Lavar, passar, cozinhar, dobrar roupa, levar criança na escola, limpar a casa, gerenciar a comida, o uso do gás, da energia, o desgaste do eletrodoméstico, cuidar de parente, de idoso, essa lista de afazeres que não finda é o cotidiano da maior parte das brasileiras.
Esse trabalho não-remunerado que as mulheres desempenham nos lares brasileiros possui um impacto gigantesco na reprodução da vida humana e, consequentemente, na composição do PIB do país. No entanto, essa ‘invisibilidade estratégica’ por parte dos órgãos públicos impede uma análise mais apurada sobre o cálculo desse impacto na produção da riqueza nacional.
A criação de uma metodologia que dê conta dessa sofisticação e complexidade daquilo que é chamado “trabalho de cuidado” ou “trabalho reprodutivo” seria o primeiro passo para o país avançar nesse debate. Contornar a burocracia estatal, envolver os órgãos públicos como IBGE, convencer ‘economistas tradicionais’ e disputar a agenda política também são outros desafios colocados para as mulheres.
É sobre esses obstáculos a serem contornados que conversamos com a economista Marilane Teixeira, doutora em desenvolvimento social e econômico pela Unicamp e professora e pesquisadora do CESIT/IE. “Precisamos refinar a metodologia em relação ao que é considerado trabalho reprodutivo, cuidado e afazeres domésticos e atribui um valor a ele. Pode calcular, por exemplo, quanto custaria se você adquirisse esses serviços no mercado e o que representa isso quando é executado no âmbito da família; outra forma seria a remuneração de uma doméstica; outra seria calcular com base no salário mínimo”, explica.
Marilane explica que, no Brasil, não há metodologia suficiente em relação às tarefas de afazeres domésticos e cuidado. Até 2015, as estatísticas eram muito frágeis. Eram apenas duas perguntas: se fazia ou não trabalho domésticos e quantas horas se dedicava a isso. Com a PNAD Contínua, houve um processo de maior sofisticação. “Já falamos de afazeres domésticos e cuidados, desdobramos, quantas horas se gastam para cada um deles. Enquanto essa metodologia não for mais precisa, os resultados em relação ao PIB ainda serão muito frágeis”.
Confira a entrevista completa:
1) Qual a importância do poder público incorporar o cálculo do trabalho de cuidado na construção do PIB brasileiro?
Dar visibilidade a esse trabalho. Mas o aspecto mais importante vai além da valorização monetária: é ter nitidez de como se comporta essa dinâmica de afazeres e cuidados nos períodos de ciclos econômicos mais expansivos ou mais recessivos.
Por exemplo, quando a economia está com a taxa de desemprego alta, crise econômica, podemos calcular o quanto amplia as tarefas domésticas e de cuidado nesse contexto, o quanto aumenta a responsabilidade das mulheres; o quanto é fundamental nesses momentos ter políticas públicas para liberar as mulheres dessas tarefas, considerando que estamos vivendo em um momento de muita austeridade fiscal que é justamente a redução dos gastos.
2) Quais impactos esses dados podem trazer na vida cotidiana das mulheres?
Ela tem um efeito importante para pensar a política públicas. Quando você mede o número de trabalho realizado por homens e mulheres, no âmbito das famílias, e identifica aonde está concentrada a maior parte desse trabalho, além de medir isso monetariamente, você pode ter uma estratégia que tipo de políticas públicas são essenciais, ou seja, para onde ter que ser direcionado os gastos públicos para dar conta dessas tarefas.
Ao trazer à tona o que representa isso no cálculo do PIB, isso ajuda a dar visibilidade. Mas incorporar efetivamente no PIB é uma tarefa que não é fácil. Mas me parece que o aspecto mais importante é mostrar a grande carga de trabalho realizado no âmbito doméstico e o quanto isso pode ser pensado em termos de políticas públicas. Essa é a perspectiva mais importante, para além do debate se deve ou não remunerar as mulheres. Está a nossa tarefa de defender que o Estado cumpra com as suas responsabilidades e fornecer os serviços necessários e essenciais para a sustentabilidade da vida.
3) Na sua avaliação, por que esse dado ainda não é feito de forma mais precisa no Brasil? Que interesses poderiam estar por trás dessa “invisibilidade”?
Apesar dos avanços da PNAD Contínua, a apuração de dados ainda é feita em apenas uma visita. Para fazer uma pesquisa de fato do uso do tempo, você teria que acompanhar uma família durante um longo tempo. Disponibilizar uma caderneta que anota todas as tarefas. Quando se faz uma visita, não é possível captar a quantidade de trabalho e aspectos importantes podem passar.
No Brasil, sempre tivemos muitas dificuldades com o básico de estatística de uso do tempo, em discussões com o IBGE. Sempre teve muita reserva em relação a isso. Cálculo do PIB não é fácil. É necessário é ter um certo entendimento, nitidez, sofisticação, progresso e entendimento do debate por parte dos órgãos públicos. Por eles, esse trabalho continuaria na invisibilidade eternamente — porque mexe com a burocracia estatal, economistas tradicionais que só enxergam valor naquilo que pode ser medido monetariamente por meio do valor de troca realizado no mercado.
4) O trabalho de cuidado é central na reprodução da vida humana e da força de trabalho. É possível também fazer um cálculo que vá além da realização das tarefas em si — que meça as oportunidades que o trabalho feminino garante a quem é atendido por ele?
Nós estamos ainda no estágio anterior que é a capacidade de desenvolver uma metodologia que seja suficientemente, que consiga captar o volume de trabalho realizado no âmbito das famílias.
Nem tudo pode ser transformado em mercadoria e medido monetariamente. Levar um filho para brincar no parque e ajudar com as tarefas de casa não pode ser medido monetariamente, mas em compensação são trabalhos fundamentais que vão definir o caráter e as opções de vida que essas crianças e adolescentes vão realizar na fase adulta.
Uma parte precisa ser compartilhado no âmbito da família e a outra parte precisa ser garantido pelo Estado: creche, saúde, educação, espaços adequados para a velhice, restaurantes coletivos, lavanderias coletivas, para os bens comuns. que garante o bem-estar. Medir o trabalho além do seu valor monetário está na possibilidade da gente incidir sobre as políticas públicas.
Ana Clara Ferrari, Agência Todas