Aulas de informática, inglês, teatro, música, dança, alongamento ou mesmo as horas dedicadas ao carteado, dominó, à conversa, à leitura do jornal ou simplesmente ao ócio. Estar no Centro de Referência da Cidadania do Idoso (Creci), no Vale do Anhangabaú, região central da capital paulista, é muito mais do que passar o tempo em um ambiente acolhedor e agradável, ou compartilhar momentos com pessoas com alegrias, angústias, aflições, sonhos e lembranças parecidas. É exercitar a plenitude da cidadania que revigora o corpo e a mente para as lutas pelos direitos e pelo respeito aos cabelos brancos.
Lutas vitoriosas, aliás. No último dia 18, os mais de 400 usuários que diariamente participam das atividades do Creci impuseram mais uma derrota ao prefeito de São Paulo, João Doria (PSDB). O projeto do tucano de aproveitar o término do contrato com a Coordenação Regional das Obras de Promoção Humana (Croph), organização não governamental que administra o Creci, para encerrar as atividades do espaço teve de ser retirado. Por meio de nota emitida pelo titular da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (Smads), Filipe Sabará, a gestão afirmou que não encerrará as atividades do Creci.
E mais: que a pasta nunca cogitou esta possibilidade. O que ocorre, segundo o comunicado oficial, e que a Croph “está com contrato com a prefeitura perto do término e que necessita de adequações para continuar operando”. A prefeitura informou ainda que, após instaurar uma comissão formada por usuários e profissionais do serviço, com apresentação de ideias de melhorias no atendimento, “concluiu que além da permanência no local, serão implantados dois núcleos de convivência de idosos que contemplam o atendimento a domicílio”. E que o Creci “passará por adequações para atendimento às normativas da tipificação nacional de serviços socioassistenciais, mas continuará ofertando melhoria da condição de sociabilidade de idosos e redução e prevenção de situações de isolamento e de institucionalização”.
“O Creci ficará onde está e será melhorado. Nossa vitória. A pessoa idosa da cidade amiga do idoso ganha e sai fortalecida”, comemorou a gerente Elisabete Maria João, logo após o anúncio de Sabará. Bete, como é mais conhecida, esteve ao lado de usuários, funcionários, voluntários e apoiadores, que fizeram atos, caminhadas e abriram abaixo-assinado, que já recolheu mais de 4 mil assinaturas, em defesa da preservação do centro de referência.
Vitória da população
A projeto de fechamento do Creci e a oferta de espaços improvisados em outros pontos da cidade, aos quais só terão acesso os moradores da região, e sem o compromisso com programas de fortalecimento da cidadania da pessoa idosa, é mais uma das trapalhadas autoritárias da administração do gestor Doria. Do dia para a noite, sem debate com a população, com os trabalhadores e com os mecanismos de controle social, a administração comunica seus planos. Se houver forte pressão popular, a gestão recua e adota a famosa postura do “João sem braço”: Por meio de entrevistas e comunicados oficiais das diversas pastas, afirma que tal política jamais havia sido cogitada.
Foi assim com a proposta fracassada de fechar farmácias existentes dentro dos postos de saúde e passar a distribuir medicamentos em grandes redes farmacêuticas, como a Drogasil, que não têm unidades nos bairros mais periféricos do município. Diante da perspectiva de ter de pegar até duas conduções para ir buscar seus remédios, usuários do serviço, trabalhadores e movimentos endureceram a resistência. E o fim das farmácias do SUS, analisada desde o início do mandato, em janeiro de 2017, foi arquivado.
Outro projeto que o prefeito teve de retirar, em julho, diante da pressão popular, foi o de acabar com o programa de acolhimento Jovem SUS, criado na gestão de Fernando Haddad (PT). A estratégia simples, que consiste em estagiários treinados pela Secretária da Saúde para acolher e orientar usuários – os jovens SUS –, que comprovadamente melhorou o fluxo do atendimento nas unidades básicas de saúde e até a adesão dos pacientes ao tratamento, acabaria da noite para o dia com a demissão sumária dos estagiários.
