O ex-presidente Lula anunciou, no dia 19, uma nova pauta para o debate da crise brasileira de uma forma que também expressou um conteúdo importante. Ao conceder sua primeira entrevista coletiva nesse ano eleitoral de 2022 a jornalistas de sites independentes, ele criou um marco nas relações com os meios de comunicação, passível de ser medido pela repercussão da entrevista, nos dias seguintes, entre os grandes veículos e nas manifestações do próprio mercado.
É fácil entender o gesto do ex-presidente ao conceder a entrevista a sites independentes. Até as pedras reconhecem que ele não poderá contar nem mesmo com o verniz da neutralidade tão apregoada por parte dos oligopólios da mídia corporativa, como se pode verificar pelo teor do editorial do jornal O Estado de S. Paulo de domingo, 23 de janeiro.
O jornalista Perseu Abramo apontava, numa aula proferida na PUC de São Paulo, no final dos anos 80, que a mídia corporativa brasileira já então assumira conscientemente o papel de ir além da condição de mera porta-voz do discurso conservador.
Como os partidos conservadores brasileiros eram, e seguem sendo, típicos partidos de opinião, desprovidos de uma vida política quotidiana capaz de envolver e organizar seus adeptos nos intervalos entre as eleições, os grupos de mídia ocuparam o espaço vazio. Substituíram a ação dos partidos na comunicação quotidiana com o eleitorado.
Além de promotores de hábitos de consumo da sociedade, passaram a desempenhar o papel de formuladores e difusores implícitos, e às vezes explícitos, do programa e do discurso ideológico conservador – leia-se do projeto neoliberal – no Brasil. Ou seja, substituíram, na disputa ideológica na sociedade o papel dos partidos conservadores. Por esse viés enxergam o PT como um concorrente a ser combatido. De lá até hoje se alguma modificação houve, foi para pior, como todos vimos no pleito de 2018.
Esse registro talvez seja útil para encararmos os desafios do pleito de 2022, ainda que as condições do universo comunicacional contemporâneo tenham se modificado substancialmente com a emergência das redes sociais como instrumentos cada vez mais estratégicos nos processos eleitorais.
Oligopólios midiáticos
Em síntese, o novo avançou nos espaços, mas não aboliu o velho, como quase sempre ocorre na história do Brasil. Os velhos oligopólios seguem presentes como fortes produtores dos conteúdos veiculados, portanto, com um considerável peso na disputa da pauta política em debate no País.
Trata-se, portanto, da parte do ex-presidente Lula, de uma escolha consciente no sentido de sinalizar um novo caminho nas suas relações com o aparato da mídia conservadora.
As lideranças mais experimentadas, como ele, aprenderam que os processos eleitorais, mesmo em regimes democráticos estáveis, o que definitivamente não é o caso do Brasil sob Jair Bolsonaro, personagem sempre pronto a ameaçar as instituições, são cercados de imprevistos.
Essas lideranças sabem que tais processos envolvem múltiplos atores. E como sabemos, nem todos eles se encontram sob a luz dos holofotes, à frente da cena pública. Concluem daí que é necessário modular o discurso de forma a alcançar os distintos atores do processo. Os visíveis e os invisíveis.
Mercado financeiro
A frase mais contundente, de fácil entendimento, direta, sem subterfúgios, pronunciada por Lula na entrevista inaugural de 2022 foi dirigida a dois públicos: o eleitorado popular e o mercado financeiro e seus porta-vozes:
“Não posso querer ser presidente para resolver os problemas do sistema financeiro, dos empresários, daqueles que ficaram mais ricos durante a pandemia”. Com ela definiu claramente em nome de quem assumirá a Presidência da República, caso seja eleito.
Numa democracia ultrajada pelo golpe de 2016, afirmou objetivamente para um dos atores decisivos do processo que resultou na derrubada da presidenta eleita: “As Forças Armadas precisam entender que não é a farda que mostra caráter. É a formação deles, é o interesse em defender a soberania nacional. Então eu trabalho com a certeza absoluta de que as Forças Armadas não são isso. Nas Forças Armadas têm gente preocupada com o Brasil, têm gente preocupada com o desenvolvimento do Brasil, têm gente preocupada com a soberania brasileira, têm gente preocupada com a independência do Brasil e é essas Forças Armadas que nós queremos”.
Para outro ator, não menos relevante, da ruptura da democracia brasileira para solapar as bases do projeto de desenvolvimento soberano do País, resumiu: “Trato com o respeito que eu acho que eles (os EUA) merecem. Mas quero que me tratem com o respeito que o Brasil merece. Eles têm que entender que o Brasil é o país mais importante da América Latina, o maior em população, o maior economicamente e o Brasil tem interesse em crescer junto com todos os países da América Latina. E o Brasil pode ser um grande protagonista.” Sem nenhuma hostilidade, apenas afirmando, sem subserviência, a defesa dos interesses nacionais.
Desenvolvimento nacional
O que vimos ali foi um sólido exercício de prática democrática de um líder popular que busca dialogar e propor uma nova pauta de desenvolvimento para o Brasil. Movimenta-se para se afastar da agenda de ódio, do submundo do Estado policial a que estamos submetidos pelo governo neofascista para repor na pauta os grandes desafios que o Brasil deve enfrentar para reencontrar-se com a democracia e com a justiça social.
Um líder que passou por tantas provações não se permite subestimar seus adversários. Investe na construção de um “movimento” para além dos limites do seu próprio partido e das esquerdas, capaz de isolar o ex-capitão, reduzir a extrema-direita e barrar o crescimento do fascismo.
Lula deixou claro que trabalha em torno de um programa que inclua propostas de reindustrialização do País a partir de novas matrizes tecnológicas sustentáveis, saúde educação, ciência, tecnologia inovação, respeito ao meio ambiente e aos direitos dos povos indígenas e cultura. “Quem tem medo de cultura, que se prepare…”, afirmou, deixando clara a compreensão da batalha de valores que se trava neste momento na sociedade brasileira.
Um programa capaz de gerar emprego, renda e recriar o mercado interno de massas para impulsionar um novo padrão de inclusão social e combate às desigualdades. Em uma frase: recolocar o povo no orçamento.
De algum modo é preciso reconhecer as razões para alguns desconfortos ou às explosões de ódio de classe contra Lula e tudo o que ele representa, contidas nas manifestações da mídia corporativa frente à cena eleitoral que hoje se desenha no País.
Os editorialistas dos jornalões sabem que no pleito de 2022 não se trata de mudança de gestores. Trata-se da retomada da democracia com uma mudança substantiva no modelo de desenvolvimento, e só Lula tem as condições para operar esta mudança.
Por Paulo Pimenta, deputado federal (PT-RS) e presidente do PT no Rio Grande do Sul
*Artigo publicado originalmente na Revista Fórum