Partido dos Trabalhadores

Socorro Silva: A esquerda e a luta de classes no contexto brasileiro

Os intelectuais da esquerda brasileira desaprenderam a aprender com o povo, e achando que sabem tudo, seus conhecimentos definharam com a própria falência do paradigma positivista

Foto: Roberto Parizotti/ CUT

A ESQUERDA E A LUTA DE CLASSES NO CONTEXTO BRASILEIRO: ONDE ESTÃO OS INTELECTUAIS ORGÂNICOS?

 

“Mais uma vez, os homens, desafiados pela dramaticidade da hora atual,
se propõem, a si mesmos, como problema.
Descobrem que pouco sabem de si, de seu ‘posto no cosmos’,
e se inquietam por saber mais”
(PAULO FREIRE, 1981)
Escrever é um ato de autorreflexão que exige manter o otimismo e a celebração das vitórias, mas, sem dúvidas, significa pensar o presente sob o alicerce dos ensinamentos do passado e, com mais ousadia, reinventar o tempo futuro. Poderia escrever para discutir os rumos da economia no Brasil, analisar os nossos inimigos, falar do jogo de cartas marcadas do golpe e o papel da grande mídia, do judiciário, das elites locais e nacionais, do machismo que se impõe como força de lei sobre as mulheres cotidianamente, do qual Dilma foi vítima, mas quero refletir sobre a esquerda brasileira.

O diálogo entre Paulo Freire e Boaventura de Sousa Santos tem inspirado a escrita da tese de doutorado e, sem dúvidas, é o estudo da Educação Popular que mantém a realidade brasileira como tema permanente de minha preocupação, contexto do qual me ocupo, estando em Portugal, em razão de intercâmbio científico no Centro de Estudos Sociais (CES). Por isso, a intencionalidade político-pedagógica de nossa pesquisa é uma opção de releitura e de reinvenção dos saberes populares como poder educativo de libertação que os oprimidos têm desenvolvido como força contra-hegemônica aos sistemas produtores de desigualdades.

A reflexão dos dias solitários, em Coimbra, no dia da votação pela deposição da presidenta eleita Dilma Rousseff, depois disso, as ofensivas contra as classes populares e trabalhadores assalariados com a aprovação da PEC/55, a desesperança de parte da esquerda brasileira diante da política de alianças com a indolente e preguiçosa elite brasileira, como analisa Boaventura Santos (2014): “entraram em alianças com forças políticas conservadoras que, historicamente treinadas para dominar o poder, foram sabendo extorquir cada vez mais concessões que acabaram por desfigurar ou eliminar os programas que mais potencial tinham para mudar as relações sociais de poder.”; esses elementos contribuem para análise da realidade brasileira, mas é sobre a totalidade da esquerda que, sendo indiferente em relação à luta de classes, motiva-me a sair do silêncio da escrita da tese. Mas nosso silêncio é como aquele que veio da Marcha do Silêncio em Chiapas (1992), cuja sintaxe é retumbante: “Nossas dores não diminuirão por nos abrirmos aos que fazem sofrer o mundo. Escutaram? É o som do seu mundo desmoronando. É o do nosso ressurgindo. O dia que foi o dia, era noite. E noite será o dia que se tornará o dia.”

É a partir dessa manifestação de resistência que questiono: por que a luta de classes se esvaziou como dimensão estratégica da esquerda? Para onde marcha o silêncio dos intelectuais orgânicos da esquerda brasileira?

A esquerda brasileira, na luta pelo poder, revelou sua ingenuidade na convivência com as elites, sob a égide do “mito fundador do homem cordial”, como analisa Iannini (2015): “Somos uma pátria una, sem divisões de classe ou de raça. Esse é nosso mito fundador, que, contudo, contrasta com a percepção mais cotidiana de nossa realidade. Do alto do meu apartamento na zona sul, vejo mendigos na praça ou a favela […]”.

