Ao consolidar sua posição de completa submissão aos EUA, o governo Bolsonaro pavimenta o caminho para a ruína da diplomacia nacional. Ao mesmo tempo, acarretará prejuízos políticos e econômicos ainda incalculáveis, para a soberania do país, a médio e longo prazos. Chefiando uma delegação que visita o país nesta semana para firmar acordos bilaterais, o conselheiro de segurança do presidente Donald Trump, Robert O’Brien, dá mais um passo na ofensiva americana contra a China. No centro de uma guerra híbrida que envolve a bilionária tecnologia 5G, a estratégia consiste em neutralizar as relações do Brasil com o gigante asiático, de quem o país é o maior parceiro comercial.
Para isso, Trump manipula o Brasil sob o pretexto de celebrar acordos bilaterais para “reduzir burocracias e trazer ainda mais crescimento” para o comércio entre os dois países. A visita de O’Brien atende, na verdade, ao plano de Washington de impedir a presença da empresa chinesa Huawei no mercado da tecnologia 5G no Brasil.
Caso prevaleça a vontade dos americanos, a ausência da Huawei no leilão para a aquisição da tecnologia, previsto para 2021, poderá arruinar as relações diplomáticas do país com a China, prejudicar negócios estratégicos para o desenvolvimento econômico e tecnológico do país e, finalmente, aniquilar de vez a pálida presença do Brasil no tabuleiro geopolítico mundial.
O atual governo brasileiro é a marionete perfeita para o jogo eleitoreiro de Trump. Oficialmente, a comitiva de O’Brien, da qual também participam o vice-representante de Comércio dos EUA, Michael Nemelka, a presidente do Eximbank (Banco de Exportação e Importação), Kimberly Reed, e a diretora do banco estatal de fomento DFC (U.S. International Development Finance Corporation), Sabrina Teichman, chegou para formalizar a assinatura de três acordos.
Segundo Bolsonaro declarou, na segunda-feira (19), os tratados abrangem o fortalecimento do comércio, boas práticas regulatórias e medidas anticorrupção. “Esse pacote triplo será capaz de reduzir burocracias e trazer ainda mais crescimento ao nosso comércio bilateral, com efeitos benéficos também para o fluxo de investimentos”, afirmou o presidente.
Mas os acordos não garantem livre acesso de produtos brasileiros ao mercado americano, uma vez que o país integra o Mercosul. Pelas regras do bloco, países-membros não podem negociar em separado acordos que estabeleçam redução de tarifas. Ou seja, os acordos entre Brasil e EUA parecem confeccionados para beneficiar um lado: o deles.
Privacidade e segurança
Segundo reportagem da ‘Folha de S. Paulo’, nas audiências com Bolsonaro, e o ministro Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), O’Brien abordou o cobiçado leilão do 5G durante as conversas. Em campanha contra a empresa chinesa, ele apresentou o argumento de que a Huawei não é confiável por não oferecer garantias de privacidade e segurança ao governo brasileiro.
Em entrevista ao diário paulistano, o presidente da Huawei no Brasil, Sun Baocheng, advertiu, no entanto, que, se a empresa for impedida de atuar no país, a tecnologia 5G ficará mais cara ao consumidor brasileiro, além de demorar pelo menos quatro anos para ser implementada. Isso porque as empresas teles teriam de substituir equipamentos que não interagem com a tecnologia da concorrência.
Crédito para teles brasileiras, presente de grego
De acordo com a ‘Folha’, para compensar a saída dos chineses do leilão, os americanos irão oferecer crédito para que as empresas brasileiras de tele possam adquirir tecnologia dos concorrentes da Hauwei. Um dos caminhos seria por meio da estatal DFC.
“No DFC, nós temos dois produtos que podem apoiar empresas brasileiras que buscam adquirir a nova tecnologia”, garantiu a diretora Sabrina Teichman. “Temos financiamento através de equity [aporte direto] e financiamento. E esses produtos estão disponíveis para as empresas brasileiras”, afirmou Teihmanm, segundo noticiou a ‘Folha’.
Convenientemente, Teichman omitiu o fato de que a oferta americana não passa de um presente de grego. Afinal, o crédito, financiado ou não, tornará o 5G uma tecnologia muito mais cara e de lenta expansão. “Você compraria um carro por R$ 100 mil financiado ou outro por R$ 40 mil à vista?”, resumiu um executivo brasileiro do setor de teles, ouvido pela ‘Folha’.
A ofensiva de O’Brien ganhou um reforço de peso. Na segunda-feira, o secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, voltou à carga, declarando que tanto os EUA quanto o Brasil precisam reduzir a dependência da China “para sua própria segurança”. “Cada um de nossos dois povos estará mais seguro, e cada uma de nossas duas nações será muito mais próspera, seja daqui a dois, cinco ou dez anos”, alardeou o secretário.
