Partido dos Trabalhadores

Letras Por Elas | Obras sobre racismo são destaque no Prêmio Jabuti de 2020

“Solo para Vialejo”, “Pequeno Manual Antirracista” e “Torto Arado” estão entre os laureados da 62ª edição do prêmio. Entenda alguns aspectos da questão racial na trajetória da literatura brasileira

Ana Clara, Redação Elas Por Elas

A 62ª edição do prêmio Jabuti colocou mais uma vez o tema do racismo no círculo literário brasileiro. O Livro do Ano foi “Solo para Vialejo”, da pernambucana Cida Pedrosa, publicada pela Cepe Editora. A obra trata das negritudes, indigenices e branquitudes que moldam a nossa humanidade nas palavras da autora, em entrevista à Folha de S. Paulo.

O também premiado romance “Torto Arado”, de Itamar Vieira Junior, bateu concorrentes fortes como Chico Buarque, Paulo Scott, Maria Valéria Rezende e Adriana Lisboa. A obra narra o crescimento de duas irmãs em uma fazenda no interior do Brasil, numa trama que se desenvolve para refletir sobre a ancestralidade negra e a resistência dos povos quilombolas.

Djamila Ribeiro ganhou o prêmio de melhor livro de ciências humanas com o “Pequeno Manual Antirracista”, vencendo autores como Ailton Krenak, Lilia Schwarcz e Heloisa Starling.

Ainda na temática, outros prêmios foram para o primeiro volume do projeto “Escravidão”, do jornalista Laurentino Gomes, na categoria de biografia, documentÁrio e reportagem, e o juvenil “Palmares de Zumbi”, de Leonardo Chalub. Na categoria infantil, o escolhido foi “Da Minha Janela”, de Otávio Júnior, contado do ponto de vista do morador de uma favela do Rio de Janeiro.

A literatura no processo de construção de identidades

 

Diversos artigos apontam a importância de valorizar obras que abordam a questão racial no Brasil. Diante de um contexto em que os governantes negam a existência do racismo, o fortalecimento de um espaço legítimo de opinião pública que vai nessa contramão faz parte do movimento político de resistência ao preconceito.

A Lei 10.639/03, criada no governo Lula, tornou obrigatório o ensino da História e da Cultura Africana e Afro-brasileira nas escolas públicas e privadas do Brasil , afirmando os direitos da população negra em diferentes níveis. No entanto, esse é apenas um dos aspectos que compõe a questão racial na literatura. A pesquisadora Michelle dos Santos Vianna aborda os desafios para ampliar as discussões sobre práticas educativas e pedagógicas no processo de inclusão e os caminhos necessários para promover a igualdade racial na educação e na sociedade como um todo. Em seu artigo “Era uma vez a questão racial: os livros de Literatura no processo de construção de identidades”, ela toca em um ponto nevrálgico do acesso e da relevância da literatura infantil.

“Para além das princesas e príncipes do padrão estético que nos é apresentado, o livro quando bem escolhido e quando integra o segmento étnico, leva a criança a reinventar parte da história, em que ela se vê como personagem sem perder o encantamento da tradição dos contos de fadas”, Michelle dos Santos Vianna, pesquisadora.

Outro aspecto que permeia a visibilidade (ou não) do negro na literatura pode passar, por exemplo, pela noção de ‘monstruosidade’ como construção narrativa na literatura fantástica inglesa do século XIX, na literatura mágico realista brasileira do modernismo e no cinema latino-americano contemporâneo.

Essa é uma das abordagens presentes no estudo “Os monstros e a questão racial na narrativa pós-colonial brasileira”, da pesquisadora Célia Maria Magalhães. Segundo a autora, precursora da narrativa mágico realista, no contexto pós-colonial brasileiro, essa narrativa da ‘monstruosidade’ se transformará na narrativa trickster, de Mário de Andrade, autor de Macunaíma que, como o vampiro em outras culturas, representa posições específicas da cultura brasileira, incluindo a questão do negro.