Conquistas
Articulada, altiva e ativa aos 82 anos, a chilena de nascimento Olga Quiroga vive no Brasil há 58 anos, dos quais 54 anos dedicados aos movimentos sociais de moradia e de saúde na região do Ipiranga, zona sul. Das lutas das quais participou, algumas conquistas importantes, como a criação da Defensoria Pública em São Paulo, em 2006, a de diversos outros espaços da rede de proteção social e do próprio Creci, em 2004, na gestão da então prefeita Marta Suplicy, eleita pelo PT e hoje senadora pelo MDB. Mas ela vai dar seu apoio a outras reivindicações também, como dos estudantes secundaristas que em abril de 2016 ocuparam o Centro Paula Souza em manifesto contra a chamada Máfia da Merenda.
Dona Olga conta que nesses 13 anos de história, o centro de referência sediou encontros e debates que deram origem a outros coletivos do movimento social. “Aqui montamos uma rede de proteção do idoso. Realizamos palestras, discutimos aposentadoria, um direito que muitos nem sabem que têm. Reunimos gente que mora perto, na avenida São João, mas também do Pari, Parelheiros, Ipiranga, da zona leste inteira, de outros municípios, como Guarulhos, Taboão da Serra, Embu das Artes. Pra cá vem idoso de todo lugar, que vem em grupos de até 50 pessoas. Tem doente que vem de outros estados para tratamento na Santa Casa e que passa o tempo livre aqui, já que não conhece a cidade. Já cadastramos aqui muito idoso para o movimento de habitação. Aqui montamos a rede de proteção do idoso, do qual o Creci faz parte e sedia reuniões”, diz.
“Sem contar que o Creci recebe pesquisadores da USP Leste, da PUC de São Paulo e de outros centros, que fazem aqui muitos estudos que embasam reivindicações. Em 2016, 137 idosos caíram na Rua Direita (região central paulistana). E 47 quebraram a bacia. Não é todo idoso que tem mais de 200 reais para comprar sapato antiderrapante.”
Segundo ela, até o anúncio da gestão Doria, de que até março fecharia o Creci, a reivindicação dos usuários era a criação de outras unidades do serviço, no mesmo modelo, em cada uma das macrorregiões da cidade. Com isso, haveria um centro de referência da cidadania do idoso na zona norte, sul, leste e oeste.
“Mas não avançou. Há muita resistência em se tratando de idoso, que nunca é ouvido. Quando me chamam a falar, eu sempre digo: mesmo que ele só fale abobrinha, tem de deixar falar. Porque muito idoso, que está sozinho, começa a falar com as paredes. E se fechar o Creci, todos esses idosos irão para a rua”.
Pelas suas projeções, já há mais de mil idosos nas ruas de São Paulo. “Só no entorno do Pátio do Colégio, já contei mais de 130 idosos. A gente vai conversar e ouve histórias assim: ‘saí de casa porque minha nora estava grávida e precisava do quarto para o bebê. Eu não sou mais importante’”, lembra dona Olga. Sorridente e com brilho nos olhos, afirma que a pessoa idosa consciente, quando exige que um jovem desocupe o lugar reservado no ônibus e no metrô, por exemplo, está zelando pelas gerações futuras. “Estamos brigando por direitos que um dia serão deles”.
Mais um entre tantos ataques aos direitos conquistados pelos trabalhadores
Uma das especialistas que assessorou a criação do Creci, a professora aposentada do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Envelhecimento (NEPE), da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, Maria Antonieta Guerriero, 90 anos, vê com tristeza o projeto de fechamento do espaço – mais um entre tantos ataques aos direitos conquistados pelos trabalhadores. Para ela, não é fácil chegar aos 90 e assistir a investidas e desmonte das políticas.
