Uma crise inédita exige medidas extraordinárias, com amplo aumento do gasto público e ações emergenciais em prevenção, tratamento e pesquisa, alertaram economistas durante debate realizado na manhã desta terça-feira (17) na Fundação Perseu Abramo, em São Paulo, que contou com a colaboração do Instituto Lula. Eles avalariam os cenários econômicos no Brasil e no mundo, criticaram iniciativas – ou falta delas – do governo brasileiro e pediram coordenação, protocolo único para orientar as pessoas e evitar pânico.
Foi, por sinal, um debate com a cara da crise: transmissão via Facebook, participantes a certa distância um do outro e acesso restrito de pessoas. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegou a ser incluído entre os debatedores, mas ele permaneceu em casa, aderindo a uma recomendação de confinamento.
Várias vezes foi citada a crise financeira de 2008, mas os economistas salientaram as diferenças. “Era só uma crise financeira, especulação dos ativos. Agora, você tem a economia real travada”, comparou o ex-ministro Aloizio Mercadante. Vamos precisar de medidas extraordinárias”, acrescentou, considerando a Emenda Constitucional 95, do teto de gastos públicos, “uma tragédia, especialmente no momento em que o Estado precisa fazer uma política anticíclica”.
Sem ‘dinheiro novo’
Mesmo o pacote anunciado ontem (16) pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, está longe de resolver o problema – a maior parte dos anunciados R$ 147 bilhões são antecipação de gastos. “Não tem dinheiro novo”, criticou Mercadante. Ele cita ainda o fator político como agravante: “Nós temos um governo que gera instabilidade permanente, tensionando as instituições, não tem limite prudencial, passando todos os limites da razoabilidade”.
É preciso, principalmente, aumentar os cuidados para a população mais vulnerável. “O que nós queremos é proteção dos mais pobres, dos 41% que vivem na economia informal. Como é que você manda um cidadão para a quarentena se ele não tem como sobreviver?”, questiona Mercadante.
Outro ex-ministro, Nelson Barbosa, que está na Suíça, lembrou algumas ações já adotadas por países europeus, como empréstimos e programas de proteção ao emprego, e disse que o Estado brasileiro também deve – e pode – agir. Apesar de certas amarras legais.
“Pelas regras do teto (de gastos) você poderia amanhã mandar um crédito extraordinário ao Congresso, aumentando as verbas para a saúde, caracterizando isso como despesa urgente e imprevisível. O teto de gastos admite isso. Apesar dessa possibilidade, o governo não pode fazer isso imediatamente, porque tem a meta de superávit primário. Vai ter que cortar em outro lugar. No segundo semestre muito provavelmente será necessária uma nova rodada de medidas. Uma medida óbvia é disponibilizar linhas de crédito. Temos um banco com 200 bilhões de reais: o nome desse banco é BNDES”, diz Barbosa.
Prioridade é o social
Mas em momento de crise, as prioridades mudam, ressalta, sugerindo auxílio a setores como serviços, turismo e transporte aéreo. “Países estão fazendo isso, sem condicionante.” Ela chama a atenção ainda para os efeitos da precarização do trabalho e a necessidade de buscar alternativas para esse segmento. “Cai abruptamente a demanda por serviços. Esses trabalhadores não têm proteção social, seguro-desemprego, seguro-saúde. No mundo todo, está se discutindo como discutir um seguro de renda para os trabalhadores por conta própria.”
Outra linha de ação, mais estrutural, está ligada ao fato de que a economia já precisava de aumento de investimento antes dessa crise. “Parte desse problema é a redução do investimento público. São quase 5 mil obras paradas. É possível alocar recursos extraordinários para completar essas obras. Não estamos nem falando de projeto novo. Para fazer isso, será necessário adaptar as regras fiscais. Mas do ponto de vista econômico é perfeitamente possível fazer isso.”
Professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Guilherme Mello afirmou que o cenário é ainda pior que uma guerra, em que a economia segue funcionando. “O nosso cenário atual é tão diferente que, na verdade, a gente parte de uma paralisia do setor produtivo global. As grandes potências do mundo paralisando sua produção, tanto industrial como de serviços”, afirmou, também fazendo diferenciação sobre a crise de hoje e a vivida em 2008.
“Essa crise também tem uma característica diferente. A de 2008 nasce como sendo de crédito no mercado norte-americano, torna-se financeira, todo mundo passa a vender seus ativos… E impacta o setor produtivo”, diz Mello. “Qual era a solução (em 2008)? Resolver a crise de crédito, o que criava as condições para retomada do setor produtivo. Hoje, o que você vê? Os Bancos Centrais do mundo em desespero injetando liquidez nos mercados financeiros, que continuam afundando. Como a crise tem origem no setor produtivo, o investidor não vai comprar ação, porque as empresas estão paradas. O máximo que você consegue adiar é a quebradeira generalizada do setor bancário.”
