O Golpe de Estado de 2016 teve inicio com a judicialização da política e se completou com a declaração de um tribunal federal que vivemos em Estado de Exceção e por isso a um juiz é possível descumprir a lei e a constituição.
Sem grandes surpresas, apenas tristeza, pois a nossa República é fruto de um golpe militar; golpe patrocinado pela elite agrária, vingativa e ressentida.
O tal Marechal Deodoro, que dizem era um monarquista, se prestou ao papel de protagonista de um golpe que expulsou do país o imperador.
O golpe de 1889 ocorreu porque a elite não foi indenizada pela coroa em razão da abolição da escravatura.
Isso mesmo, a elite de então reivindicava do Estado brasileiro indenizações proporcionais ao preço total que haviam pago pelos escravos que foram libertados por lei; as tais indenizações seriam pagas com empréstimo externo, um absurdo ao qual o imperador não se rendeu, pois o fim da escravidão era questão que se impunha como necessária, mas que encontrava viva resistência entre as elites agrárias do país.
A consequência da não indenização foi que ela [a elite] aderiu à causa republicana; o fez não por sentimento ou ideal republicano, mas por verdadeira “vingança” contra a Monarquia (mais ou menos a mesma motivação de Eduardo Cunha ao receber e dar seguimento ao pedido de impeachment contra Dilma Rousseff).
Mas como de valores democráticos e republicanos não nasceu essa nossa Republica, ocorreram outros golpes como o de 1891.
Deodoro, o presidente monarquista, dissolveu Congresso em três de novembro de 1891 e instaurou um Estado de Sitio; tudo muito legal, afinal ele assinou decretos… Suspendeu a vigência da Constituição e os direitos individuais e políticos; o exército sempre diligente, cercou o Senado e garantiu ampla e “espontânea” adesão ao golpe… Os “subversivos” foram presos como de praxe.
E de triste memória o Golpe civil-militar de 1964, que representa uma das páginas mais sombrias da nossa história republicana, foi apoiado pelos avós ou pais de diversos dos personagens que operaram o golpe contra Dilma Rousseff e contra a democracia em 2016 e assim como no golpe de três de novembro de 1891 está “tudo legalizado” por um Supremo Tribunal Federal (STF) politizado, partidarizado e acovardado, um STF envolvido num véu que engana os contemporâneos, mas não iludirá o tempo ou a história.
Gosto de registrar que o golpe de 64 começou em 1950 com a vitória indesejada de Getúlio Vargas – indesejada pela elite de então – só não aconteceu em 1954 porque Vargas suicidou-se e, transformado em mártir, adiou a sanha de poder daqueles que não tinham e não têm voto, nem projeto para o país.
Os golpes do século XXI
Oportuno citar o grande Ricardo Lodi Ribeiro, que com costumeira elegância e inteligência, deu luz a fato dos mais relevantes: os golpes no século XXI não utilizarem mais de tanques e baionetas, mas a manipulação de argumentos jurídicos e políticos que usurpam o papel da soberania popular na escolha dos governantes, com diligente concurso de uma imprensa vergonhosa, imprensa que, segundo Millôr Fernandes, é a verdadeira oposição, o resto seria armazém de secos & molhados.
Eu não imaginei que viveria um Golpe de Estado, por isso peço desculpas aos meus filhos e aos netos que ainda não tenho por não ter participado mais efetivamente do processo político do Brasil, por não ter sido capaz de impedi-lo, por ser nada além de um mero expectador impotente diante do caos.
A judicialização, semente do golpe
O golpe de Estado que vivemos é a usurpação ilegítima do poder e ao contrário das revoluções, sobre o que podemos escrever noutro momento, tem um caráter pessoal, egoístico; o golpe busca a tomada do poder para atender o interesse de uma pessoa ou de um pequeno grupo que representa interesses que são contrários ou não são contemplados pelo establishment político.
