De matriz e delineamento constitucional, o SUS concretiza esse dever do Estado, efetiva essa “competência comum” dos entes federados, o que em termos constitucionais significa que todos eles têm o dever conjunto, a obrigação compartida de cuidar da saúde, conforme preceitua o artigo 23, inciso II, da CF [1].
Na verdade, o SUS constitui-se em verdadeira “garantia institucional” do direito à saúde [2], que por essa natureza não pode ser abolido ou mesmo modificado em suas características essenciais. Conforma-se a partir de elaborada engenharia jurídica e operacional que ultrapassa as melhores formulações teóricas e funciona adequadamente na sua experiência prática, como temos visto desde 1988. Com entes autônomos, construiu-se na federação um sistema com ação unitária em uma rede regionalizada e hierarquizada que abarca a integralidade das ações e serviços de saúde, conforme determina a Constituição (artigo 198, CF).
Em relação à competência legislativa, a Constituição determina que todos os entes devem exercê-la “de forma concorrente”. Ou seja, cabe à União a edição das normas gerais do sistema e aos Estados as normas que atendam às suas especificidades na proteção e na defesa da saúde (artigo 24, XII, CF) [3]
Estabelece ainda expressamente a Constituição que ao município compete “prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população” (artigo 30, VI, CF). Trata-se do atendimento básico, na atenção primária e imediata. São postos de saúde, centros de atenção psicossocial (Caps), unidades de pronto atendimento (UPA) e outras unidades de saúde, onde a assistência é de competência do município, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, o que reforça a responsabilidade conjunta.
Alguns tratamentos e atendimentos de maior complexidade e outros serviços são de responsabilidade do Estado-membro e da União. É que as ações e serviços de saúde prestados pelo SUS são muitos, variados e complexos, e devem abranger a promoção, a proteção e a recuperação da saúde para que se cumpra a diretriz constitucional do “atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais” (inciso II do artigo 198).
Assim, o SUS vai do tratamento inicial na unidade básica de saúde municipal até o transplante de alta especialidade em hospitais de referência, passando por tratamentos complexos de doenças graves, como o câncer. Abrange a prevenção e a promoção da saúde; a pesquisa, a produção e o sistema de incorporação de novos medicamentos e tecnologias; o controle sanitário de alimentos, agrotóxicos e medicamentos; a fiscalização do sistema privado suplementar; a gestão e formação de recursos humanos de saúde, entre outras tantas prestações e ações do SUS, como a da vacinação tão premente no momento.
A pirâmide normativa que rege esse sistema multidimensional tem no seu topo os princípios constitucionais do SUS e abaixo leis e atos infralegais, como decretos e portarias ministeriais. Essa teia normativa disciplina o conjunto de competências, processos, subsistemas (como os da saúde indígena e o do atendimento e internação hospitalar), órgãos específicos (Anvisa, ANS, Hemobrás, Fiocruz, entre outros), programas e políticas (o PNI e o Mais Médicos, por exemplo), tudo de forma a garantir a organicidade do sistema, dando-lhe coerência federativa com a descentralização e a regionalização da rede SUS e garantindo a integralidade do direito à saúde.
A Lei Orgânica do SUS (Lei nº 8.080/90) detalha e especifica as competências materiais e as atribuições de cada esfera de governo. Segundo critério de complexidade dos serviços e considerando a abrangência de atuação dos entes na rede única e regionalizada do SUS, a Lei 8.080/90 estabeleceu as competências: comuns dos entes (artigo 15); da Direção Nacional do SUS, exercida pelo Ministério da Saúde (artigo 16); da Direção Estadual do SUS, exercida pelas secretarias estaduais de saúde (artigo 17); e da Direção Municipal do SUS, exercida pelas secretarias municipais de saúde (artigo 18).
Institui, do mesmo modo, os foros de negociação e pactuação entre os gestores quanto aos aspectos operacionais do sistema (artigo 14-A). São as Comissões Intergestores Bipartite (CIBs), que funcionam no âmbito do Estado com os seus municípios, e a Comissão Intergestores Tripartite (CIT), fórum de pactuação entre os três níveis de direção do SUS, espaços centrais de articulação da cooperação federativa que o sistema exige.
Vê-se, pois, que as estruturas organizacional e de operacionalização do SUS, experimentadas pelo seu funcionamento há mais de 30 anos, garantem efetivamente a unicidade de um sistema nacional de responsabilidade compartilhada.
A definição de atribuições específicas e as autonomias administrativas de cada ente não afastam a responsabilidade da União, pois como visto as ações e serviços constituem uma rede única formada pela ação conjunta e a cooperação é determinada pela Constituição e pela Lei do SUS, que estabelece como princípio do sistema a “XI — conjugação dos recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios na prestação de serviços de assistência à saúde da população” (inciso XI do artigo 7º da Lei nº 8.80/90).