“Só se chega a essa idade trabalhando e lutando. Nós estamos em uma época de luta contra ataques que vão para além das ameaças: é um ultraje. Quando há mudanças nas leis trabalhistas, é que já se fez. Não é mais ameaça. É uma situação de total falta de respeito. Como isso aqui, de querer fechar o Creci sem ouvir ninguém”, critica. “O Creci é um centro de referencia da cidadania do idoso. Olha só a colocação: cidadania. Trata se de um serviço criado há 13 anos, que já se consolidou. Frequência diária de 400 pessoas, segundo a própria Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social.”
O que diferencia o Creci de outros espaços de convivência dos idosos, segundo dona Maria Antonieta, é ser um serviço promotor de cidadania. “Aqui discutimos quais são as necessidades essenciais, como estamos sendo satisfeitos para viver, o que significa viver em conjunto, o que é a vida do cidadão em uma cidade desse tamanho, extremamente difícil. É essa área é povoada de idosos sozinhos que aqui encontram bem estar, convivência e companhia. E se está consolidado, para que mudar?”, questiona.
Dona Maria Antonieta avalia que o fechamento de um espaço como o Creci trará imensos prejuízos às pessoas idosas que vêm das mais diversas regiões. A mobilidade é um dos principais, segundo ela, uma vez que a localização, em terreno plano, próximo a terminal de ônibus e estação de metrô é adequada para todos.
“Com uma condução é possível vir de qualquer parte da cidade. E depois, é uma estrutura que funciona. E quem se movimenta é velho. É esse o tratamento que querem dar? Pense um pouco: eu sou velha. Eu sei o que é se movimentar pela cidade. Não se pode tirar o idoso de uma situação de conforto, quebrar vínculos que existem aqui, afetividade, bem estar, companheirismo, quebrar a unidade do trabalho. É falta de respeito com o idoso, com os cabelos brancos. Cabelo branco merece respeito. Senão, não adianta envelhecer. Pra que investir para a longevidade se não oferecer dignidade?”
Postura autoritária é marca da gestão Doria
Objeto de pesquisas sobre gerontologia e geriatria conduzidas por universidades brasileiras e política pública voltada à pessoa idosa de destaque, que atrai o interesse e a visita de gestores e especialistas de cidades estrangeiras, o Creci é uma entidade que conquistou muitos amigos nesses 13 anos.
Além de voluntários, que vão ao centro ministrar cursos e oficinas, há ainda apoiadores. São pessoas que, embora não frequentem o espaço, saíram em defesa de sua preservação e já fizeram ali muitos amigos. Entre elas, a jornalista e servidora aposentada do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, em São Paulo, Alice Gurgel do Amaral. Aos 71 anos, a presidenta da Associação dos Aposentados da Justiça do Trabalho (Aajust) divulgou carta aberta em defesa do centro de referência.
Com doutorado em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da USP e pós-doutorado pela Université Paris 1 – Sorbonne, Dona Alice critica a condução autoritária da política do prefeito. E acredita que uma outra postura de Doria em relação ao Creci poderia até trazer uma repercussão positiva para o currículo do prefeito. E destaca: “As pessoas mais velhas nesse país contam com o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003), que deve ser respeitado”. E adverte o prefeito com uma frase em latim: Ignorantia legis neminem excusat, que significa “A ignorância da lei não excusa ninguém”.
Na carta, a aposentada é veemente em seu convite ao prefeito, para que visite o local, que considera “ordeiro, feliz e revigorante”. “O senhor sabia que isso é saúde e bem estar? E que estes temas estão em moda, hoje em dia, e até podem dar votos? Nós garantimos, senhor prefeito, como pessoas simples que somos, do povo, que manter o Creci ajudaria a melhorar a fotografia da cidade linda”, provoca.
O aspecto da convivência social enquanto fator de promoção do bem-estar e prevenção de doenças também é apontado. “Saúde não é um fenômeno limitado à Medicina. É fenômeno social e cultural, econômico, técnico e político”, afirma.
Mais do que impor uma importante derrota ao gestor, essas pessoas em maturidade e sabedoria plena, que exibem com orgulho o branco dos cabelos, ensinam que o gestor ainda tem muito o que aprender.
Da RBA