Desigualdade, corrupção e adaptação versus luta cultural, alternância e inclusão.
Preocupados com a premência do tema “Corrupção no Brasil”, estaremos publicando até nosso Congresso uma sequência de artigos referentes ao tema,elaborados por Companheir@s da Articulação de Minas/CNB que atuam na área da Segurança Pública e do Combate a Corrupção. O Objetivo é contribuir para o exercício reflexivo da nossa base partidária que se prepara para o VI Congresso do PT.
1. Introdução
Nunca foi tão importante quanto no atual contexto político um adequado processo de crítica e autocrítica por parte da militância petista.
Além de mobilizar e enfrentar o atual governo golpista contra a retirada de direitos e conquistas da sociedade brasileira, é fundamental construir uma alternativa política e econômica viável para a nação, que permita não apenas a retomada do processo de inserção social e distribuição de renda iniciados em 2003 com o governo Lula, mas que aponte novos rumos, que permitam avanços em relação ao caminho até aqui trilhado pelo PT e aliados pela esquerda.
É necessário compreender que os militantes e filiados ao partido existem imersos na sociedade brasileira real, profundamente influenciada pelos meios de comunicação conservadores. Apesar da esmagadora maioria da militância lutar contra o golpe e fazer a defesa dos governos Lula e Dilma, o enfrentamento do tema da corrupção se transformou num dos principais desafios do PT. Tornaram-se comuns discursos sobre o fim do PT ou mesmo sobre a necessidade de sua refundação.
Os indispensáveis debates sobre as mudanças que o partido precisa fazer para enfrentar o novo contexto político, o desgaste quase que natural pelos anos no governo, as excepcionalidades jurídicas da operação Lava Jato, e outros fatores, têm transformado nosso debate sobre “corrupção” estéril e moralista.
A corrupção é um grande problema em qualquer sociedade ou instituição pública ou privada. Quando envolve um partido de esquerda, comprometido com os setores historicamente oprimidos que tanto necessitam da ação do Estado, se torna ainda mais grave e de maior repercussão e cobrança social. Na verdade não deveria caber corruptos em nenhum partido.
2. Estado e corrupção
O patrimonialismo é parte indissociável da conformação dos governos desde os primórdios das primeiras civilizações até o presente contexto. O surgimento do Estado é também familiar em sua essência. Clãs foram derrotando rivais até a completa hegemonia da força em um dado território. Daí os governos de “famílias nobres” distribuindo entre si parte do erário arrecadado, as propriedades e as posições de poder. Em termos biológicos o natural evolutivo aos humanos é confiar na origem genética comum, em detrimento do estranho, da mesma maneira que se dá na natureza. A herança humana patrimonialista, portanto, é também comportamental e biológica, sendo algo a ser combatido cotidianamente.
Aproximemos essa questão na esfera pessoal para que sua compreensão seja simplificada. Cada pessoa quando em condições de propiciar oportunidades aos familiares e amigos, ao grupo gregário, provavelmente têm que acionar os aspectos ideológicos e a crença em valores elevados para não o fazer. Ou seja, caminhar contra o próprio ímpeto natural de defender, proteger e buscar garantias de sobrevivência aos descendentes.
O Estado impessoal, laico e democrático é uma invenção recente da modernidade, e está em construção. Ainda é mais um objeto de idealização do que uma realidade amplamente observável.
Os poucos exemplos internacionais de Estados impessoais e pouco corruptos geralmente tem atrás de si um extenso caminhar, em que toda uma perspectiva cultural derivada das condições evolutivas da origem humana, foi sendo transformada. Tais nações retratam revoluções culturais que foram ocorrendo em conjunto com o processo de desenvolvimento econômico. Mais do que lastreados por tais condições econômicas, esses países tinham em comum a sensação de pertencimento a uma comunidade, o vínculo afetivo, e um grande entrelaçamento social que facultava ao Estado forte legitimidade. São sociedades que permaneceram como comunidades estáveis ao longo de séculos, não sofrendo grandes invasões, praticamente sem disputas religiosas, raciais, ou desníveis culturais exacerbados.
