Nos últimos três anos, o Brasil parece confirmar o retorno ao regime da autocracia dos ricos, materializado, cada vez mais, pelo exercício do governo por si próprio, conforme definição grega. A personificação dos ricos no poder não seria inédita no país, uma vez que durante a longa e tortuosa transição do autoritarismo (1964-85) para a democracia, Florestan Fernandes chamou a atenção para o recurso da composição pelo alto a reproduzir histórica reordenação das forças dominantes no interior do mesmo bloco de poder.
Nesse sentido, a recente ascensão do governo Bolsonaro, após a emergência do golpe liderado por Temer, expressaria a remodelação do padrão de reprodução dos ricos e a recomposição das forças dominantes instaladas no bloco de poder dirigente durante o ciclo político da Nova República (1985-2015). De maneira geral, o precoce processo de desindustrialização nas últimas três décadas foi acompanhado pelo inchamento dos negócios no setor de serviços, amparado por baixa produtividade e dependência do orçamento público.
Trajetória inversa à verificada na passagem do velho agrarismo para o ciclo da industrialização nacional durante as décadas de 1930 e 1980, quando enormes parcelas de trabalhadores rurais se deslocaram para as atividades urbanas de manufaturas e serviços de produção com elevada produtividade. Assim, as antigas atividades de subsistência no campo foram sendo substituídas por ocupações novas e modernas nos setores industriais e de serviços.
Ao mesmo tempo, o padrão de reprodução dos ricos associava-se ao investimento privado e que mesmo em parceria com o setor público dependeria da expansão dos mercados de consumo. Com isso, a constituição de burguesia dirigente com certo discernimento acerca da importância do projeto de longo prazo do desenvolvimento da nação.
Mas com o abandono do ciclo de industrialização nacional, os ganhos de produtividade seguiram praticamente estancados diante da perda dos empregos industriais sem a compensação da trajetória de terciarização da economia nacional. Isso porque as atividades que mais cresceram foram as vinculadas mais ao inchamento dos serviços tradicionais do que as tecnologicamente mais avançadas.
Destroem-se, por exemplo, empregos de remuneração em torno de 70 mil reais anuais na manufatura ao mesmo tempo em que expandem ocupações de menos de 15 mil reais por ano em atividades do comércio e serviços em restaurante, asseio e segurança.
Com isso, o padrão de reprodução dos ricos até então vinculado ao desenvolvimento da manufatura e serviços de maior produtividade foi sendo corroído pelo enriquecimento do patronato associados às atividades mais tradicionais, cuja produtividade comprimida os torna crescentemente dependentes do próprio orçamento governamental.
Esse parece ser o caso dos negócios conduzidos no mercado financeiro, agronegócio, comércio varejista, religiões, crime organizado, milícias, serviços privados (saúde, educação, previdência) e alta burocracia e carreiras do Estado.
Em meio à desindustrialização e estagnação da produtividade, a antiga burguesia industrial enfraqueceu e assistiu, por consequência, à emergência dos novos enriquecidos, herdeiros do inchamento dos serviços de baixa produtividade a se reposicionar no interior do bloco de poder dominante em direção à reprodução dos seus próprios interesses imediatos.
Por dependerem do orçamento público em termos da sonegação, desoneração, isenção, subsídios fiscais e creditícios, do perdão de dívidas públicas, da prevalência de elevadas taxas de juros, entre outras, constituem base no executivo e parlamento capaz de patrocinar a reorientação do Estado a seu favor.
A interrupção das políticas inclusivas e o desembarque dos pobres e agora também da classe média do orçamento público torna mais confortável o exercício da autocracia dos ricos numa economia sem dinamismo e dominada por inchado setor de serviços de contida produtividade.
A asfixia dos recursos públicos se apresenta seletiva e orientada ao atendimento dos novos enriquecidos, com o desmanche das políticas inclusivas e a privatização que amplie fontes de riqueza a ser explorada nas atividades até então exercidas pelo Estado.
Com isso, a autocracia dos novos ricos se beneficia amplamente. De um lado, pelo corte de recursos públicos não financeiros que trata de acomodar a dependência à sonegação e perdão de dívidas, à desoneração, isenção, subsídios fiscais e creditícios e ao rentismo sustentado por altas taxas de juros.
De outro, pela transformação das funções de estatais e dos serviços públicos em negócios a serem explorados privadamente pelos herdeiros do inchamento do setor de serviços diante da ausência de investimentos que sustentem a expansão produtiva nacional.
Em função disso, o governo Bolsonaro constitui apenas parte, ainda que importante, dos atuais problemas nacionais. O maior entreve identificado pela volta do regime autocrata assenta-se, contudo, no reposicionamento dos novos enriquecidos pelo inchamento do setor de serviços no interior do bloco de poder.
Marcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho, ambos da Universidade Estadual de Campinas
*Artigo publicado originalmente na Rede Brasil Atual