À frente do Ministério das Relações Exteriores (MRE) durante os dois governos de Luiz Inácio Lula da Silva, o diplomata Celso Amorim foi um dos principais propulsores na construção de um novo modelo de política internacional.
Numa postura altiva – isto é, sem se submeter aos interesses de outras potências – e ativa – por influenciar a agenda internacional, o Brasil passou a contribuir para uma nova ordem mundial caracterizada pelo multilateralismo.
A derrota da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), mediação de conflitos internos na América do Sul, integração na América Latina e aproximação da África são algumas das marcas desta política. Foram fatos que fizeram como este fizeram com que Amorim fosse considerado o “melhor chanceler do mundo”, em 2009, por David Rothkopf, comentarista da revista norte-americana Foreign Policy.
À Agência PT, o diplomata se diz preocupado com os rumos que o MRE tomou após o impeachment que afastou a presidenta Dilma Rousseff. Amorim vai além dos aspectos legais deste afastamento e afirma: “Uma coisa muito importante é a credibilidade, a legitimidade, e isto o Brasil perdeu muito”. Na entrevista, fez um balanço da política externa a partir de 2003 e explica por que o país se tornou uma liderança mundial.
Abaixo a entrevista completa:
Como o senhor avalia a gestão interina do ministro das Relações Exteriores, José Serra (PSDB)?
Eu vejo, como muitos brasileiros, preocupação pelo Brasil estar perdendo um dos mais importantes ativos que criou nos últimos anos, e talvez entrar em alguns acordos e tratativas que resistimos na época em que estávamos no governo. E que podem mudar, de maneira significativa, o perfil da sociedade brasileira.
Minha preocupação aumentará porque não sabemos quanto isto vai durar. Faço questão de desvincular de qualquer aspecto pessoal. Parece ser uma orientação de governo que tem uma falta de compromisso com a própria plataforma com que houve a eleição de 2014.
Eu temo muito que coisas como a integração sul-americana, a integração africana, nossos pleitos para o Conselho de Segurança – não estou presumindo nada, foram coisas declaradas e ditas. A simples pressa para negociar acordos comerciais deixa em uma posição muito fraca. Vejo com muita preocupação.
Serra tem demonstrado muito empenho em buscar novos acordo para o país, como se esta fosse a mais importante tarefa do Ministério das Relações Exteriores. Qual é sua opinião sobre esta política de reduzir a diplomacia a relações comerciais?
É uma grande ilusão que se tempo porque, quando você fala, parece ótimo. Mas, na hora em que você vai negociar, as condições são muito piores do que foram anunciadas e as exigências e demandas são muito maiores. Não sou contra os acordos.
Aliás, eu era ministro do Itamar Franco quando começamos a discutir um acordo com a União Europeia. Isto evoluiu e, quando chegaram as propostas concretas, elas eram muito insatisfatórias. E são até hoje.
O que ocorre é que tem muitos países com sensibilidades para áreas que interessam para nós, e nós temos sensibilidades em áreas que interessam a eles.
Não há razão, por exemplo, para a gente abrir mão da nossa política de patentes de remédios genéricos para obter uma concessão, pequena, ademais, para um produto qualquer, como açúcar, carne. Não podemos trocar produtos de alto valor tecnológico para a gente ficar só produzindo matéria-prima.
Não são poucas as vezes em que a política internacional é deixada de lado quando se discutem propostas políticas. Qual é, na sua avaliação, a importância da diplomacia para um governo?
A política externa de um país é a maneira como um povo se reconhece, ou como deveria se reconhecer. Então, esta política é muito importante. Ela ajuda a construir a imagem que fazemos de nós mesmos. Isto é na vida. É o relacionamento com os outros que nos define. Ninguém se define sozinho sem se relacionar.
Por isso creio que esta política externa do ex-presidente Lula ativa e altiva (quando eu fui ministro, por isto eu posso falar melhor), era algo de que as pessoas sentiam falta até então. Não é que não tinham feito nada, mas o Brasil, antes, era como se jogasse abaixo de sua liga no futebol, abaixo do seu potencial. E o presidente colocou o Brasil onde ele deveria estar: no patamar das grandes nações.
O Brasil é um grande território, com a quinta maior população, sétima economia do mundo, com a diversidade cultural que nós temos, a pluralidade de culturas que se formaram aqui, que se desenvolveram, se misturaram. As pessoas viram isto no Brasil e viram isto no presidente Lula. Isto é muito importante para a autoestima do brasileiro.
Como o Brasil impulsionou esta política externa que deixou de ser submissa para ser “ativa e altiva”?
O brasileiro que está dependendo de um interesse econômico específico pode ter outra visão. Mas o povo brasileiro quer ter a visão positiva de seu país.
Fizemos isto ao mesmo tempo que contribuímos com o bem estar do povo brasileiro, evitando acordos negativos, que teriam impacto, por exemplo, em políticas sociais, em políticas de saúde e até ligadas a outros âmbitos da vida nacional sobre os quais não queríamos perder autonomia.
Diversificamos nossas relações. Passamos a ter uma relação com os países da África, com a Índia, com a China, com América Latina e Caribe, e sem perder a boa relação com a Europa. Eu já tinha sido ministro antes, então eu posso dizer. Nós nunca fomos tão procurados pelos países europeus.
Podemos afirmar que o Brasil se tornou uma liderança mundial?
O Brasil se tornou uma liderança de maneira natural, sem precisar buscar esta liderança. Por suas ações, por sua compreensão em alguns países na região em momentos difíceis. Por sua atuação na OMC. O Brasil até sabia que podia abdicar de um interesse específico para fazer uma aliança maior. É assim na política e é assim também na política externa.
Em maio de 2010, a diplomacia brasileira protagonizou o diálogo com o Irã. Este foi um ponto alto de sua política externa?
Foi, sem dúvidas, um ponto muito importante. O Brasil nunca tinha tido uma atuação tão grande em uma tema tão importante que tem a ver com a paz mundial de maneira tão presente. E nós produzimos um acordo que os países haviam dito que queriam. O Brasil mostrou que era possível fazer um diálogo com o Irã.
O impeachment da presidenta Dilma muda o curso desta diplomacia?
Não vou entrar no problema da legalidade – deixa os ministros do Supremo falarem sobre isto. A credibilidade do Brasil foi muito afetada. Houve uma divisão muito forte no Brasil. Diferentemente de quando houve o impeachment do Collor, o Brasil se uniu.
A percepção de um país dividido não é muito favorável, de qualquer maneira, e é uma realidade. É diferente, se eles ganhassem a eleição. Eu estaria insatisfeito, mas tem que aceitar a vontade do povo.
Uma coisa muito importante é a credibilidade, a legitimidade, e isto o Brasil perdeu muito.
Por Daniella Cambaúva da Agência PT de Notícias