Especificamente em relação às competências da União, exercidas por meio do Ministério da Saúde, a Lei 8.080/90 conferiu-lhes um caráter geral, de organização e formulação das políticas gerais, de interesse nacional (artigo 16). Ao mesmo tempo, definiu sua competência para a coordenação de sistemas de “redes integradas de assistência de alta complexidade” (artigo 16, III, “a”), o que abrange, como exemplo importante da responsabilidade da União, as redes de unidades de terapia intensiva (UTI’s) para atendimento na pandemia de Covid-19. Assim como também compete ao Ministério da Saúde, como gestor nacional do sistema, “VI — coordenar e participar na execução das ações de vigilância epidemiológica”; “XIII — prestar cooperação técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para o aperfeiçoamento da sua atuação institucional”; e “XVII — acompanhar, controlar e avaliar as ações e os serviços de saúde, respeitadas as competências estaduais e municipais”.
E no parágrafo único do artigo 16, a Lei nº 8.080 estabelece ainda que “a União poderá executar ações de vigilância epidemiológica e sanitária em circunstâncias especiais, como na ocorrência de agravos inusitados à saúde, que possam escapar do controle da direção estadual do Sistema Único de Saúde (SUS) ou que representem risco de disseminação nacional”.
Verifica-se, desse modo, que a legislação estabelece uma obrigação efetiva da União de coordenar, fiscalizar, controlar e mesmo executar diretamente ações para o adequado funcionamento do SUS, notadamente para evitar o agravamento de crises, como no caso, por exemplo, de suprir o fornecimento de materiais e insumos imprescindíveis para a manutenção da vida (oxigênio) e quando estão evidentes a insuficiência e a incapacidade operacional do Estado e/ou do município.
Nesse sentido, o Tribunal de Contas da União (TCU) instaurara desde o início da pandemia, e mesmo antes da crise humanitária de Manaus, processo para avaliar a estrutura de governança montada pelo governo federal. Em julgamento em outubro do ano passado, já em face do evidente descompasso entre a gravidade da situação e a atuação negligente e omissa do governo federal, determinou expressamente:
“9.1. determinar ao Ministério da Saúde, com fulcro no artigo 43, inciso I, da Lei 8.443/1992, que, no prazo de quinze dias:
(…)
9.1.2. nos termos do artigo 16, inciso VI, da Lei 8.080/1990, elabore plano estratégico detalhado para a viabilização, em especial, das seguintes medidas de gestão e assistência farmacêutica:
(…)
9.1.2.2. garantir e monitorar estoque estratégico de medicamento para o atendimento de casos suspeitos e confirmados para o vírus SARS-COV-2;
9.1.2.3. monitorar o estoque de medicamentos no âmbito federal e estadual;
9.1.2.4 rever e estabelecer logística de controle, distribuição e remanejamento, conforme solicitação a demanda;
9.1.2.5. garantir estoque estratégico de medicamentos para atendimento sintomático dos pacientes” (AC Nº 2817/2020, TC 014.575/2020-5, relator ministro Benjamin Zymler, 21/10/2020).
Por tudo isso já visto acima, são inaceitáveis as reiteradas declarações [4] do presidente da República sobre a pretensa irresponsabilidade do governo federal na crise humanitária de Manaus e no Brasil como um todo.
Porém, são ainda mais acintosas tais declarações por pretenderem justificar a negligência e incompetência do governo federal a partir de julgamentos do Supremo Tribunal Federal (STF), o que obrigou a Suprema Corte do país, em atitude inusual, a soltar uma nota oficial para desmenti-las. Esclareceu o STF que o tribunal decidira “no início da pandemia, em 2020, que União, Estados, Distrito Federal e municípios têm competência concorrente na área da saúde pública para realizar ações de mitigação dos impactos do novo coronavírus. Esse entendimento foi reafirmado pelos ministros do STF em diversas ocasiões”, e que “conforme as decisões, é responsabilidade de todos os entes da federação adotarem medidas em benefício da população brasileira no que se refere à pandemia” [5].
Com efeito, o Supremo Tribunal Federal julgou ações para estabelecer a correta interpretação das regras contidas na Lei nº 13.979/20, editada para o enfrentamento e combate à Covid-19. Cabe advertir que tais julgamentos foram provocados em razão do sistemático questionamento do governo federal em face das próprias atribuições e a dos outros entes no contexto da pandemia, criando um conflito federativo sem precedentes e artificial no âmbito do SUS.
