Caiu a máscara de economista sério e de perfil técnico, exibida pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, desde janeiro de 2019, quando assumiu o cargo. Tal imagem, falsa, foi saudada e reiterada pelos formadores de opinião e parcela da imprensa nacional e estrangeira. O ‘Chicago Boy’, responsável pela trágica reforma da previdência e a política econômica do governo, marcada pela defesa da agenda neoliberal, cujos traços são arrocho, desigualdade e entrega de patrimônio estatal, revelou-se na economia a versão tosca do presidente da República.
Na histórica reunião ministerial de 22 de abril, em que Jair Bolsonaro soa como um déspota, xingando adversários, dando broncas em subordinados e anunciando que opera na política para proteger a família e os amigos, Paulo Guedes reforça a percepção de que atua em sintonia com o presidente. O vídeo do encontro palaciano, divulgado na sexta-feira, 22, pelo Supremo Tribunal Federal, mostra um retrato assustador do Posto Ipiranga.
Depois de ouvir Bolsonaro defender a liberação de armas, xingar governadores e adversários, enaltecer a ditadura e não dar um pio sobre o que fazer para deter o avanço da pandemia no país, Guedes não teve dúvidas em reiterar seu apoio à agenda bolsonarista. “Ô presidente, esses valores e esses princípios e o alerta aí do [Abraham] Weintraub [que havia defendido a prisão dos ministros do STF] é válido também, como sua evocação… Realmente nós estamos todos aqui por esses valores. Nós tamos aqui por esses valores. Nós não podemos nos esquecer disso”, disse o ministro da Economia.
Encontro de boquirrotos
Na reunião, Guedes não esconde seu desprezo pelos pobres, insinua que toda a política de ajuda e socorro financeiro do governo em tempos de pandemia deve ser dirigida às grandes companhias, fala tantos palavrões quanto o presidente e promete liberar o jogo no Brasil, para transformar cidades em cassinos. “Nós atacamos em todas as direções. Nós vamos botar dinheiro. E dar certo e nós vamos ganhar dinheiro. Nós vamos ganhar dinheiro usando recursos públicos pra salvar grandes companhias. Agora, nós vamos perder dinheiro salvando empresas pequenininhas”, confessou o ministro da Economia.
O choque da visão utilitarista de Guedes – que ainda defendeu a privatização da “porra do Banco do Brasil” – espantou analistas econômicos. Nesta terça-feira, a colunista Míriam Leitão, do jornal ‘O Globo’, mostrou o grau de decepção com a guinada ideológica da equipe econômica, evidenciada por Guedes na fatídica reunião. “A visão de conjunto da reunião desmonta a ilusão de uma equipe econômica técnica”, lamenta. “Ela é política, perdeu seu foco, não tem projeto”.
O Banco Central informou hoje que investidores retiraram US$ 31,4 bilhões de aplicações financeiras no Brasil, entre janeiro e abril. Os recursos englobam aplicações em ações, fundos de investimento e títulos da dívida pública. A instituição monetária informou ainda que, em doze meses até abril, a retirada de investimentos do país chega a quase US$ 50 bilhões. O Brasil é um colosso, se dependesse da propaganda de Guedes. Mas não é, como mostram os números da economia, fragilizada pela pandemia, doente pela condução errática de Guedes e que já vinha mal das pernas antes da crise sanitária. Agora, projeta-se um tombo de 11% do PIB brasileiro este ano.
A crueza das cenas no encontro palaciano chocou a veterana repórter de Economia, acostumada à cobertura política e econômica em Brasília, desde os tempos que era repórter da sucursal do ‘Jornal do Brasil’. Ela observa que ninguém se sai bem na reunião ministerial. “O ministro Paulo Guedes colocou a economia a reboque do projeto da reeleição, e os presidentes do Banco do Brasil, Caixa e BNDES fizeram triste figura”, aponta.
“Rubem Novaes, totalmente fora do rumo, disse que o pico da pandemia já havia passado, Pedro Guimarães deu um show de servilismo, Gustavo Montezano disse duas vezes que subscrevia as palavras de Ricardo Salles, que havia proposto solapar as leis, aproveitando o foco da imprensa na Covid-19”, espanta-se Míriam Leitão. “Roberto Campos [presidente do BC] mostrou que se sente à vontade em reuniões de governo, que nada têm a ver com o papel do Banco Central”.
O mercado e os investidores
O choque de Míriam Leitão não reflete o entusiasmo do mercado financeiro com o desmanche das entranhas do governo, que se revelaram no encontro ocorrido no Palácio do Planalto há pouco mais de 30 dias. Nesta terça, o Ibovespa opera em alta numa aposta míope de que a crise política não vai piorar, enquanto o dólar cai a R$ 5,36, na percepção de que uma vacina virá em socorro da humanidade, além da reabertura das economias na Europa e nos Estados Unidos. O otimismo, contudo, esconde um jogo de interesses que não corresponde à dura vida na economia real.