É sob esse julgo de dominação e de exploração que a elite brasileira tem constituído seu repertório reacionário, seu conteúdo colonial e sua ignorância indolente. Mas a luta de classes não se perdeu, nem acabou com o entusiasmo da esquerda, ao assumir as funções do Estado com a eleição de governos progressistas e populares, tampouco se difundiu com a execução de programas sociais de redistribuição de renda e de redução das desigualdades socais, condições para as classes populares e os setores operários avançarem em sua consciência de classe para luta por reformas, como defendia Rosa Luxemburgo (1988): “reforma e revolução não se opõem, mas que a luta por reformas é a maneira de educar politicamente o proletariado, de levá-lo a adquirir consciência de classe. No entanto, as reformas não alteram o caráter básico do capitalismo, nem resolvem suas contradições.” Ainda que, sob governos progressistas, é preciso estar atento às leituras das bases fundacionais do capitalismo.

Como previsto por Karl Marx (1888), “o fim do capitalismo significaria o fim da luta de classe”. Ora, o capitalismo se mantém pujante. Por um lado, expande-se em seu processo de globalização colonial na destituição do estado social; por outro lado, coloca o Estado como principal instrumento de expansão do capitalismo no mundo.

Diante dessa realidade, a dimensão da luta de classe como conteúdo das lutas anticapitalistas foi se perdendo como possiblidade de alternativa na correlação de força. Apesar de esquecida nos estudos teóricos, a análise da luta de classe vai se impondo na realidade em vários contextos do mundo e, novamente, questiona os pesquisadores, a exemplo da estudiosa do Centro de Estudos Sociais, em Portugal, Irene Ramalho (2016), que retoma essa questão ao refletir sobre a eleição de Trump: “Vejo-a [eleição de Trump] antes como o retrato fiel da degradação política, social, econômica e moral a que chegou esta nação, com os dois principais partidos a menosprezarem o governo e o serviço público – o republicano a radicalizar-se à direita e o democrático a esquecer-se da luta de classes. Ao contrário da esquerda, a direita adotou a luta de classes como estratégia principal para manter sua tática de rearticulação das forças capitalistas e conservadoras para retomada do Estado como centro de seu poder e sustentação do capital.”

Para isso, basta observar as reformas e os pacotes do Temer, no Brasil e as medidas de austeridade impostas à Grécia, com avanço significativo dos “homens do capital” na política sob a orientação dos organismos financeiros internacionais.

Ao ignorar o capitalismo, a esquerda brasileira tem negado um de seus instrumentos principais: a correlação de forças na luta de classe. “[Homem] livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, burgueses de corporação e oficial, em suma, opressores e oprimidos, estiveram em constante oposição uns aos outros, travaram uma luta ininterrupta, ora oculta, ora aberta, uma luta que de cada vez acabou por uma reconfiguração revolucionária de toda a sociedade ou pelo declínio comum das classes em luta.” Karl Marx (1888), atualiza nossa teoria, mas é a realidade social, notadamente a luta de classe estabelecida no Brasil, na atualidade, que desafia os intelectuais orgânicos da esquerda para sua ressignificação em torno de um projeto de “Brasil Livre” do colonialismo interno que impede qualquer matriz emancipadora de sociedade.

Longe de reafirmar o discurso do sonho do “salvador” que será dirigido pelo “intelectual orgânico” das “incultas massas”, como dizia Paulo Freire (2012): “Seu discurso esperançoso às massas não é o discurso de quem se pensa libertando os outros, mas de quem convida os outros para libertarem-se juntos”. A partir dessa perspectiva, compartilhamos do conceito de intelectual orgânico defendido por Frei Betto (1985): intelectual orgânico é aquele que, efetivamente, está ligado ao movimento popular [classes populares], e cuja função é abrir o leque, abrir o ângulo e permitir que as pessoas entendam sua luta, os seus conflitos e os seus problemas, dentro de um contexto mais profundo, mais dinâmico, mais histórico e mais global. Esse pensamento desafia a superação do individualismo, que passa, necessariamente, pela negação do intelectual profissionalizado para uma postura de intelectual orgânico.