A narrativa Macunaíma diferencia-se da narrativa antropofágica de Oswald de Andrade, ambos são construtos contradiscursivos pós-coloniais diferenciados, o primeiro aproveitando a ambivalência e o hibridismo do discurso eurocêntrico para insinuar-se na representação das questões específicas da cultura brasileira.

“O antropófago [Oswald Andrade], ao propor o retorno da diferença do nativo, reduz a complexidade da questão racial nas relações coloniais brasileiras, apagando por exemplo o elemento negro da cultura. […]. A narrativa trickster de Mário, além de […] marcar a nossa alteridade, tem a vantagem de reunir sob a sua construção ‘nem tanto’ monstruosa, um composto das figuras lendárias branca, indígena e negra, colocando a questão racial brasileira em toda a sua complexidade”, Célia Maria Magalhães, pesquisadora.

Objeto e autoria

 

Na trajetória do discurso literário nacional, existem dois posicionamentos do negro nesse cenário: a condição negra como objeto, numa visão distanciada, e o negro como sujeito, numa atitude compromissada. É sobre esse tema que o estudo “A trajetória do negro na literatura brasileira”, do pesquisador Domício Proença Filho, vai se debruçar e demarcar que a presença do negro na literatura brasileira não escapa ao tratamento marginalizador da sociedade — diferenciando a literatura sobre o negro, de um lado, e literatura do negro, de outro.

“A visão distanciada configura-se em textos nos quais o negro ou o descendente de negro reconhecido como tal é personagem, ou em que aspectos ligados às vivências do negro na realidade histórico-cultural do Brasil se tornam assunto ou tema. Envolve, entretanto, procedimentos que, com poucas exceções, indiciam ideologias, atitudes e estereótipos da estética branca dominante“, Domício Proença Filho

A partir dessa dimensão, o estudo revela que a matéria negra, embora só ganhe presença mais significativa a partir do século 19, surge na literatura brasileira desde o século 17, reconhecida nos versos satíricos de Gregório de Matos, por exemplo.

Já a literatura do negro começa a surgir por volta de 1850-1882 com o irônico Luís Gama, filho de africana com fidalgo baiano e o primeiro a falar em versos do amor por uma negra. Outro exemplo apontado pelo estudo é o mulato (sic) Lima Barreto (1881-1922), o excepcional ficcionista que trata da realidade social urbana e suburbana do Rio de Janeiro.

O pesquisador aponta que o posicionamento engajado só começa a corporificar-se efetivamente a partir de vozes precursoras, nos anos de 1930 e 1940, ganha força a partir dos anos de 1960 e presença destacada por meio de grupos de escritores assumidos ostensivamente como negros ou descendentes de negros, nos anos de 1970 e no curso da década de 1980, preocupados com marcar, em suas obras, a afirmação cultural da condição negra na realidade brasileira. As vozes continuam nos anos de 1990 e na atualidade, embora com menor presença na repercussão pública.

Essa tomada de posição literária relaciona-se com os movimentos de conscientização dos negros brasileiros que marcam o início do século e vem ganhando contornos mais nítidos e definidos ao longo desse período histórico, com maior ou menor evidência.

Data de 1915 o aparecimento, na imprensa, de periódicos especializados, entre eles, Menelik (1915-1935), O Clarim da Alvorada (1924-1937), Voz da raça (1924-1937); em 1931 surge a Frente Negra Brasileira. Segue-se o interregno da ditadura getuliana. As vozes voltam a clamar a partir de 1945, através, entre outras publicações, de Mundo Novo, Novo Horizonte, Alvorada. Nesse mesmo ano, funda-se a Associação de Negros Brasileiros; de 1944 é a criação do Teatro Experimental do Negro, onde se ressalta a figura de Abdias do Nascimento, também fundador, em 1968, do Museu de Arte Negra. Data de 1978 a fundação do Movimento Unificado contra a Discriminação Racial (MNUCAR), depois Movimento Negro Unificado (MNU). Deste mesmo ano é a criação, em São Paulo, do Centro de Cultura e Arte Negra. No âmbito oficial, cria-se, nos anos de 1980, a Fundação Palmares. São algumas das publicações, entidades e movimentos de posições diferenciadas quanto ao equacionamento do problema, mas todas com o mesmo núcleo de preocupação: a causa do negro brasileiro.

