O perigo mora em casa | A falta da escola deixa crianças ainda mais reféns de abusadores 

Mais de 70% dos abusadores infantis são familiares próximos às vítimas e a escola era um local seguro para denunciar. Com a reclusão social, crianças se tornam ainda mais vulneráveis. 

Ana Clara, Agência Todas

“Ficar em casa” tem sido a principal estratégia para minimizar a contaminação por Covid-19 em todo mundo. Mas o que fazer quando ‘ficar em casa’ é um cenário aterrorizante para crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual? 

No Brasil, 90% da violência sexual contra crianças acontece no ambiente familiar. Das vítimas, mais de 70% são mulheres, segundo levantamento da Ouvidoria Nacional do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH). 

Ao contrário do senso comum de que o agressor é o estranho andando na rua e violentando crianças e jovens aleatoriamente, os dados revelam que 70% dos agressores são o pai, o padrasto ou familiar próximo à vítima. Como se não bastasse a constatação alarmante, as agressões costumam ser recorrente. Segundo o Ministério da Saúde, a cada dez crianças e adolescentes que são atendidos no serviço de saúde após sofrerem algum tipo de violência sexual, quatro já tinham sofrido esse tipo de agressão antes.

Além do estupro propriamente dito (penetração da vaginas pelo pênis), importante ressaltar  que é considerado crime todo o ato libidinoso como  tocar nas partes íntimas da criança, tocar nos seios, beijar, apresentar filmes ou imagens pornográficas, se masturbar na frente da criança. Contudo, isso não deixa vestígios identificáveis em exames, mas isso não descaracteriza o crime de violência sexual, de estupro de vulnerável, sendo importante considerar principalmente os relatos da criança.

Se o cenário dentro de casa costuma ser violento, restam poucos lugares para crianças e jovens procurarem ajuda. Geralmente, a escola é um local em que as vítimas buscam apoio e orientações ou onde profissionais de educação podem constatar possíveis sinais de abuso. No entanto, por conta das regras de isolamento social, essa não é mais uma opção. 

Segundo a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), em 16 de março, 100 países anunciaram o fechamento ou fecharam escolas como medida de contenção ao novo coronavírus. Em 85 países monitorados, 776,7 milhões de crianças e jovens foram afetados. 

Até 20 de março, dos 5.568 municípios brasileiros, grande parte deles já havia suspendido as aulas, segundo levantamento da Undime (União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação). 

Ressalta-se que as escolas ganharam peso e protagonismo no combate à violência sexual infanto-juvenil, principalmente durante o governo Lula. Em 2004, o governo federal implantou, por meio da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (extinta em 2019), o Programa Escola que Protege (Eqp), que formava profissionais da assistência social, país, membros do Conselho escolar e professores das redes públicas de ensino municipal, estadual e de Instituições de Ensino Superior para atuarem na identificação de abusos físicos e sexuais contra crianças e adolescentes. Também foi nos governos do PT que a rede de proteção ganhou força, principalmente por meio  dos investimentos em formação e integração dos órgãos de justiça e de proteção de crianças e adolescentes.

 

No contexto do COVID-19, com o impacto econômico (precarização da vida das pessoas por falta de renda familiar, desemprego, dentre outros), a Organização das Nações Unidas (ONU Mulheres) já alertou para o aumento do risco  de violência, abuso ou exploração sexual com fins comerciais, sobretudo das meninas. 

 

 

Diante desse diagnóstico alarmante, fizemos um levantamento dos principais estudos e declarações de especialistas sobre o tema, entrevistamos gestoras públicas e colhemos relatos sobre os casos, de modo a oferecer um material que ajude a identificar esse tipo de situação e oferecer orientações de alternativas possíveis para a tomada de providências. 

Com nossas crianças e adolescentes dentro de casa, sem outros espaços públicos para compartilhar possíveis constrangimentos, o olhar da família e de adultos responsáveis torna-se um elemento ainda mais fundamental para proteger o futuro de nossas jovens — já que a maioria das vítimas de violência sexual são crianças e adolescentes (de 0 a 17 anos de idade) e do sexo feminino, segundo a ONU. Enquanto os agressores são pessoas do círculo familiar ou são conhecidos — e infelizmente, na maior parte, são pessoas de extrema confiança e vínculo da criança como pais, padrastos, avôs e tios.