Um excelente exemplo dessas disparidades mais culturais do que econômicas é observável em meados do século XX no chamado holocausto judeu. Nações europeias economicamente desenvolvidas como a França, Alemanha, Bélgica e Holanda efetuaram verdadeiras caçadas a procura de judeus em meio as suas próprias populações. Hoje se sabe que para que milhões de pessoas fossem mortas precisou-se antes serem identificadas, o que somente foi possível com a colaboração da sociedade em que viviam. Foram centenas de milhares de cidadãos enviados para a morte mediante delações oriundas de sua sinagoga, da comunidade ao redor ou do próprio Estado. Por outro lado, países nórdicos como a Suécia, Finlândia, Noruega e Dinamarca, contribuíram com índices ínfimos para o massacre judeu. No caso da Finlândia e Suécia, por não estarem sob ocupação militar, existiu a coragem do Estado de recusar a pretensão da potência nazista quanto à captura de judeus. Já na Noruega e Dinamarca, que estavam ocupadas por tropas alemãs, houve a recusa heroica da população em aceitar esse tipo de prática, utilizando a desobediência civil como forma de resistência. Na Dinamarca além do Estado e sociedade não permitirem o uso do emblema amarelo, se recusaram a identificar até mesmo os judeus alemães que haviam se exilado no país antes da guerra[1].
Uma inferência que a experiência de desenvolvimento dos países nórdicos indica seria a de que uma evolução cultural pode se desenvolver em paralelo ao crescimento econômico, ou mesmo antes desse. Nessa acepção, as mudanças políticas e culturais não adviriam necessariamente da riqueza econômica, embora deem base para esta.
Nessa mesma lógica, infere-se que em países subdesenvolvidos, ou mesmo em desenvolvimento, o continuo desvio de recursos do Estado pode ser um óbice instransponível para a evolução social de todo um povo, todavia isso não é a regra geral. Em nações cuja pujança econômica adquiriu uma dimensão sólida, o desvio de recursos atrapalha o processo de crescimento, mas não necessariamente o impossibilita. Sob esse prisma, conforme a dimensão da riqueza do Estado a corrupção não é fundamentalmente o principal entrave para o seu desenvolvimento econômico.
Uma característica comum aos povos de grandes territórios como o norte-americano, russo, chinês ou indiano durante o apogeu de seu processo de desenvolvimento foi justamente esse tipo de fenômeno. Os EUA, por exemplo, durante sua grande expansão econômica no decorrer do século XIX e início do XX foi marcado pela falta de confiança em seus agentes políticos. Tudo tinha preço e o pagamento de propina era decisivo para o melhor posicionamento de uma empresa. A sensação de diminuição da corrupção americana é um fenômeno do final do século XX, e não do seu início. Na China, Rússia e Índia, onde há enorme pujança econômica a percepção de corrupção é elevadíssima[2]. A China, por exemplo, se encontra em meio a uma cruzada do governo para reduzir os índices de corrupção dentro do Partido Comunista. Segundo dados do Estado chinês aproximadamente trezentos mil dirigentes foram punidos somente em 2015, alguns com a pena de morte[3].
O que diferenciaria os países ricos mais corruptos ou menos corruptos não seria a possibilidade de desenvolvimento econômico, maior peso nas relações internacionais ou avanço tecnológico. A diferença talvez esteja no nível de desigualdade tolerado pela própria população. Um marco comum entre o Brasil, China, Rússia e Índia seria justamente a disparidade entre riqueza e pobreza. Existe crescimento, mas também existe a cultura dos de cima e dos debaixo que desumaniza os mais pobres. Cabe observar, contudo, que embora países desiguais sejam necessariamente países corruptos, também são incorporados a esse conjunto de disparidade econômica nações não tão corruptas, como são o caso dos Estados Unidos atualmente[4]. Dessa maneira, mesmo nos EUA não existe percepção de corrupção endêmica, porém o modelo econômico vem erodindo as conquistas sociais e o modo de vida de parte de sua população. Em menor escala a mesma situação tem sido percebida na França[5].
