A representatividade do Brasil real avança lentamente a cada eleição nas cidades e nos estados. Este ano, o primeiro turno das eleições municipais apresentou alguns passos a mais nesse sentido. Candidaturas de mulheres, negros, pardos, indígenas, população LGBTQI+ – em muitos casos, somando mais de uma dessas condições – emergiram em todo o país, e paulatinamente conquistam mais votos.
Os números do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) mostram que as mulheres passaram de 11,7% do contingente de prefeitos eleitos no primeiro turno em 2016 para 12,1%. No total, 650 cidades elegeram prefeitas neste domingo, contra 641 em 2016. Cresceu de forma mais expressiva a presença de mulheres nas disputas de segundo turno, ou seja, das maiores e mais importantes cidades do país.
Em 2016, ano das últimas eleições municipais, apenas seis mulheres passaram para as disputas de segundo turno, ao lado de 108 homens. Agora são 20 mulheres e 94 homens – cinco delas, entre as dezoito capitais que definem a disputa em segundo turno: Aracaju, Porto Alegre, Porto Velho, Recife e Rio Branco. Ponta Grossa (PR) terá um segundo turno entre duas postulantes mulheres.
Entre as candidaturas consideradas aptas pelo TSE para as câmaras municipais, 173.035 eram de mulheres. A quantidade de homens alcançava quase o dobro: 326.984. Ainda assim, houve um aumento de 22% em relação a 2016, quando as mulheres tentando um assento nas câmaras municipais eram 142.039. Pelo critério que une pretos e pardos, das 650 prefeitas eleitas no primeiro turno, 209 são negras (32%).
As candidaturas de mulheres continuam concentradas proporcionalmente nas vagas para vereadoras. Dentre todos os vereadores eleitos nas capitais brasileiras, as mulheres representam 18% das cadeiras das câmaras municipais, segundo dados compilados pelo ‘Gênero e Número’, portal de jornalismo de dados que enfoca questões de gênero.
A capital com menor representatividade feminina foi João Pessoa, que elegeu somente uma mulher como vereadora e tem a menor proporção entre as capitais (4%). Vitória, Rio Branco, Porto Velho e Manaus são outras cidades que não passam de 10% das mulheres nas capitais. O topo da proporção de mulheres eleitas é ocupado por Porto Alegre, com 31%. Logo depois vem Belo Horizonte, com 27%.
Com 5.625 votos, Camila Valadão (PSOL) foi a segunda vereadora mais votada de Vitória e será a primeira mulher negra a exercer o papel de vereadora da capital do Espírito Santo. Junto com Karla Coser (PT), que se autodeclara parda, ela vai compor a ala de mulheres da Casa de Leis da capital.
As eleições municipais deste ano foram as primeiras em que começaram a ser obrigatórias não apenas a cota de 30% de candidaturas femininas, mas também a reserva de pelo menos 30% dos fundos eleitoral e partidário para financiar candidatas e a aplicação do mesmo percentual ao tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão. Com o fim das coligações nas eleições proporcionais, cada partido foi obrigado a reservar três em cada 10 candidaturas de vereador para mulheres.
Apesar de as mulheres representarem mais da metade do eleitorado brasileiro (52,5%), as candidaturas femininas ficaram, novamente, próximas ao limite estabelecido pelas cotas. Do total de 556.033 pedidos de registro de candidatura, apenas 186.144 foram de mulheres. O percentual de 33,48% está aquém da paridade desejável entre homens e mulheres. Em 2016, as candidaturas femininas foram 31,9% do total.
O maior avanço das candidaturas femininas foi para ocupar o cargo de vice-prefeita. Em 2016, elas representavam 17,62% do total de candidatos ao posto de vice da chapa e, em 2020, pularam para 21,3%. Passaram de 2.988 candidatas para 4.200. Especialistas alertam, no entanto, que a utilização de mulheres no segundo posto da chapa é um movimento estratégico, já que o financiamento destinado à candidatura feminina (de 30%) acaba sendo utilizado, na verdade, pelo cabeça de chapa masculino.
Para Patrícia Rufino, doutora em Educação e especialista em relações étnico-raciais, os números são o sinal de que as Câmaras, eleitas pela população, não são tão representativas quanto precisam ser.