Rendição vira-lata
Desde que Bolsonaro assumiu a Presidência, a rendição vira-lata ao governo Trump transformou o Brasil, um país de dimensões continentais, em anão diplomático. No conjunto da obra da desastrosa política internacional orquestrada pelo ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo, o diálogo com a China foi praticamente para o espaço quando do incidente causado pelas declarações constrangedoras de Eduardo Bolsonaro. Em março, o 03 utilizou as redes sociais para promover ataques à China, responsabilizando Pequim diretamente pela pandemia do coronavírus.
O governo não se conteve, entretanto, e conseguiu outra “proeza”: ao mesmo tempo em que a catástrofe ambiental desencadeada pela gestão de Ricardo Salles no Ministério do Meio Ambiente arruinou o acordo comercial do Mercosul com a União Europeia, o Brasil também afugentou companhias e investidores estrangeiros, já assustados com a incompetência do ministro da Economia, Paulo Guedes, antes mesmo da pandemia. Resultado: o país teve uma fuga recorde de U$ 15,2 bilhões entre janeiro e agosto. Também foram retirados R$ 87,3 bilhões da Bolsa brasileira entre janeiro e setembro.
Barreiras protecionistas
Na cabeça de Bolsonaro, no entanto, é preciso manter o alinhamento com Trump a qualquer custo, mesmo que sejam bilhões. Segundo dados da Confederação Nacional da Indústria (CNI), divulgados pelo jornal ‘O Globo’, só na balança comercial, a aliança entre Bolsonaro e o “amigo” americano já causou prejuízos de pelo menos U$ 676,5 milhões por ano ao Brasil.
O valor corresponde ao que o país deixa de exportar em função das barreiras comerciais impostas pelos EUA. A síntese da relação entre os dois líderes populistas no ano de 2020 poderia ser descrita assim: de um lado, Bolsonaro ajuda Trump a executar suas estratégias de campanha. De outro, o líder do império agradece com o aumento de barreiras protecionistas.
Ainda de acordo com o jornal, de janeiro a setembro, as vendas para os EUA caíram 31,5% em relação ao mesmo período de 2019. O país também teve déficit de US$ 3,124 bilhões, informa o Ministério da Economia. E o cenário permanece desfavorável: só a cota de importação de aço brasileiro pelos EUA irá sofrer queda de quase 83% no quarto trimestre. Trump justificou a medida por causa de uma queda no mercado interno.
Laços históricos de cooperação sob ameaça
É de se imaginar o que pensa o todo poderoso comandante do GSI Heleno diante da perspectiva de erosão de uma relação de laços históricos de cooperação entre Brasil e China. Sobretudo à luz do fato de que a reaproximação entre os dois países foi de inteira responsabilidade dos militares, há exatos 45 anos.
Em 1974, o general Ernesto Geisel inaugurava o fim da fase de alinhamento automático aos EUA ao anunciar a retomada das relações diplomáticas e comerciais com a China. O reconhecimento do governo de Mao Tsé-Tung desagradou os americanos. Afinal, foram articuladores e financiadores do golpe que derrubou João Goulart da Presidência dez anos antes.
Ciente da ameaça de estremecimento das relações com o império, Geisel, no entanto, viu uma oportunidade de bons negócios para o Brasil, que tentava se estabelecer em um cenário mundial de incertezas advindas do choque do petróleo, um ano antes. E bancou o jogo.
Do pragmatismo ecumênico à diplomacia ativa e altiva
Ao retomar as relações com a China – encerradas desde 1949, quando o governo brasileiro decidiu seguir os EUA na decisão de congelar laços com Pequim – o Brasil recuperava sua tradição diplomática. Desde então, o chamado pragmatismo “ecumênico e responsável” evoluiu até chegar à diplomacia altiva e ativa do chanceler Celso Amorim, ministro das Relações Exteriores de Lula.
Sob Lula e Amorim, na década passada, o pragmatismo brasileiro sempre esteve presente nas estratégias que transformaram o país em importante player mundial. Ação de Estado para servir aos interesses do povo brasileiro, a política externa virou instrumento para ampliar o multilateralismo das relações comerciais e o diálogo com países de diferentes regimes políticos ou orientações ideológicas. Sempre respeitando o princípio da não-intervenção nos assuntos internos de outros Estados, as soberanias nacionais e a autodeterminação dos povos.
Lula e Amorim levaram o país a ser internacionalmente respeitado e reconhecido justamente porque expandiram uma tradição diplomática adotada até mesmo por aqueles que lutaram para manter longe do país a “ameaça comunista” na ditadura. Eis a história, fiel amiga dos fatos, general Heleno.
Da Redação, com informações de ‘Folha de S. Paulo’ e ‘O Globo’