Ontem, o jornal britânico ‘Financial Times’ – considerada uma das bíblias do mercado internacional e leitura obrigatória para investidores – trouxe um duro alerta sobre os rumos do Brasil. Em letras garrafais, o colunista Gideon Rachman adverte: “O populismo de Jair Bolsonaro está levando o Brasil ao desastre”. De acordo com o jornalista, se a vida fosse um conto sobre a questão moral, “as palhaçadas de Bolsonaro contra o coronavírus levariam o Brasil a se voltar contra seu presidente populista”. Ele afirma que o Brasil está pagando um preço alto pela conduta irresponsável do líder de direita, chamado de “mais estúpido que Donald Trump”. E destaca: “As coisas estão se agravando de forma acelerada”.
O alerta de Gideon deve comprometer o sonho de Paulo Guedes de promover, no início de 2021, a venda de 47 aeroportos, que deve ocorrer até março do próximo ano. Outro plano mirabolante esboçado pelo ministro da Economia é transformar o Rio de Janeiro em um grande cassino. O sonho delirante de Guedes foi explicitado num linguajar chulo que não o fez corar mesmo diante das ministras da Agricultura, Tereza Cristina, e dos Direitos Humanos, Damares Alves, cuja aversão ao jogo, não conteve o ministro da Economia.
Crueza e despreparo
“Aquilo [a liberação do jogo] não atrapalha ninguém”, disse no meio da reunião ministerial, não sem recorrer ao vocabulário do presidente da República. “Deixa cada um se foder, ô Damares. O presidente, o presidente fala em liberdade. Deixa cada um se foder do jeito que quiser. Principalmente se o cara é maior, vacinado e bilionário. Deixa o cara se foder, pô! Não tem, lá não entra nenhum, lá não entra nenhum brasileirinho”, debochou.
A ministra ainda tentou lembrar dos riscos de lavagem de dinheiro com a legalização do jogo no Brasil, que traria a possibilidade de investimento do dinheiro do tráfico de armas e de drogas. Guedes não só afastou os riscos, como disse que o país tem uma janela de oportunidades pela frente. “Eu recebi o embaixador dos Estados Unidos e ele veio conversar conosco. E a mensagem maior dele era uma só”, repetiu. “Assim olha: ‘nós queremos um bom ambiente de negócios. Nós vamos colocar centena de bilhões de dólares aqui. O mundo inteiro quer investir no Brasil. Agora, nós precisamos de um bom ambiente de negócios”, disse Guedes.
O ministro da Economia foi interrompido pelo colega da Casa Civil, General Braga Neto, que insiste: “Segurança… Segurança”. O Posto Ipiranga concorda e emenda: “Segurança jurídica”. Falta combinar com os investidores estrangeiros, que olham para a imprensa internacional a retratar um Brasil onde prevalecem vários adjetivos para apontar as características do governo Bolsonaro – todos negativos.
Fuga dos estrangeiros
Os investimentos diretos no país despencaram em abril, com os investidores externos cada vez menos dispostos a investir diante das incertezas econômicas causadas pela crise do novo coronavírus. Segundo o BC, os investimentos somaram US$ 234 milhões em abril, no pior resultado para o mês em 25 anos. Daí a pergunta: de onde virão os dólares que salvarão a economia brasileira, como promete Paulo Guedes? Quem apostará no país?
Nesta terça-feira, a ‘Reuters’ jogou a toalha sobre o que é o país hoje sob Bolsonaro, no meio da pandemia global do coronavírus: “o Brasil está perdendo a batalha do coronavírus”. A revista ‘Time’, nesta semana, vai na mesma linha: “o Brasil está começando a perder a luta contra o coronavírus – e seu presidente está olhando para o outro lado”. No jornal ‘Sueddeutsche Zeitung’, reportagem veiculada na edição de hoje diz que “a lógica fugiu do país”, porque o presidente se nega a promover o isolamento social e insiste em abrir a economia mesmo com pandemia sem controle.
O diário alemão, que é um dos principais veículos do país, sediado em Munique, ainda lista Bolsonaro no ranking dos piores chefes de Estado do mundo, ao lado de Viktor Orban, Matteo Salvini e Rodrigo Duterte, todos negacionistas e extremistas de uma direita asquerosa.
Há um mês, a Eurasia Group, uma das maiores consultorias do mundo, recomendou a investidores que deixassem o Brasil e passassem ao largo do gigante sul-americano. Sob Bolsonaro, o país passou a ser uma nação tóxica, de quem todos querem se afastar. Mérito do presidente, o capitão Cloroquina, e o ministério de lunáticos, cujos retratos perfeitos na reunião ministerial de 22 de abril estão nas expressões de Paulo Guedes, Abraham Weintraub e Ricardo Salles.
Da Redação