Apoio ao SUS e reforma tributária
Os impactos de longo prazo também serão diferentes, observa o professor da Unicamp. “As empresas vão retomar atividade mais endividadas (vão ter que pegar crédito agora), vão ter eventualmente impostos que deixaram de pagar agora. Se o governo não fizer nada, essas empresas vão estar completamente sufocadas, com sua receita comprometida. Muitas vão quebrar, pequenas principalmente. Diante da diferença dessa crise, a atuação do Estado também precisa ser diferente.”
Ao citar os gastos vultosos de outros países, inclusive os Estados Unidos, no combate à crise, ele critica o “pacote” de R$ 147 bilhões anunciados ontem pelo governo brasileiro, “que nem é dinheiro novo”. “A gente tem dois problemas graves: uma crise de raras proporções está afetando o capitalismo global. Segundo, nós não temos um governo à altura do momento. O Paulo Guedes ontem dá uma entrevista falando que os idosos têm que ficar em casa e os jovens trabalhar. O jovem trabalha, volta e passa a doença para o idoso. É impressionante a irresponsabilidade das autoridades brasileiras.”
A possibilidade de uma crise longa duração exige outras medidas do Estado, insiste Mello: apoio ilimitado ao SUS, aos mais pobres, informais, pequenos empresários. E uma reforma tributária, para evitar que, mais adiante, setores liberais peçam novas mudanças na Previdência, por exemplo, alegando endividamento do Estado.
Ele destacou o fato de o país dispor de bancos públicos. “Graças aos esforços dos militantes, a gente não privatizou a Caixa, o Banco do Brasil, o BNDES. Precisamos de uma repactuação das regras fiscais, uma reforma tributária verdadeira, solidária, que vá em cima de quem pode contribuir. O setor público vai ter que ser o indutor, o organizador”, defende.
“Fora da caixinha”, pela vida
Para Artur Araújo, consultor da Federação Nacional dos Engenheiros, o mundo vive, simultaneamente, crises financeira, econômica e epidemiológica. É como se a gripe espanhola de 1918 e a Grande Depressão de 1929 ocorressem ao mesmo tempo, comparou. “Situações inusitadas obrigam a pensar inusitadamente, obrigam a pensar no famoso ‘fora da caixinha’. A gente tem que limpar a visão religiosa da economia, limpar paradigmas. Nós já vínhamos numa crise econômica séria, andando de lado há anos. E tem um elemento chave: vivemos há um ano uma contínua crise política-institucional. É um governo que cria uma crise por dia. E isso na atividade econômica é tétrico”, analisa.
Ele propõe pensar em saídas a partir de três eixos, o primeiro deles o da vida. “O grande objetivo de qualquer programa econômico, político, social, é salvar vidas, o que significa dinheiro ilimitado para o SUS, para contenção, prevenção, tratamento, pesquisa e contratações emergenciais.”
Isso pode significar déficit, endividamento, emissão de moeda? Sim, diz Araújo, lembrando que o momento exige alternativas assim. “E é dinheiro novo, remanejamento não responde a isso. Não vai ter gente nas ruas, consumindo. O informal vai diretamente pra zero”, diz, citando como exemplos motoristas e entregadores de aplicativos.
“Esse pessoal tem que receber imediatamente socorro do Estado. Imagine milhões de pessoas confinadas em casa sem comida. É um cenário de terror, e não podemos chegar a ele”, alerta Araújo. Pequenas, médias empresas, também têm que ser socorridas. Socorro a estados e municípios. São eixos que o governo nem chegou perto deles.”
Protocolo único
A presidenta nacional do PT, deputada Gleisi Hoffmann (PR), disse que falta liderança por parte do governo, e defendeu um “protocolo único” de conduta para orientar a população. Porque hoje, lembrou, cada autoridade vem fazendo e falando coisas diferentes. Ela também defendeu medidas como estabilidade no emprego durante a crise, sem corte e salário. Lembrou que a greve geral da educação, amanhã (18), está mantida, mas sem manifestações de rua.
“O Estado brasileiro deveria estar preparado para todos os cenários, que deveriam ser desenhados por um comitê de crise, que sequer foi instalado no Brasil”, lamentou o ex-ministro e ex-prefeito Fernando Haddad. Ele aponta declarações contraditórias de representantes do governo. ” Isso só acontece porque o Brasil está sem comando, sem centralidade. Já perdemos algumas semanas preciosas”, afirma.
Haddad lembra que parte do mundo já vem trabalhando com taxas negativas de juros, por exemplo. “O SUS não pode, neste momento, ficar contingenciando recursos”, disse o também ex-candidato à Presidência, acrescentando que o governo Bolsonaro também tentou “desmontar” o Sistema Único de Assistência Social (Suas). “Se isso tivesse sido aprovado, e seria aprovado sem o esforço da oposição, estaríamos numa situação ainda mais dramática. Não podemos mais viver com tanta incompetência, é muita bateção de cabeça.”
Em 2008, houve comando e coordenação, salientou. “Geramos emprego, geramos soluções. Comando, coordenação. Acho que o que está faltando é cair a ficha. Agora, não podemos esperar o Bolsonaro ter juízo. Vai sair um mundo diferente dessa situação.”