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Tem criança em casa? Especialista explica como identificar e prevenir abuso sexual infantil

Conversamos com Denise Toledo, terapeuta e assistente social, com mais de 20 anos de experiência de atendimento à criança em situação de risco. Ela conta os mecanismos perversos do prazer e da culpa

Ana Clara, Agência Todas

“Raramente, as crianças vão falar para o pai e para o mãe. Elas falam para alguém que não mora na casa”, com esse alerta Denise Toledo começa a conversa com a reportagem do Elas Por Elas. Ela já coloca um elefante na sala das famílias e abre uma preocupação importante para pais e mães que estão em isolamento social dentro de casa. 

No Brasil, 90% dos casos de violência sexual são registrados em ambiente familiar, sendo que o maior índice de abusadores são os próprios familiares próximos — pai, tio, avô, irmão, primo. Os dados são da Ouvidoria Nacional do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH). Nesse contexto, a escola era o principal local de acolhimento de denúncias. Com a pandemia, que confinou crianças e adolescentes nos próprios lares e retirou-os da escola, as vítimas estão mais expostas à violência sexual. Segundo Denise, as denúncias nos Conselhos Tutelares têm caído justamente porque as crianças não tem saído de casa.

“Ao contrário do que se imagina, de que o número de denúncias iria aumentar, no caso dos abusos sexuais, físicos e psicológicos com crianças, ele diminuiu porque a criança perdeu o canal de acesso, de fala, com quem falar. E isso a torna muito mais vulnerável, praticamente uma refém. E fica muito mais difícil de identificar. ”, afirma a especialista. 

Denise de Toledo Santos, 42, é terapeuta e assistente social, com especialização em violência contra mulher, criança e adolescente e terapia cognitiva comportamental. A profissional tem experiência com crianças em situação de risco, autora de ato infracional, além de atuação em abrigos de crianças abusadas por maus tratos. Em seu currículo, ela passou pela APAE, abrigos sociais, atuou por 15 anos com atendimento, elaboração e implementação de políticas públicas na área e agora atende em clínica própria. 

EpE: Por que fica mais difícil identificar abuso sexual infantil em isolamento?

 

D: As escolas são a grande ferramenta das crianças poderem falar sobre isso, professores, funcionários, faxineiros, esse é o maior canal que as crianças têm para falar sobre isso. 

Raramente, as crianças vão falar para o pai e para o mãe. Eles falam para alguém que não mora na casa: a avó, um tio — e ainda assim depende muito do vínculo.

Os vizinhos precisam estar atentos: choros constantes, quem tem que denunciar é o vizinho, porque elas não tem voz. 

 

 

 

Quais as condutas mais recorrentes de familiares próximos ao abusar de uma criança?

 

Tudo tem a ver com o corpo da criança. Quando a criança começa a se descobrir, ela tem prazer em toques, porque o corpo reage e é fisiológico. Não é um prazer sexual, é um prazer fisiológico, de carinho. A criança não tem maldade e a malícia de um adulto. 

Quando um abusador toca numa criança, ele toca de maneira gentil e sutil. Ele nunca toca numa criança de forma que ela sinta dor. E como a criança acaba por sentir prazer, o abusador acaba fazendo que ela se sinta culpada por gostar. Portanto, o abusador atua por meio de dois componentes associados: a culpa e o prazer. 

Quando a criança entende que isso é ruim, não é o correto, o sentimento de culpa cresce e é aí que começa a ter agravamento de problemas psicológicos. A percepção não é rápida, a criança demora um pouco pra entender que não é legal. E o mecanismo da culpa faz com que ela não conte. 

Por que é tão difícil as famílias acreditarem nas crianças?

 

Os caminhos psicológicos são delicados e muito sutis, a criança acaba sentindo vergonha. 

Quando a criança acaba por falar, os adultos acabam não acreditando nela, porque, como na maioria dos casos, quem abusa é alguém da família, “acreditar na criança é destruir a família”. 

Muitos preferem não acreditar, preferem minimizar e acreditar que a criança está fantasiando. E isso alimenta ainda mais as atitudes do abusador. 

Toda criança passa pela idade do  “pensamento mágico”. Ou seja, ela entende que, quando ela pensa algo, esse algo necessariamente acontece. Por exemplo, se ela desejou que a mãe morresse porque não fez algo que ela queria e, eventualmente a mãe sofre acidente, a criança começa a se culpar, acreditando que aquilo aconteceu por causa do pensamento dela. 