Nessa tarefa, o STF considerou o quadro normativo do SUS acima descrito, e aclarou a competência comum de todos os entes e a necessária cooperação entre eles. Ao mesmo tempo, garantiu aos entes estaduais e municipais a autonomia necessária para o enfrentamento da pandemia com medidas próprias previstas na legislação editada, principalmente medidas de isolamento, quarentena, restrição à locomoção, vacinação, requisição de bens e serviços, entre outras medidas previstas na Lei nº 13.979/20.
É o que se pode observar a partir de trechos das ementas dos julgamentos de duas ações centrais [6]:
“(…) 3. O pior erro na formulação das políticas públicas é a omissão, sobretudo para as ações essenciais exigidas pelo artigo 23 da Constituição Federal. É grave que, sob o manto da competência exclusiva ou privativa, premiem-se as inações do governo federal, impedindo que Estados e municípios, no âmbito de suas respectivas competências, implementem as políticas públicas essenciais. O Estado garantidor dos direitos fundamentais não é apenas a União, mas também os Estados e os municípios.(…)” (ADI 6341 MC-Ref, eelator(a) p/ acórdão: Edson Fachin, Pleno, julg. 15/04/2020).
“(…)
3.A União tem papel central, primordial e imprescindível de coordenação em uma pandemia internacional nos moldes que a própria Constituição estabeleceu no SUS. (…)” (ADI 6343 MC-Ref, relator(a) p/ acórdão: Alexandre de Moraes, Pleno, julg 06/05/2020)..
Vê-se, pois, que o STF, ao afirmar a competência de Estados e municípios para medidas próprias e específicas, em momento algum retirou a responsabilidade ou a obrigação da União no combate à pandemia, ou mesmo minimizou sua participação.
Desse modo, as reiteradas declarações do presidente da República são falaciosas e antijurídicas. Inclusive, cabe investigar qual a repercussão da posição externada pelo presidente na atuação dos órgãos federais na crise. Trata-se de lamentável tentativa de encontrar uma justificativa para a negligência e incompetência do governo federal ou se trata de orientação do presidente que influenciou e continua influenciando na atuação/omissão do Ministério da Saúde? Ressalte-se que o presidente é o responsável pela direção superior da administração federal, nos termos do artigo 84, II, da CF [7].
Assim, consideradas a organização jurídica do SUS e as decisões do Tribunal de Contas da União (TCU) e do STF, cabe advertir que as ações e omissões do governo federal e as declarações do presidente da República precisam ser investigadas e, se for o caso, responsabilizadas nas esferas administrativa, criminal e política, com o impeachment do ministro da Saúde e do presidente da República.
[1] “Artigo 23 — É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios: II – cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência”.
[2] A doutrina constitucional brasileira sobre garantias institucionais é tratada com maestria por Paulo Bonavides, um dos maiores constitucionalistas brasileiros, falecido recentemente em outubro de 2020, aos 95 anos. Explica-nos o Mestre que “uma das maiores novidades constitucionais do século XX é o reconhecimento das garantias institucionais, tão importante para a compreensão dos fundamentos do Estado social quanto as clássicas garantias constitucionais do direito natural e do individualismo o foram para o Estado liberal. (…) A garantia institucional não pode deixar de ser a proteção que a Constituição confere a algumas instituições, cuja importância reconhece fundamental para a sociedade.” (Curso de Direito Constitucional, 7ª ed., 2ª tiragem, ed. Malheiros, 1998, fls. 492).
[3] “Artigo 24 — Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: XII – previdência social, proteção e defesa da saúde.”
[4] Afirmou o presidente em entrevista que não pode agir como queria no combate à doença por decisão do Supremo, numa tentativa de eximir-se da responsabilidade: “Se o Supremo não tivesse me proibido, eu teria um plano diferente do que foi feito, e o Brasil estaria em situação completamente diferente”. E continuou: “Pelo Supremo Tribunal Federal, eu tinha que estar na praia, Datena, tomando uma cerveja. O Supremo falou isso para mim. O erro meu foi não atender o Supremo e estar interferindo”. Ver aqui.
[5] A nota pode ser acessada no site do STF, aqui.
[6] ADI 6.341, ministro Edson Fachin; ADI 6.343, ministro Alexandre de Moraes; ADPF 672, ministro Alexandre de Moraes; e ADIs 6.362, 6.587 e 6.586, ministro Ricardo Lewandoski.
[7] “Artigo 84 — Compete privativamente ao presidente da República:
II – exercer, com o auxílio dos ministros de Estado, a direção superior da administração federal”.
Jean Keiji Uema é mestre em Direito Constitucional pela PUC-SP. Analista Judiciário do Supremo Tribunal Federal.