“Há uma histórica condição de defasagem. Desde que foi dada a permissão para as mulheres votarem, há uma dificuldade de se aceitar que os espaços políticos sejam ocupados por mulheres, especialmente as negras. O Brasil, os partidos, precisam investir na formação política de mulheres para que elas sejam qualificadas para o debate e para a ação política. Essas mulheres que estão entrando, estão entrando em uma luta extremamente tensa de enfrentamento do machismo, do sexismo e do racismo”, analisa a professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
Negros somavam metade das candidaturas, mas são só 32% dos prefeitos eleitos
Boa parte dos avanços observados nos últimos anos na postulação de mulheres e negros a postos de relevo na política partiu do Judiciário. Em 2018, o TSE determinou que os partidos têm que destinar a verba de campanha eleitoral na proporção das candidaturas femininas lançadas, sempre em patamar superior a 30%. Agora, em 2020, foi a vez de o Supremo Tribunal Federal (STF) determinar que as legendas também façam a distribuição proporcional da verba entre candidatos brancos e negros.
Em ambos os casos, o Judiciário foi instado a se manifestar por meio de ação protocolada por parlamentares. No caso da cota racial, e a equiparação do tempo de propaganda política em rádio e tevê para mulheres brancas e negras, as cortes tomaram as decisões com bases em ações protocoladas pela deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ) e por representantes de outros partidos.
Nesta eleição, pela primeira vez os candidatos pretos e pardos superaram os brancos em número. Ao todo, foram houve 211.895 candidatos pardos e 56.282 pretos (268.177), o equivalente a 49,9% dos postulantes, número maior que o de candidatos autodeclarados brancos (259.079, ou 48,2%). Em 2016, havia 222.837 candidatos negros (47,51%) e 242.502 brancos (51,71%).
Desta vez, 32% dos prefeitos eleitos no primeiro turno se declararam negros (pretos ou pardos), totalizando 1.718 vitoriosos. Os brancos somaram 67%. O número é superior a 2016, quando os negros (somando pretos e pardos) foram eleitos para comandar 1.605 municípios (29% do total), com 70,4%, de brancos. Entre os postulantes no segundo turno, eram 22 pretos e pardos em 2016, ao lado de 92 brancos. Agora, 32 negros foram para o segundo turno, ao lado de 81 brancos.
Apesar do crescimento, o resultado ainda está bem distante de refletir a divisão entre negros e brancos na população brasileira —56% são pretos e pardos— e entre os próprios candidatos lançados —50% foram negros, 48%, brancos. Somando as cadeiras das 25 capitais que elegeram suas Câmaras neste domingo (15), 44% serão ocupadas por pessoas negras, segundo o cruzamento de dados do portal Gênero e Número.
Palmas (TO) é a cidade com maior quantidade de pessoas negras eleitas: entre as 18 cadeiras, há somente uma pessoa branca. Na outra ponta, a capital com a Câmara municipal mais branca será Florianópolis. Todas as 23 cadeiras foram ocupadas por pessoas brancas.
O resultado foi puxado pelo número de pardos. Dos mais de 1,7 mil prefeitos negros eleitos, apenas 109 se declararam pretos (contra 93 pretos vitoriosos em 2016). Do total de prefeituras do país, cerca de 2% serão comandadas por mandatários pretos, fração inferior à dos 7,6% assim autodeclarados no país. Para cada pessoa autodeclarada preta que se registrou como candidato na Justiça eleitoral, havia quatro pardos concorrendo.
Os números apontam que a representatividade das pessoas pretas nos cargos eletivos ainda é pequena. E quanto mais escura a pele, mais difícil ainda é o acesso aos espaços de poder.
Mandatos coletivos, indígenas e quilombolas
As candidaturas coletivas e compartilhadas se multiplicaram nos últimos quatro anos, mostra levantamento do Centro de Política e Economia do Setor Público (Cepesp) da Fundação Getúlio Vargas (FGV). A partir de dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), os pesquisadores constataram que o número total desse tipo de candidatura passou de 13 registros na eleição de 2016 para 257 em 2020.
