Contumaz descumpridor de promessas de campanha, Jair Bolsonaro alcançou um único resultado em seu desgoverno: transformar o Brasil em um país armado até os dentes. Os números do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, lançado nesta terça-feira (28), revelam o crescimento descontrolado, tanto de usuários quanto do número de armas, ocorrido no país desde 2018, quando o então candidato prometia armar a nação.
Apenas em arsenais particulares, há atualmente 4,4 milhões de armas de fogo – e mais de um terço delas, em situação irregular. O aumento generalizado no acesso às armas fez explodir o número de munições comercializadas. Em 2021, foram vendidos 393,4 milhões de cartuchos – crescimento de 131,1% em relação a 2017.
A alta de usuários concentra-se principalmente na categoria Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CAC). Se entre 2005 e 2017 o total de registros variou de 13.178 a 63.137, entre 2018 e 2022 o número cresceu 473,6%, chegando a 673.818 pessoas. E num país onde a caça esportiva é proibida, exceto em casos pontuais. São Paulo (26%) e os três estados da Região Sul (25%) concentram a metade do contingente.
Grupo da base política bolsonarista mais contemplado pelas intervenções do chefe do Executivo na legislação do setor, os CACs possuem 957.351 armas registradas no Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma) do Exército Brasileiro. São 99.446 armas com caçadores, 765.990 com atiradores esportivos e 91.915 com colecionadores.
Os dados do Sistema Nacional de Armas (Sinarm), da Polícia Federal, também mostram crescimento do número de usuários e armas. Entre 2017 e 2021, as licenças de posse de armas subiram 133,6%, passando de 638 mil para 1,5 milhão. As autorizações de porte variaram 15,9% de 2020 a 2021, passando de 48,6 mil pessoas para 56,3 mil.
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Já o número de registros de armas ativos na Polícia Federal aumentou 20,8% entre 2020 e 2021, passando de 1,2 milhão para 1,5 milhão. A maior parte dessas armas são pistolas (454 mil), seguidas por espingardas (172 mil).
O Anuário revela ainda que há mais armas de fogo em poder de particulares do que em estoques institucionais de órgãos públicos, como polícias e guardas municipais, e instituições como Tribunais de Justiça e Ministério Público. Das 1.490.323 armas com registro ativo no Sinarm em 2021, apenas 384.685 estavam ligadas a órgãos públicos.
“Podemos considerar que o total de armas de fogo em acervos particulares é de 4.429.396, entre registros regulares (Sinarm e Sigma) e irregulares (no Sinarm). Entre outros aspectos, isso significa dizer que de cada 3 armas de fogo em estoques particulares, 1 está em situação irregular”, afirmam os pesquisadores Isabel Figueiredo, Ivan Marques e David Marques.
Eles alertam para o aumento “descontrolado” do número de armas e munição em circulação e suas consequências, como o desvio de armas regulares para o crime. “Há um conjunto de ingredientes que desconsideram as evidências científicas sobre o impacto de longo prazo que armas de fogo e munições exercem na sociedade brasileira e que preparam o país para um cenário literalmente explosivo”, afirmam.
Com desmonte da fiscalização, Brasil é líder em número absoluto de mortes
Apesar da escalada no acesso às armas, o número de apreensões no Brasil teve ligeira queda (-2%) entre 2020 e 2021. Para Isabel Figueiredo, esse dado chama atenção porque, em tese, o número de apreensões não deveria cair, uma vez que a circulação de armas está em curva ascendente.
“A apreensão normalmente é um indicador de esforço da polícia”, explica a pesquisadora. “Se o número de apreensões estivesse aumentando, eu poderia dizer que a polícia está mais preocupada em apreender arma. Só que o que a gente tem é o contrário.”
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Para os pesquisadores, os problemas da fiscalização das armas e munições no país começam nas atribuições do Exército e da Polícia Federal e passam pela falta de recursos e de dados de monitoramento. “Não é de hoje a defasagem de sistemas e a incapacidade de investigar armas desviadas ao crime”, apontam. “O que gera impunidade para crimes como tráfico de armas ou desvios do mercado legal para o ilegal.”
Outro dado que chama a atenção é a redução (-6,5%) do número de homicídios em 2021, em relação a 2020. “As mortes caíram, o que é boa notícia”, disse ao Estado de São Paulo o diretor-presidente do Fórum, Renato Sérgio de Lima. “Mas, comparando internacionalmente, o número ainda é muito alto.”
“Temos um cenário violência extrema, com cidades com taxas altíssimas de mortes violentas e o crescimento de vários tipos de roubos e casos de estelionatos”, prossegue Lima. “Tudo isso mostra que essa pequena redução, apesar de ser uma boa notícia, está longe de fazer com que o Brasil seja um país mais seguro, com menos violência.”
Segundo o sociólogo, os dados divulgados neste ano foram contrapostos aos índices de 102 países, reunidos pela Organização das Nações Unidas (ONU). O resultado: “O Brasil é líder na quantidade absoluta de mortes e está entre os dez países mais violentos do planeta”, afirma Lima.
“Quando se olha com zoom, 30 cidades brasileiras têm taxas acima de 100 mortes por 100 mil habitantes”, ressalta ainda o sociólogo, reforçando que o índice nesses municípios é maior que o de qualquer país no mundo. Entre as 30 cidades mais violentas do País, aponta o levantamento, 13 integram a Amazônia Legal, e a maior parte delas está situada na região de fronteira.
“Existe um processo de migração da violência para o Norte”, explicou Lima. Como causa disso, ele atribui a atuação na região de facções de bases prisionais e de milícias, o que teria elevado os índices de violência em estados como o Amazonas, principalmente.
“Tabatinga (AM) hoje é considerada a segunda principal cidade de tráfico internacional de drogas e armas. Só perde para a rota de Ponta Porã (MS)”, destacou Lima. “A área de Tabatinga ainda tem toda a interligação com as questões ambientais”, aponta ele, lembrando que as execuções do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, no Vale do Javari, foram perto daquela região.
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Sobre o assunto, a presidenta nacional do PT, deputada federal Gleisi Hoffmann (PR), ressaltou, no último dia 18, que o tipo de bala utilizada no crime foi amplamente liberada por Bolsonaro. “Bruno e Dom foram assassinados com munição para arma de caça. A venda dessas balas dobrou em 2021, foram 61,3 milhões de unidades. Também temos mais 1 milhão de novas armas registradas, liberadas por Bolsonaro, que é sinônimo de violência e ódio. Estamos vivendo um faroeste”, concluiu.
“Temos que considerar que essa explosão do registro de armas favoreceu uma exposição maior aos crimes de biopirataria, caças e pescas ilegais, bem como o surgimento de grupos armados em áreas de garimpo ilegal”, explica o pesquisador Universidade do Estado do Pará (UEPA) Aiala Colares, também integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Lima contradiz a tese bolsonarista de que “quanto mais armas, menos crimes”. “Nos estados que tiveram maior variação positiva no número de armas em circulação, deveria haver maior queda nos homicídios. E não é isso que acontece”, argumenta. “Se houvesse de fato esse efeito, estados com crescimento grande de armas, como o Amazonas, teriam tido queda das mortes. E não foi o que aconteceu.”
Da Redação, com informações de Agências