A cloroquina volta ao centro do palco, como ocorre toda vez que o desgoverno Bolsonaro deseja camuflar as deficiências e a gestão errática da saúde pública. Dessa vez, o Ministério da Saúde planeja realizar o “Dia D” de enfrentamento à Covid-19. O evento, a princípio marcado para sábado (3), consistiria na abertura de Unidades Básicas de Saúde (UBS) para passar orientações sobre o “tratamento precoce” e medicar pacientes.
Até esta data, o ministério programa uma série de ações, entre elas levantar estoques e turbinar a distribuição de medicamentos do chamado kit Covid-19, que reúne cloroquina, hidroxicloroquina, azitromicina e ivermectina, a despeito da inexistência de eficácia científica comprovada sobre o uso dessas drogas contra a doença. O fato é que, esgotados os medicamentos produzidos pelo Laboratório do Exército e pela Fiocruz a mando do presidente Jair Bolsonaro, o ministério precisa “desovar” os dois milhões de comprimidos de hidroxicloroquina doados pelo governo dos Estados Unidos.
O produto foi enviado em embalagens com cem unidades, e é preciso fracioná-las. Até o momento, essa operação tem sido bancada por estados e municípios que pedem para receber a droga. Os organizadores do evento, entre eles o empresário Carlos Wizard, fundador da rede Wizard de escolas de línguas, veem na ocasião uma forma de “liquidar” os estoques do kit Covid.
Distribuir medicamentos sem comprovação de eficácia no combate ao vírus é uma coisa grotesca. Essa é uma medida para iludir a população
O presidente ianque, Donald Trump, encontrou uma forma de ele mesmo se livrar das drogas, cujo uso contra a Covid-19 foi repudiado pela comunidade científica no mundo inteiro. Nos Estados Unidos, o Twitter chegou a suspender a conta de Donald Trump Jr., filho do presidente, por fazer propaganda da hidroxicloroquina como remédio que combate a Covid-19. O Twitter tomou a decisão orientado por cientistas.
Segundo matéria do jornal ‘O Estado de São Paulo”, o ministério espera que Bolsonaro trate do tema durante sua live de quintas-feiras, no dia 1º. Na sexta (2), véspera do “Dia D”, o presidente ainda faria um pronunciamento em cadeia nacional de rádio e TV para divulgar o evento, como um Winston Churchill na forma degradada.
O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, falou do evento na quinta (24), em reunião com gestores de estados e municípios. “É um esforço nacional que o SUS está fazendo para divulgar melhores práticas, para que possamos salvar mais vidas”, disse. O general afirmou que há “pessoas sendo iludidas no país” sobre o tratamento. “Até hoje você encontra cartazes dizendo: está com Covid, fique em casa até ter falta de ar”, reclamou.
Por divergências com Bolsonaro sobre a prescrição desses medicamentos, dois ministros da Saúde deixaram o governo: Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich. Na gestão Pazuello, o ministério passou a orientar o uso de cloroquina ou hidroxicloroquina, associadas ao antibiótico azitromicina, desde o primeiro dia da doença.
“Medida grotesca para iludir a população”
“Distribuir medicamentos sem comprovação de eficácia no combate ao vírus é uma coisa grotesca. Essa é uma medida para iludir a população”, comentou o infectologista Matheus Todt ao jornal baiano ‘A Tarde’. O médico e professor alerta que “a hidroxicloroquina, tem efeitos colaterais graves, o antibiótico azitromicina não apresenta efeito algum contra o coronavírus e o vermífugo ivermectina mal tem estudos que comprovem eficácia”.
Segundo ele, a abertura das UBS “será uma forma aglomerar pessoas nos postos de saúde para pegar medicamentos que não têm efeito nenhum contra a doença”. O médico teme que o evento seja apenas uma forma de tentar justificar as medidas de flexibilização, podendo elevar as taxas de infecção. “É uma propaganda totalmente equivocada do governo com essa medida que chega a beirar o absurdo”, ressalta.
“Claro que essas medidas devem ocorrer e estão ocorrendo. Entretanto, seria uma forma de afirmar que a estratégia de flexibilização precoce, que foi um tiro no escuro, foi uma boa medida e que esses medicamentos podem ajudar alguma coisa”, argumenta o infectologista. “Até agora, o que sabemos é que as medidas que, efetivamente, auxiliaram na redução da velocidade de transmissão e da sobrecarga do sistema de saúde foram a restrição da mobilidade urbana e isolamento social. Medidas essas que o governo combateu desde o início.”
O especialista alerta sobre o risco de uma nova onda de infeção. “Não à toa, estamos entre os três países que pior enfrentam a covid19. Estamos atrás apenas dos Estados Unidos e da Índia, que tomaram as mesmas medidas do Brasil. Isso mostra que o governo, além não ter feito muita coisa, continua sem saber o que fazer e, provavelmente, vamos configurar uma segunda onda de infecção, semelhante ao que estamos vendo, por exemplo, na Europa. Infelizmente, o futuro é sombrio”, conclui Todt.
As seguidas intervenções de Bolsonaro e seus cúmplices nas redes sociais, prescrevendo essas drogas, causou uma onda de pressão popular sobre os médicos e profissionais da área de saúde. Pesquisa da Associação Paulista de Medicina revelou que 48,9% de dois mil profissionais entrevistados em todo o país relataram pressões de pacientes ou parentes para prescrever a cloroquina e outros remédios sem comprovação científica.
Bolsonaro pressiona os deputados, que pressionam os prefeitos, que pressionam os vereadores. E o médico é convidado a participar da rede de distribuição. As famílias são convencidas de que não há salvação sem a cloroquina e se configura o que o ‘Estadão’ abordou em editorial como a rede do charlatanismo. A médica intensivista Bruna Lordão, citada no texto, sintetiza o que ocorre no ambiente hospitalar da rede pública: “As pessoas não querem saber de pesquisa científica, só do que o Bolsonaro tomou”.
Proposta petista de Reconstrução Nacional
Em seu ‘Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil’, lançado em 21 de setembro, o Partido dos Trabalhadores e a Fundação Perseu Abramo defendem medidas estruturantes para o enfrentamento da pandemia do coronavírus. A começar pela adoção de medidas não medicamentosas. Tanto o isolamento social como sua flexibilização devem ser orientados por critérios epidemiológicos e assistenciais, defende o partido no documento.
“A pandemia não é democrática, expondo a brutal desigualdade social e as fragilidades de nossa democracia, pois afeta e mata significativamente mais os mais pobres”, aponta o texto. A partir do fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS), devem ser estabelecidas medidas como a testagem em massa para, a garantia de Equipamentos de Proteção Individual (EPI) para os trabalhadores da saúde, a oferta suficiente de leitos de internação e UTIs, inclusive com o estabelecimento de fila única, e a produção e distribuição universal de fármacos e vacina, quando estiverem disponíveis.
O partido defende ainda a retomada de uma regulação e de uma articulação forte com o setor privado e produtivo da saúde e a adoção de política nacional de controle da pandemia que considere as demandas, prioridades e com pactuações definidas por estados e municípios.
“A população tem o direito a informações sobre a situação de saúde do país, devendo ser obrigatória a notificação de casos de Covid-19, bem como a disponibilização de um sistema público de informação em saúde com credibilidade e de caráter nacional, garantindo o sigilo dos pacientes”, defende o PT.