Devemos ao filósofo camaronês Achille Mbembe a conceituação possível para melhor compreender a gênese do governo Bolsonaro. Em 2003, ele propôs a noção de necropolítica “para explicar as várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, armas de fogo são implantadas no interesse da destruição máxima de pessoas e da criação de ‘mundos de morte’, formas novas e únicas da existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o status de ‘mortos-vivos’”.
A morte no Brasil virou uma política de Estado, comandada por um presidente que teve como símbolo de sua campanha dedos em riste formando uma arma. Na Alemanha de Hitler, quando os tiros de armas de fogo já não davam conta de assassinar todos aqueles que eram considerados inimigos do regime, a tecnologia nazista criou as câmeras de gás. Impossível não associar a elas o camburão tomado por gás lacrimogêneo que tirou a vida de Genivaldo de Jesus Santos, no crime hediondo praticado por agentes da Polícia Rodoviária Federal em Umbaúba, em Sergipe.
Um dia antes, a mesma PRF participou de uma chacina na Vila Cruzeiro, que deixou 23 mortos, sendo a segunda operação policial mais letal da história do Rio de Janeiro, ficando atrás apenas do massacre de Jacarezinho, que acabou com 28 mortes. A corporação já esteve envolvida em outras ações que também deixaram um grande número de assassinatos, como a ação no complexo da Penha, também no Rio de Janeiro.
O governo Bolsonaro editou duas portarias para mudar as suas atribuições da Polícia Rodoviária Federal, que antes se restringia ao patrulhamento em rodovias federais. As medidas autorizaram a corporação a atuar em operações de natureza ostensiva, de inteligência ou mistas.
As mudanças reforçam o caráter policial em que se transformou o Estado nos últimos tempos, seguindo a lógica de Bolsonaro. Mas não é exclusividade do seu governo. A matança generalizada é estável no Brasil, fruto de “genocídio institucional” que atinge principalmente a juventude negra, já que 80% das vítimas faz parte desse grupo social.
Ao contrário do que foi feito com a PRF, a concepção de polícia não pode ser do direito de matar. Ela deveria ser comunitária, preventiva, com uso progressivo da força. É fundamental disciplinar o exercício da profissão do policial. Uma boa iniciativa foi a adoção de câmeras acopladas nas fardas da Polícia Militar paulista. Implementada em 18 unidades, a iniciativa ajudou a reduzir o número de mortes, inclusive de agentes, em 85% nos confrontos policiais ocorridos desde que passou a ser adotada.
Outras políticas devem ser criadas, como medidas urgentes para conter os assassinatos de jovens pobres e negros no País, como as que constam no relatório final da CPI que presidi na Câmara dos Deputados. Enquanto não adotamos medidas estruturantes, cabe ao Estado atender às famílias daqueles que tiveram a vida interrompida por ação policial.
Neste sentido, apresentei, junto com os deputados do PT de Sergipe, João Daniel e Marcio Macedo, um projeto de lei que concede pensão especial e indenização à Maria Fabiane dos Santos, esposa de Genivaldo, assassinado pela PRF. É o mínimo que podemos fazer diante de tanto sofrimento imposto àquela família.
Reginaldo Lopes é deputado federal (PT-MG) e líder da bancada do partido na Câmara.
Artigo publicado originalmente no jornal O Tempo