Como o debate tipicamente político e ideológico está sendo feito à exaustão pelas posições em conflito e como já escrevi várias vezes com posições claras sobre o tema, vou tentar – neste pequeno artigo – uma análise da decisão condenatória do TRF 4, o mais próxima possível da Teoria Pura do Direito.
Colocando a decisão referida, portanto, dentro de um sistema de normas positivas – uma dependente da outra e todas escoradas na Constituição formal – que é o método mais aceito nos meios jurídicos do país, compatível com os fundamentos do Estado de Direito, que dá suporte a um Estado Social atualmente em processo de dissolução. A inviolabilidade dos direitos e a igualdade formal perante a lei são os fundamentos deste Estado.
Apenas para exemplificar, liminarmente: pelas próprias narrativas dos doutos Desembargadores, quando estes se referiam ao processo e não apenas faziam réplicas ideológicas ao PT e ao conjunto da esquerda, ficou claro que, na pior das hipóteses para o Presidente Lula – aceitos como verdades todos os fatos narrados pelos Juízes – este deveria, pela lei penal, ser absolvido.
Segundo os fatos narrados demonstram, como não ocorreu aceitação da transferência de propriedade, Lula teria apenas exercido “atos preparatórios”, para receber o apartamento ou, ainda, na pior das hipóteses, teria demonstrado – como sujeito de uma relação que poderia ser de seu favorecimento, um “arrependimento eficaz”. Em ambas as hipóteses, qualquer jurista não vacinado ideologicamente recomendaria, pelos fundamentos da Constituição vigente, a absolvição do ex-Presidente.
Ambas são figuras da lei penal brasileira, diretamente reguladas por normas positivas, que certamente seriam aplicadas por um Tribunal que não estivesse previamente “brifado” pela midiatização do processo penal, feita pelo oligopólio da mídia, cujas referências serviram inclusive de “provas” nos autos formais do processo.
E, mais do que isso: formaram, em boa parte da opinião pública, a convicção que caberia ao órgão jurisdicional apenas “carimbar” o linchamento adredemente preparado na grande imprensa, que já iniciara na deposição sem causa – a não ser por causas tipicamente “políticas” no sentido mais rasteiro desta expressão – no impedimento da presidenta Dilma. Para condenar o ex-presidente, em consequência, deveria ser adotada uma outra teoria do direito material e processual, fora da Constituição, que é aquela que diz que a verdadeira força do direito está com quem pode usar da “exceção”.
Não foram erros nem ignorância jurídica, os fatores principais da condenação do Presidente Lula no TRF 4, no trágico dia 24, que consagrou o que a maioria de nós já esperávamos. A exacerbação da pena, todavia, surpreendeu positivamente os mais otimistas conservadores e direitistas, que torciam e se empenharam – como centenas de jornalistas da mídia tradicional – para que o ex-Presidente saísse da corrida presidencial.
Ganham Alckmin, Temer, Fernando Henrique, Marina, Bolsonaro e todos os “reformistas” denunciados e investigados que estão no Governo atual – mais apropriado seria dizer os ‘contra – reformistas’ do Estado Mínimo – que promoveram o golpismo paraguaio num país de lento amadurecimento democrático.
Digo que não foi ignorância nem erro, porque o roteiro cumprido no julgamento vem consolidar, de forma coerente, a “torção” do Estado de Direito Democrático no Brasil, em direção à consolidação da “exceção”. Esta, não mais aplicada de forma seletiva – na maioria dos casos contra os pobres e deserdados do campo e das amplas periferias metropolitanas – mas agora já usada como arma política explícita e consciente, por uma parte do Sistema de Justiça, que não mais hesita em abandonar o direito positivo, para refazê-lo, com finalidades políticas evidentes. Trata-se, na verdade, da vitória de um pensamento jurídico que não é novo, mas que passa ser dominante e pode transformar, a curto prazo, a “exceção” em regra.
O uso da exceção, no plano penal, substitui o processo investigativo e o “conhecimento” que ele promove, para a formação do juízo, por um procedimento material que persegue um objetivo adredemente escolhido: a condenação já exposta no plano político. A “exceção” descarta a norma positiva e opõe, a ela, uma nova norma que é produzida de forma conveniente, no próprio processo – dentro e fora dos autos – para alcançar um objetivo pré-determinado, seja a condenação de um réu, seja a dissolução de uma facção política, seja a supressão de um suposto inimigo.
A exceção se infiltra, politicamente, nos órgãos jurisdicionais, quando estes “partidarizam” as suas posições, ou seja, se tornam “parte” posicionada de forma “aberta”, no contencioso político, o que supõe que o julgamento de um réu pode ser, ao mesmo tempo, o julgamento de uma comunidade indeterminada de pessoas, seja pela sua raça, sua ideologia, sua nacionalidade, seu partido ou em determinados casos pela sua condição sexual.
A exceção só se consolida com um certo grau de consenso nas “elites” cultas da sociedade – por sua presumida “superioridade” cultural e possibilidade de manejo da informação – ou porque estas comandam um consenso produzido de forma artificial, pela inseminação do ódio sem limites, contra todos os que, na sua opinião, devem ser excluídos da vida comum.
Neste movimento, a linguagem jurídica, técnica, voltada para a Constituição e para as suas categorias jurídicas que repousam no Direito Penal, não tem mais utilidade. O discurso para a formação do Juízo torna-se, em consequência, apenas a consolidação da “exceção”, já modelada de fora para dentro no processo, ou seja, das instâncias puramente políticas para o interior do processo penal, que já foi definido pela mídia dominante como um processo justo, que resgata a ideia de “limpeza” social, étnica, ou moral nas instâncias do Estado. A fraude política, portanto, vem consolidar-se como fraude jurídica.
O Desembargador Victor Luiz dos Santos Laus proferiu o voto mais consequente e transparente da histórica sessão, quando disse: “aqui não interessa o jurídico”. E passou a explicar, numa linguagem não-técnica, acessível ao cidadão comum, as finalidades do poder punitivo do Estado. Reportava-se ele não às provas constantes do processo – o que seria o “jurídico” – mas às informações sobre o caso, que circularam como verdades absolutas na grande mídia.
Já estava, sem dúvida, escorado no conceito-mãe que sustentaria a “exceção”, no caso concreto: uma incriminação em abstrato (do Partido dos Trabalhadores) reportada pelo Desembargador Gebran, escorando-se, ainda, na afinidade de princípio dos julgadores – para o caso concreto – que reza que o Chefe Superior da Administração Pública, o Presidente, assume a responsabilidade “objetiva” pelos delitos cometidos pelos seus nomeados.
Diz Habermas que “o eixo da crítica atual do direito é a decrescente eficácia vinculante da lei parlamentar e o risco que corre o princípio da divisão de poderes de vir abaixo, em um Estado que se vê confrontado com tarefas crescentes e qualitativamente novas.” (Facticid y Validez, Ed. Trotta, pg. 515). No caso brasileiro, as tarefas “crescentes” e “qualitativamente novas”, que são exigíveis do Estado, estão sendo respondidas, não com a modernização e eficácia do Estado Social construído em 88, mas com a diluição dos direitos fundamentais e com a “exceção”, que destrói o garantismo jurídico e as liberdades públicas, selecionando quem pode, ou não, ser a preferência da soberania popular.
Tarso Genro foi governador do Rio Grande do Sul, ex-ministro da Educação, Relações Internacionais e da Justiça nos governos Lula
Do Sub 21