Uma ilação possível seria a de que países com grande população e território tenderiam a perder o vínculo social entre seus cidadãos. Embora existam recursos, existiria um importante vetor cultural que limitaria a integração social e distribuição de renda. Esse vetor seria a identidade cultural. Diversos segmentos sociais perderiam a identificação comum, alienando-se do considerado diferente. A explicação para esse fenômeno seria inferida a partir de duas hipóteses. A primeira diretamente derivada da exclusão social histórica, em que os setores desfavorecidos permanecem como subcidadãos aos olhos de sua elite. As favelas oriundas da escravidão brasileira ou a política de castas indiana que formaliza e justifica a miséria de muitos. Na segunda hipótese, um intenso processo migratório desconstituiria a base cultural comum, propiciando que hispânicos nos EUA, ou mulçumanos na França, sejam vistos muito mais como invasores do que cidadãos.
De maneira sintética se pode entender então que a corrupção compõe os Estados desde suas remotas origens, em que o patrimonialismo se associa ao surgimento do homo sapiens, daí a dificuldade em combatê-lo. Podemos também deduzir que os Estados conseguem ampliar sua influência ou atingir certo grau de desenvolvimento econômico apesar desse fenômeno. No tocante ao desenvolvimento social se identifica que sua maturação tende a ser dar a partir de sociedades com grande vínculo sociocultural entre seus membros. Os exemplos de grande avanço nos indicadores humanos em conjunto com a ausência de corrupção residem em pequenas nações que tiveram estabilidade governamental e pouco fluxo migratório durante longos períodos de tempo.
Nessa lógica existiriam enormes diferenças entre o comportamento de pequenas nações economicamente desenvolvidas, com vinte ou trinta milhões de habitantes, em que existe uma sensação de pertencimento e identidade comunal, para com potentados de centenas de milhões de habitantes, e vastos territórios, em que o sentido de comunidade muitas vezes é tênue.
3. Exclusão social e corrupção no Brasil
Sob esse paradigma, ao contrário do senso comum centrado inteiramente no desenvolvimento econômico, percebe-se que um importante quesito para que uma sociedade evolua e diminua práticas fisiológicas e patrimonialistas que se materializam em corrupção, seria a solidariedade social, mediante a percepção do Estado como um ente de entrelaçamento social, como um espaço público comum. Como uma esfera de possibilidade de realização de um projeto coletivo. No entanto, como se sabe essa não é a matiz histórica com que foi fabricado o Brasil.
Diversos são os estudiosos do processo de formação brasileira que apontam o profundo distanciamento de comunidades da elite e dos pobres na origem do país. A escravidão, associada ao extermínio dos povos indígenas, criou um fosso cultural instransponível entre aos valores das elites e parte da classe média para com o conjunto da população pobre. Estudos clássicos como “Casa grande e senzala” de Gilberto Freyre ou “Raízes do Brasil” de Sérgio Buarque de Holanda perpassam em suas narrativas o preconceito, a desigualdade, o mascaramento de uma concepção segregacionista do que seja a sociedade brasileira por traz de uma aparente “cordialidade” social.
É interessante notar que observadores externos mais argutos corrobora essa percepção sobre desigualdade e ódio. Personagens endurecidos pelas profundas disparidades na esfera das relações humanas característicos do período vitoriano, ao se depararem com a realidade brasileira se impactaram com a absoluta ausência de solidariedade social entre suas classes, que vai da absoluta indiferença à aversão. O biólogo inglês Charles Darwin em seus estudos sobre a “origem das espécies” passou pelo Brasil na jornada de ida e volta do navio Beagle até a ilha de Galápagos. Darwin em seu relato de viagem retrata o profundo impacto que a escravidão e a indiferença social com a dor alheia lhe causaram no Brasil[6]. Seres humanos sendo sistematicamente espancados, torturados e humilhados, onde a violência e disparidade são a norma e não a exceção. Outra passagem igualmente ilustrativa desse olhar estrangeiro de estranhamento ocorre com a indignação de Isabel Burton, esposa do embaixador e aventureiro britânico Richard Burton ante a desigualdade brasileira. Vindo residir em São Paulo em meados de 1865, Isabel “ficou transtornada com a pobreza generalizada que via entorno e com a insensibilidade em relação à miséria[7]”. Religiosa, Isabel se pôs a catequizar escravos negros, que foram criados com a ideia de que por serem pretos não tinham alma. Nem o direito de se libertarem de uma vida de torturas, mesmo após a morte, lhes era permitido.