No Brasil ele ocorreu porque os derrotados, descontentes e golpistas, incapazes de alcançar o poder pelo voto popular, buscaram (através de manobras políticas, com indispensável concurso da mídia e de parcela do Poder Judiciário) assumir a posição de Chefe de Governo e o fizeram de uma forma ardilosa: legalizaram e legitimaram a ruptura institucional instrumentalizando o Poder Legislativo e o Judiciário, sempre com concurso da mesma imprensa que apoiou o golpe de 1964, ou dela nasceu. A meu juízo, o golpe de 2016 no Brasil foi completado com sucesso.
Há inúmeros fatos para exemplificar a minha convicção, fatos que representam verdadeira esculhambação aos valores republicanos. Por favor, não me censurem pelo uso do substantivo feminino “esculhambação”, pois ele representa precisamente o que a elite servil aos interesses internacionais e o Judiciário estúpido fizeram e ainda estão fazendo.
E essa esculhambação dos valores republicanos ocorreu no padrão contemporâneo de fazer política (assim mesmo, com “pê” minúsculo) usando a mídia para dar contornos de fato positivo ou negativo conforme a conveniência, tendo a seu serviço um judiciário aristocrático para cobrir o escândalo com o véu da legalidade.
O verniz civilizado e civilizatório rompe-se com facilidade em nossa sociedade quando interesses da elite são contrariados, basta observarmos o que está acontecendo hoje; vemos o moralismo publicado a esconder interesses impublicáveis.
O Golpe de 1964 ocorreu porque o grupo que havia perdido as eleições presidenciais para Getúlio Vargas, para Juscelino Kubitschek e, em certa medida, para Jânio Quadros, não se conformava e por isso, apoiando-se nos interesses geopolíticos e econômicos do Império e ao lado dos maus militares, tomou para si o poder; tentaram rebatizar o evento nefasto de “revolução” e dar a ele contornos de legalidade e legitimidade controlando o Congresso e o Judiciário, mas o tempo e a História deram conta de sepultar a versão.
O golpe de Estado é comum em locais cujas instituições políticas são fracas, onde não existe a certeza do cumprimento de todas as normas constitucionais no que diz respeito à sucessão dos cargos políticos ou à garantia dos direitos individuais. No Brasil, as instituições estão apropriadas de uma aristocracia urbana, ciosa em preservar seus privilégios e sem nenhum compromisso com o país.
Os golpes de Estado foram muito comuns na América Latina, África e Oriente Médio no decorrer do século XX e seus principais agentes e protagonistas apareciam quase sempre como os novos salvadores da pátria, haja vista sempre acontecer algum distúrbio ou crise quando de um golpe de Estado.
Fato é que vivemos tempos sombrios, um tempo em que os golpistas lançaram mão da bandeira do combate à corrupção, como fizeram em 1954 e em 1964, mas paradoxalmente, defendem a redução da maioridade penal, o impeachment, a ruptura institucional, a venda do patrimônio nacional e a abertura dos portos às nações amigas, nada mais corrosivo.
O método do golpe e o Estado de Exceção
Tenho escrito faz algum tempo que tudo isso faz parte de um encadeamento de atos e fatos os quais, na minha maneira de ver, são os responsáveis à inflexão conservadora, sombria mesmo, que estamos testemunhando no país.
Trata-se da construção do golpe.
O golpe em curso instrumentalizou uma metodologia sofisticada:
a) a judicialização da Política;
b) a politização do Poder Judiciário;
c) a espetacularização (midiatização) do que foi judicializado;
d) a criminalização da Política, dos políticos e dos partidos políticos, de forma seletiva;
e) declaração de que o país vive em Estado de Exceção;
Eu realmente me surpreendi com o surgimento de um item “e” desse sofisticado método usado para construção do golpe e não imaginei que o Poder Judiciário declararia que vivemos um Estado de Exceção e que um juiz, apenas um, pode descumprir a Constituição e as leis.