Então se a criança tem prazer com o corpo fisiologicamente e, de algum forma, ela quer sentir aquele prazer e, nesse contexto, veio o abusador e colocou na cabeça dela ‘eu sei que vc quer, eu sei que vc gosta’. Na cabeça dela, aquilo aconteceu, porque ela desejou.  Isso é muito complicado, por isso uma relação de diálogo aberto e confiança é imprescindível. 

Se desacreditar a criança uma vez, acabou, ela não vai mais falar nada. 

 

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Como identificar sinais de abuso em crianças?

Os pais, familiares, a escola, podem identificar que tem alguma coisa errada — quando existe alguma mudança no comportamento da criança: 

Perde a fome

Para de falar

Desenvolve um gagueira

Começa a chorar muito facilmente

Muda o comportamento com as pessoas da casa

Quando elas têm o hábito de ir para a cama do pai e da mãe e, de repente, ela não vai mais

Desenvolve transtornos alimentares

Começa a ir mal na escola

Se afasta dos próprios amiguinhos, desenvolvendo depressão

 

Esse são alguns comportamentos que as pessoas têm que estar muito atentas.

 

Como prevenir e fazer com que a criança se disponha a falar?

Conversar abertamente com a criança é a ÚNICA MANEIRA de prevenir. Um conversa sobre o corpo dela adequada à idade dela. Aparentemente, pode soar estranho falar com uma criança de quatro, cinco anos sobre isso. Mas elas já têm entendimento suficiente para entender os limites do próprio corpo e é nesse sentido que a conversa deve ir.

Toda criança coloca a mão na própria genitália, por exemplo. É um processo comum, de descoberta do próprio corpo. E elas vão fazer isso, independente de qualquer coisa, porque é uma reação fisiológica, que dá prazer. O papel dos pais é explicar que o OUTRO não pode tocar sem a permissão dela, que existe idade para tudo. 

Quando estão brincando, as crianças também se tocam e se descobrem entre si. Não é malícia, nem maldade. Relatos de irmãos, por exemplo, de quatro, cinco anos, dizendo ‘ele quis abaixar minha calcinha’ são comuns.

E é aí que a família, o responsável e a escola entram, dizendo: ‘olha, vamos respeitar o corpo do outro’, ‘olha, não pode colocar a mão no corpo do outro’, ‘se alguém tocar no seu corpo, você me fala, você me avisa’. 

Famílias que são grandes e tem por hábito deixar os filhos na casa de amigos, padrinhos, vizinhos, tios e avós, precisam falar sobre isso. Elas precisam orientar a criança e dizer: “óh, me avise se alguém colocar a mão em você”, “não deixe, pode te machucar”. Conversar antes da criança ir, depois que a criança voltou. E fazer uma checagem. No geral, as meninas ficam mais assadas, por exemplo, e precisa entender se é porque  ela não está se limpando direito ou se tem alguém colocando a mão.

 

Quais as possíveis consequências de um abuso infantil no futuro dessa adolescente/jovem?

 

O abuso gera uma série de consequências para a criança e o adolescente: culpa, auto estima baixa, sensação de desproteção, insegurança, além de consequências psicológicas e sociais para o resto da vida. O papel da mãe começa a ser questionado e desencadeia uma série de inseguranças na vida dessas crianças e na adolescência. 

O que acontece muito é a mãe dizer “você quer destruir a minha vida”, porque em cenários de abuso infantil, muito provavelmente tem um cenário de abuso contra a mulher

 

Toda relação de abuso é mantida por uma dependência e co dependência, em que a mulher, geralmente, é co-dependente. Não é fácil dela sair. Muitas vezes, as mães acabam culpando a adolescente “você se insinuou para o meu marido”, “você fica usando esse shorts curto” e o abusador é um coitado. A vítima passa a ser causadora do abuso, como se isso fosse possível. 

 

Quais são os caminhos para lidar com as consequências psicológicas?

 

Ninguém sai de uma experiência como essa sem danos e sem traumas. As vítimas precisam de muita ajuda psicológica, fortalecimento pessoal interior e empoderamento. Elas só podem lidar e começar a sair disso se estiverem empoderadas: de auto estima, entendendo que são capazes, respaldadas economicamente (com emprego digno), sabendo da importância da própria força. 

Por isso, a única forma de proteger é falar abertamente sobre isso com crianças ou adolescentes, trabalhar a auto estima, reforçar que elas não tem culpa, e não tem culpa do corpo ter sentido prazer, porque isso não significa que ela quisesse que isso tivesse acontecido.