Uma dedução nem sempre óbvia é da associação entre exclusão social e corrupção. Em um Brasil preconceituoso, excludente e impiedoso, em que o “outro” por não ser visto como parte da sociedade nada merece, o combate à corrupção é muito mais desafiador do que se imagina. O desvio de verbas ou a malversação de dinheiro público são considerados ilícitos primeiramente por serem condenados moralmente. Não se lesa aquele que é como você. E caso aconteça e se torne público, haverá ampla condenação do segmento social onde ocorre o dano. Na medida em que um cidadão com direitos e garantias é expropriado de parte de seu patrimônio por outro cidadão da mesma origem social, este passa aos olhos da coletividade como uma pessoa à margem da lei.
Contudo, se lesados forem os desprovidos de cidadania, considerados não cidadãos, a mesma atitude recebe diferente percepção moral. Em uma grosseira analogia, exércitos que pilham o território inimigo, que matam e estupram sistematicamente, ainda assim são considerados patriotas por estarem infringindo dor para outra sociedade, para indivíduos que são vistos como adversários, ou à margem do que se considera civilização.
Assim se entende porque a corrupção, tal como outros crimes, somente são percebidos como ofensivos para parcelas significativas das classes médias e das elites quando estas tem a percepção de que são atingidas diretamente. Desse modo, o desvio na merenda da rede pública, no orçamento do metrô, o morticínio nas favelas, as privatarias, o sucateamento da saúde e educação públicas, não provoca aversão da mesma maneira que a redução da velocidade nas vias públicas ou a “corrupção” denunciada e propagandeada contra os Partidos e movimentos sociais ligados a classe trabalhadora.
Por conseguinte, combater a corrupção dentro do estado brasileiro é enfrentar o monstro de muitas camadas e significados. Em uma mesma narrativa de indignação reside uma miríade de acepções ocultas. Uma ampla diversidade de sentidos discursivos. Quando se busca entender essa diversidade e, sobretudo como se relaciona a desigualdade social com a corrupção, ficará mais fácil entender onde de fato reside a insatisfação social dos segmentos elitizados da sociedade brasileira. Também facilitará o entendimento da relevância desse tema quanto aos desafios enfrentados pelo Partido dos trabalhadores.
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[1] ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das letras, 1999, p. 188-199.
[2] No índice de percepção de corrupção de 2015 o Brasil se encontra o Brasil saltou na 68ª posição para a 76ª. Mesmo assim se encontra equiparado a Índia na 76 ª, e em melhor posição que a China na 83ª e Rússia na 119ª. Disponível em: < http://www.transparency.org/cpi2015/results#results-table>.
[3] Mais informações em: < http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2016/06/1780759-partido-comunista-da-china-aperta-cerco-a-dirigentes-corruptos.shtml>. Também em: <http://observador.pt/2016/10/25/corrupcao-e-tema-do-comite-do-pc-chines-com-confissoes-de-ex-politicos/>.
[4] 16ª posição no índice de corrupção < http://www.transparency.org/cpi2015/results#results-table>.
[5] Disponível em: <http://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/o-aumento-da-desigualdade-na-franca>.
A França está na 23ª posição do índice de corrupção da Transparência Internacional.
[6] FERNANDES, Antonio Carlos Sequeira; MORAES, Vera Lucia Martins de. O Retorno Impossível: Charles Darwin e a Escravidão no Brasil, Anuário do Instituto de Geociências – UFRJ, Vol. 31 – 1 / 2008 p. 65-82. Disponível em: <http://www.anuario.igeo.ufrj.br/anuario_2008_1/2008_1_65_82.pdf>.
[7] RICE, Edward. Sir Richard Francis Burton: o agente secreto que fez a peregrinação a Meca, descobriu o Kama Sutra e trouxe as mil e uma noites para o Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 507.
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