Do Estado de Exceção
O Poder Judiciário deveria ser o guardião da lei e da Constituição, deveria ser o garantidor dos direitos e garantias fundamentais, prestou-se a declarar que vivemos em Estado de Exceção, o fez para que o Golpe de Estado de 2016 seja concluído sem os entraves que a lei e a Constituição poderiam criar.
O Tribunal Regional Federal da 4ª Região conferiu ao Juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba verdadeira “carta branca” para desrespeitar a lei e a constituição, tudo com base na “Teoria do Estado de Exceção”.
Isso mesmo, o TRF4 na decisão do P.A. CORTE ESPECIAL Nº 0003021-32.2016.4.04.8000/RS, relatado pelo desembargador federal Rômulo Pizzolatti que decidiu, por maioria, que a operação “Lava Jato” não precisa seguir as regras processuais comuns, por enfrentar fatos novos ao Direito, mais ou menos o que Deodoro fez em 1891 e o que os militares de 1964 faziam através dos Atos Institucionais.
Bem, o TRF 4 fundamentou essa temerária decisão na “Teoria do Estado de Exceção”, o que é data máxima vênia, um crime contra a nação. E o STF queda silente.
Para compreender a tal teoria é necessário olhar o que aconteceu na Alemanha após a 1ª Grande Guerra.
Vamos lá.
Terminada a Primeira Guerra Mundial, em um contexto marcado pela desordem interna e por significativa fragmentação política, submetida às restrições do Tratado de Versalhes e perante a ascensão do comunismo, a Alemanha redigiu sua Constituição.
Estamos falando da Constituição de Weimar, muito criticada, principalmente porque apesar de traçar a estrutura básica do Estado, em consonância com as constituições erigidas sob a tradição liberal, adotava em sua segunda parte um rol de direitos fundamentais individuais e socioeconômicos que se identificariam com as pretensões da esquerda socialdemocrata e comunista.
A Constituição de Weimar colocou fim ao Segundo Reich, mas não ao legado autoritário e militar do Império.
Bem, a alegada fragmentação ou contradição ideológica da Constituição de Weimar estava na base da argumentação de seus críticos.
Para Carl Schmitt, àquele tempo principal opositor da Constituição de Weimar, naquela constituição havia numerosos dispositivos que não representavam genuína decisão política da Alemanha pós-guerra e, por conseguinte, prejudicavam a construção de uma comunidade nacional homogênea.
Resultaria dessa antinomia entre a lei e a vontade ou decisão política nacional o conceito de exceção, que passaria legitimamente a ocupar o núcleo da vida política. Noutras palavras diante da existência de antinomia de impossível harmonização aplicar-se-ia a “Teoria do Estado de Exceção”.
Essa é, sob censura, a minha compreensão sobre a “Teoria do Estado de Exceção”.
O Brasil tem uma constituição, a qual em breve completará trinta anos. Trata-se de uma constituição de inspiração social-liberal, não há por aqui sistemas jurídicos antinômicos, não vivíamos, até o golpe, desordem interna ou significativa fragmentação política.
Por isso a “carta branca” concedida ao Juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba não se justifica, repito, é um crime de lesa-pátria e deve ser revogada pelo Supremo Tribunal Federal e providências tomadas, pois em não sendo assim estará decretado o fim do Estado Social e Democrático de Direito.
Conclusão
A sociedade tem de compreender que o golpe foi “um sucesso” e precisa reagir, pois estamos no século XXI, nossas instituições deveriam ser fortes e uma ruptura institucional é trágica para a nação. Se nada ocorrer, a sanha privatista seguirá destruindo as grandes empresas nacionais, derretendo empregos, avançará transferindo ao capital internacional todas as nossas riquezas, além de criminalizar a esquerda e colocar na prisão seu maior líder.
Por Pedro Benedito Maciel Neto, advogado e autor de “Reflexões sobre o estudo do Direito”, Ed. Komedi, 2007, para a Tribuna de Debates do 6º Congresso. Saiba como participar.