A irresponsabilidade do governo Bolsonaro com a pandemia de Covid-19 torna a situação de vítimas de abuso sexual infanto-juvenil ainda mais emergencial. Além do potencial colapso do Sistema Único de Saúde (SUS), a suspensão das aulas nas redes de ensino público e a impossibilidade de oferecer merendas expõem milhares de crianças e adolescentes à miséria e à fome. Ao mesmo tempo, os serviços de proteção à infância e adolescência (Conselho Tutelar, Defensoria Pública, Ministério Público, Delegacias Especializadas, Programas de Proteção, entre outros) certamente também estão sendo afetados pelas medidas de isolamento social.

 

O QUE DIZ A CONSTITUIÇÃO. O artigo 227 da Constituição Federal considera políticas de proteção à infância e adolescência uma PRIORIDADE ABSOLUTA. Isso significa que as nossas crianças e adolescentes devem estar em primeiro lugar nas ações do governo e do poder público (municipal, estadual e federal), ou seja, devem ser a primeira preocupação. Enquanto eles não tiverem todos os seus direitos garantidos, o Estado não pode priorizar o dinheiro do orçamento público com quaisquer outras coisas. Portanto, medidas como suspender a Emenda Constitucional 95 — que trata do corte de gastos em áreas essenciais como saúde, assistência e educação são medidas — é estratégico para garantir a existência de uma rede de proteção social sólida voltada para nossas crianças e adolescentes. 

 

 

O abuso sexual infantil e juvenil, geralmente, é composto por um mecanismo silencioso em que o agressor manipula a vítima para que a situação não seja revelada. Portanto, ao contrário do senso comum, a relação entre vítima e agressor, principalmente familiar, não costuma ser aparentemente conflituosa. Um avô carinhoso, um pai dedicado, um padrasto afetuoso, um tio debochado podem ou não ser um agressor em potencial. Não existe um mecanismo único pelo qual eles atuam, mas o processo de manipulação para silenciar a vítima tem bastante semelhanças.

 

 

Dentro de casa pelo avô

Ele acariciava partes íntimas da criança, enquanto a avó estava envolvida com afazeres domésticos. Ele fez isso dos 6 aos 12 anos. Dizia que ela perderia o amor da avó se contasse. 

 

Dentro de casa pelo pai

A mãe saía para trabalhar, o pai chamava a filha para cama dele onde a alisava e a obrigava a acariciá-lo. Pedia para a filha de cinco anos não contar para ninguém. Era um segredo só deles. 

 

Dentro de casa pelo tio

O tio chamava a sobrinha, de dez anos, para a própria cama e fazia toques inadequados e a obrigava a chupá-lo. Dizia que não podia contar a ninguém, era um segredo só deles.   

 

Dentro de casa pelo vizinho

Enquanto assistia filme com as amigas, o vizinho a chamava para o quarto e dizia que seria especial. Ele mostrava revistas masculinas e forçava a criança de seis anos a masturbá-lo. Dizia que ela nunca mais veria suas amigas se contasse para alguém. 

 

Dentro de casa pelo namorado da irmã

Desde o dia em que entrou no quarto da menina de quatro anos e a viu nua, se trocando, começou a criar diversas situações para que ficassem sozinhos. Ele começou com carinhos, e em seguida os dedos. Depois de dois anos de abuso, ele a pegou por trás e penetrou com pênis. O agressor dizia que a vítima seria humilhada por ter traído a irmã. 

 

Esses casos não chegaram ao conhecimento das autoridades, seja por acobertamento da família, por falta de acolhimento de adultos responsáveis ou por que a vítima manteve segredo ao longo de toda a vida. Essa é a realidade enfrentada pela maior parte dos lares brasileiros, em que os abusos são silenciados pela própria família ou até mesmo pela própria vítima, induzida a não denunciar por ameaça ou por medo. 

No entanto, outro caminho é possível. Nesta reportagem, também levantamos casos reais em que o poder público e políticas sociais foram essenciais para salvar crianças diante de uma situação de violência. 

Apesar das medidas governamentais ainda não serem suficientes para proteger crianças e adolescentes de todo país, principalmente em regiões mais vulneráveis onde o poder público não tem infraestrutura e é regido pelos poderes locais, esses casos são importantes para entender como a política pública pode salvar e resgatar o direito ao futuro de nossas crianças.

Confira aqui a segunda reportagem do Especial Elas Por Elas no combate à violência sexual contra crianças e adolescentes

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