Em Minas Gerais, Sonia Lansky (PT) lidera o primeiro mandato coletivo da capital mineira (o Coletiva, com nove covereadores), que defende a causa da saúde pública e o SUS. Também integrante de um mandato coletivo – Quilombo – a negra e periférica Gilsa Santos (PT) foi eleita em Governador Valadares.
Fortaleza e São Luís do Maranhão elegeram seus primeiros mandatos coletivos. O primeiro, Nossa Cara Mandata, com Louise, Lila e Adriana (PSOL), é feminista e negro. O segundo (PT) é o Nós.
Dentre os mais de 19,3 mil candidatos a prefeituras este ano, houve apenas dois quilombolas: Vilmar Costa (PSB), mais conhecido como Vilmar Kalunga, de Cavalcante (GO), e Oriel Rodrigues (PT), do quilombo de Ivaporunduva, em Eldorado, no Vale do Ribeira, interior de São Paulo. Vilmar tornou-se o primeiro prefeito Kalunga da história.
Os indígenas totalizaram 2.103 candidatos neste ano, para cargos nos Executivos e Legislativos municipais, contra 1.579 (0,34%) em 2016. Desses, seis homens e uma mulher conseguiram se eleger para comandar as prefeituras de suas cidades. O cacique Marquinhos Xukuru (Republicanos) foi eleito em Pesqueira (PE), mas sua candidatura foi indeferida pelo TSE e está sub judice.
População LGBTQI+ emplacou duas mulheres trans entre candidatas mais votadas
Em um ano histórico para a população LGBTQI+, foram registradas 318 candidaturas em 2020, incluindo duas para prefeitura e uma para vice-prefeitura. Aumento de 257% em relação às 89 candidaturas de 2016. Segundo a Associação Nacional de Transexuais e Travestis (ANTRA), foram eleitas 26 pessoas trans às Câmaras Municipais em diversas cidades do Brasil. O número é mais que o triplo do verificado no último pleito, em 2016, onde oito pessoas trans foram eleitas.
Ao todo, um homem trans e 24 mulheres trans ou travestis estarão nas Câmaras Municipais em 2021, em oito estados de quatro regiões do País. Apenas o Centro-Oeste não elegeu nenhuma candidatura de pessoas trans. Entre as candidaturas a vereador, há ainda 30 mandatos coletivos, dos quais dois foram eleitos.
Duas mulheres trans estão entre as candidatas mais votadas em suas cidades. A Professora Duda Salabert (PDT) foi a vereadora mais votada em Belo Horizonte, com 37.613 votos. Em Aracaju, a também educadora Linda Brasil (PSOL) também foi a candidata mais votada, com 5.773 votos, maior número de votos da história da capital sergipana.
Em São Paulo, Erika Hilton (PSOL), mulher trans e negra, foi a sexta candidata mais votada, com 50.477 votos, e os homens trans serão representados por Thammy Miranda (PL), nono candidato com mais votos. Por outro lado, nas outras 12 capitais (Rio Branco, Manaus, Fortaleza, Goiânia, São Luiz, Campo Grande, João Pessoa, Teresina, Porto Velho, Roraima, Florianópolis e Palmas) nenhuma mulher negra ou trans está entre as dez candidaturas mais votadas.
Nas principais cidades e nos mais importantes cargos em disputa, o padrão de candidato continua sendo o homem branco. Nos 95 maiores municípios brasileiros, que têm mais de 200 mil eleitores e concentram 40% da população, oito a cada dez candidatos a prefeito foram homens, com destaque para Norte e Nordeste. Se levada em conta a cor declarada da pele, 70% foram brancos, com maior prevalência no Sul.
Na avaliação da cientista política Hannah Maruci, co-realizadora da Tenda das Candidatas, um projeto que dá atendimento voluntário a candidaturas femininas, não há dúvidas de que houve um aumento da participação das mulheres nos cargos eleitos, embora aquém do desejável.
“Tem um aumento significativo de mulheres e de pessoas trans no poder”, diz Maruci. “Mas acredito que nosso maior avanço dessas eleições é em termos de raça. Nas capitais, quase metade das candidaturas eleitas foi de pessoas negras, o que é muito significativo”, afirma. “Como esperado, as mulheres negras estão se elegendo, apesar de terem sido negligenciadas pelos partidos.”