Certamente, isso significa que os intelectuais da esquerda devem ser capazes de superar sua versão profissionalizada da velha burocracia que secundarizou a luta política; que requer o abandono do eurocentrismo que se reproduz pelo silêncio colonial de sua vida acadêmica, que requer a reinvenção da leitura da palavra a partir da leitura da realidade e que estejam passo a passo com o sonho da libertação das classes populares.

Para isso, é necessário que os intelectuais superem a ilusão da lógica capitalista entre “direitos financeiros” e direitos sociais, que materializa sua indiferença e que financia suas seis refeições diante da miséria e da fome de milhares de brasileiros; sua indiferença que financia a segurança de suas casas, erguidas sobre a violência que tem exterminado a juventude negra na periferia; sua indiferença por sua moradia arquitetônica, diante ainda de muitas casas de pau-a-pique; sua indiferença por ter um emprego diante de milhares de jovens desempregados ou trabalhadores em situação de escravidão; sua indiferença por ter um carro do ano, diante de uma maioria que depende de um péssimo e caro sistema de transporte público; sua indiferença que faz sucumbir uma posição política ativa como intelectuais orgânicos diante da violência policial contra milhares de jovens, nas manifestações em Brasília contra o governo ilegítimo, sua indiferença diante da ofensiva do agronegócio contra as vidas dos povos originários (indígenas), contra o movimento dos sem-terra, contra os direitos das gerações atuais e futuras de acesso à universidade, entre tantas outras situações de opressão e de dominação no mundo.

Como dizia Gramsci (1917), “Odeio os indiferentes também, porque me provocam tédio as suas lamúrias de eternos inocentes. Peço contas a todos eles pela maneira como cumpriram a tarefa que a vida lhes impôs e impõe quotidianamente, do que fizeram e, sobretudo, do que não fizeram.” É a indiferença produzida pelo conhecimento mecanicista que impede qualquer possibilidade de transformação e de esperança em um mundo no qual é cada vez mais impossível viver sem essas dimensões de nossa humanização.

É preciso superar a marcha da profissionalização que viabiliza a lógica de manutenção do capital, as desigualdades sociais e a multiplicação dos sistemas conservadores e fascistas. Diante desse contexto, indagamos: para onde marcha o silêncio dos intelectuais da esquerda? Os intelectuais estão enfileirados na marcha do desenvolvimento do capitalismo, em que impera a lei do capital sob a luta por direitos para todos; profissionalizados para e pela disputa do poder que, negando a disputa de classes, tem ignorado os saberes populares. Os intelectuais marcham sobre o chão da periferia do mundo, com o status social de “nova classe média”, olham para as classes populares e para os oprimidos com os mesmos olhos dos colonizadores.

Os intelectuais da esquerda brasileira desaprenderam a aprender com o povo, e achando que sabem tudo, seus conhecimentos definharam com a própria falência do paradigma positivista. Detentores da verdade, seus saberes se constituíram em uma relação de poder, incapaz de fazer autocrítica de sua apatia cognitiva e social. O problema da esquerda não é matéria-prima intelectual, mas de intelectuais orgânicos comprometidos e envolvidos com os processos de emancipação e de libertação dos oprimidos, que significa sua própria libertação. É essa a tarefa que a luta de classe exige de um intelectual orgânico na reinvenção da esquerda. Quase como inconcluso, devolvo a questão para aqueles e aquelas que lutam e acreditam na construção de um projeto de país de justiça social e no mundo humanamente justo: para onde marcha o silêncio dos intelectuais da esquerda? O que quer a esquerda no Capitalismo?

Por Socorro Silva, educadora popular, bacharel em Administração (FSA), doutoranda em Educação (UFPI), do Centro de Estudos Sociais (CES) Portugal, para a Tribuna de Debates do IV Congresso. Saiba como participar.