas, temos a certeza de que é um instrumento fundamental, que contribui para superarmos o nosso passado de exclusão e discriminação racial educacional.
Mais do que nunca, frente a um governo obscurantista, que demonstra total descompromisso com a agenda de enfretamento da exclusão, do preconceito e da pobreza, as cotas devem ser defendidas e preservadas como política de estado, algo que eles parecem desconhecer. A luta contra o racismo e a discriminação tem que ser ainda mais ampla e permanente, uma das prioridades deve ser o combate à desigualdade racial no mercado de trabalho.
A mais urgente e dramática é o extermínio de jovens negros, nas periferias de todo o Brasil. O episódio de um coronel PM de extrema direita, que está deputado pelo PSL, quebrando uma charge de Latuff, que denuncia essa dramática situação, foi mais um ato, dentro de uma escalada de agressões aos negros, aos artistas e à cultura. Revela também o quanto ainda estamos distantes de uma nova cultura democrática, que valorize a diferença e em que as políticas públicas ancorem uma sociedade de semelhantes. A exposição foi autorizada pela mesa da Câmara dos Deputados e racismo é crime, não podendo ficar sem resposta. Afinal, os milhares de excluídos deste país não podem aceitar os retrocessos políticos e civilizatórios que estão em curso e não irão retornar à condição de subcidadania, a que eram relegados há bem pouco tempo atrás.
Em tempos de obscurantismo e de crescimento da intolerância, nunca é demais relembrar gigantes da história, que deram suas vidas na luta pela democracia, pela igualdade, pelos direitos humanos e por uma civilização menos desigual. Especialmente, no Dia da Consciência Negra, cabe citar Mandela, que disse: “ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, ou por sua origem, ou sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se elas aprendem a odiar, podem ser ensinadas a amar, pois o amor chega mais naturalmente ao coração humano do que o seu oposto. A bondade humana é uma chama que pode ser oculta, jamais extinta”.
Aloizio Mercadante é ex-ministro da Educação