A reforma administrativa proposta pelo presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Economia, Paulo Guedes, é muito mais nociva do que uma mudança na estrutura do Estado, o que por si só já não é pouco. Para além da reestruturação do serviço público nas três esferas, a reforma propõe uma profunda alteração no papel do Estado, que modifica a essência da Constituição Cidadã de 1988.
A emenda constitucional proposta por Bolsonaro/Guedes quer inserir oito novos princípios administrativos (caput, art 37), dentre os quais chama atenção o princípio da subsidiariedade. O que diz a emenda: “A administração pública direta e indireta de quaisquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da subsidiariedade’’.
Obediência e subsidiariedade, duas palavras de valor semântico diferentes, mas que, somadas, reforçam o conceito de subordinação, secundário, acessório e submissão.
Obedecer implica, em diverso grau, a subordinação da vontade a algo ou a alguém, o acatamento de uma instrução, o cumprimento de um pedido ou a defesa intransigente de uma ideia. A recusa à reflexão, à responsabilidade pessoal pelo exame do sentido ético de uma regra, norma, ação ou princípio independentemente de suas convicções pessoais.
O que diz o dicionário sobre um ser subsidiário: secundário, cuja importância é reduzida em comparação a outro. Diz-se do que é acessório, mas se junta a outro elemento maior ou importante. Subsidiário é sinônimo de acessório, secundário, auxiliar.
A obediência é única, focada, tem objeto específico, diz respeito a um princípio. A subsidiariedade não, é ampla, não tem foco nem limites. O papel do Estado pode ser subsidiário ao mercado, como está explícito em outro trecho da emenda constitucional, ou mesmo a outro país, através de atos ou omissões dos governantes.
No parágrafo 6 da emenda o governo trata de deixar clara a primazia do “mercado”, quando diz que é “vedado ao Estado instituir medidas que gerem reservas de mercado que beneficiem agentes econômicos privados, empresas públicas ou sociedades de economia mista ou que impeçam a adoção de novos modelos favoráveis à livre concorrência”.
É o fim da prerrogativa dos governantes de definir políticas públicas que possam afetar, de alguma forma, o mercado. Ou seja, políticas de estimulo ao desenvolvimento de setores e produtos específicos, instrumento priorizado pelas nações desenvolvidas, são vedadas.
É preciso lembrar que Bolsonaro promoveu, sem contrapartidas, a isenção de visto para turistas norte-americanos, renúncia ao tratamento diferenciado que o Brasil recebia na Organização Mundial do Comércio, aumento da importação de etanol dos EUA e permissão para que Washington use a base espacial brasileira em Alcântara. Essas foram algumas das concessões que o Brasil fez aos Estados Unidos desde que o capitão-presidente tomou posse. São parte do que o presidente brasileiro chama de relação de amizade. Guedes chamaria de “subsidiariedade”; outros, de submissão.
De qualquer forma, só existem duas hipóteses para explicar a tentativa de Bolsonaro de diminuir o seu país e o seu povo, com a PEC enviada ao Congresso Nacional. Ou ele sabia o que estava escrevendo ou não sabia. Qualquer das alternativas é inaceitável, injustificada e imperdoável. Se sabia, e o fez, é porque não conhece a história deste país e as lutas do seu povo. Se não sabia, é porque não tem a mínima noção das responsabilidades e atribuições do seu cargo.
Que Estado-Nação constitucionalizaria a subordinação como um mandamento? Nenhum, a não ser um Brasil que parece não mais nos pertencer. O Brasil de Bolsonaro e Guedes.
Um presidente que acredita no papel secundário do seu povo e o transforma em mandamento constitucional mancha de forma inapagável a história de milhões de brasileiros que lutaram e morreram para construir nossas fronteiras, para manter uma unidade nacional, para forjar uma nação livre, independente e soberana.
Como pode um Estado que se pretende nacional e soberano adotar como princípio a subordinação? É inadmissível a proposta de Bolsonaro e Guedes de constitucionalizar o caráter secundário do Estado. Parecem ser adeptos do anarcocapitalismo num momento em que os Estados nos países mais importantes do mundo se fortalecem num momento crucial da humanidade.
Definitivamente, o Brasil não merece Bolsonaro e seu governo.
Enio Verri (PR) é líder da bancada do PT na Câmara dos Deputados
Artigo publicado no site do jornal o Globo em 11/09/2020