Pouco a pouco, escritores negros e descendentes de negros começam a manifestar em seus escritos o comprometimento com a etnia.

É o caso do precursor Lino Guedes (1897-1951), autor, entre outros títulos, de O canto do cisne preto (1926), Urucungo (1936) e Negro preto cor da noite (1936)

Outro combatente da velha guarda é Solano Trindade (1908-1973), legitimado pela tradição literária brasileira, mas não pela matéria negra de seu texto e sim pelo posicionamento político-social; o seu poema presente na coletânea Violão de rua (1962), antologia representativa de uma das tentativas de renovação poética pós-modernista, fala que “tem gente com fome”. Mas também são dele textos como, por exemplo, “Navio negreiro”, onde se lêem, entre outros, os versos:

Lá vem o navio negreiro
Cheio de melancolia
Lá vem o navio negreiro
Cheinho de poesia…
Lá vem o navio negreiro
Com carga de resistência
Lá vem o navio negreiro
Cheinho de inteligência

 

Os propósitos de afirmação étnica e de identidade cultural, o espírito de grupo, aliados às dificuldades mercadológicas que enfrentaram e enfrentam, levaram-nos a integrar grupos e movimentos, entre eles o grupo Quilombhoje, de São Paulo, criado em 1980, responsável pela publicação dos Cadernos negros, periódicos divulgadores com vários números em circulação, o grupo Negrícia, Poesia e Arte do Crioulo, lançado no Rio de Janeiro, em 1982, e o grupo Gens (Grupo de Escritores Negros de Salvador), que data de 1985.

Como outros veículos de divulgação, além das obras de cada escritor, cabe citar ainda três coletâneas: Axé – Antologia da poesia negra contemporânea (Global, 1982), organizada por Paulo Colina, A razão da chama. Antologia de poetas negros brasileiros (GRD, 1986), com coordenação e seleção de Oswaldo de Camargo, e a globalizante Poesia negra brasileira (1992), organizada por Zilá Bernd.

Entre os autores, figuram Abelardo Rodrigues (Memória da noite, 1979), Adão Ventura (Abrir-se um abutre ou mesmo depois de deduzir dele o azul, 1970; As musculaturas do Arco do Triunfo, 1976, A cor da pele, 1980), Arnaldo Xavier (Pablo, 1975, A rosa da recusa, 1980), Cuti (Luís Silva), (Poemas da carapinha, 1978; Sol na garganta, contos, 1979, Batuque de tocaia, 1982), Éle Semog (Luiz Carlos Amaral Gomes) (Atabaques, 1983, em colaboração com J. C. Limeira), Geni Mariano Guimarães (Terceiro filho, 1979), Paulo Colina (Plano de vôo, 1984, Fogo cruzado, 1980), W. J. de Paula (Versos brancos, negra poesia, 1972), José Alberto de Oliveira de Souza (Cinco poemas vivos, 1978), Maria da Paixão (esparsos, nos Cadernos negros), Eduardo de Oliveira (Ancoradouro, 1960, Gestas líricas da negritude, 1967, Túnica de ébano, 1980), Oswaldo de Camargo (Grito de angústia, 1958, 15 poemas negros, 1963), Mirian Alves (Momentos de busca, 1983, Estrelas no dedo, 1985), Oliveira Silveira (Roteiro dos tantãs, 1981, Banzo, saudade negra, 1970, Décima do negro peão, 1974, Pelo escuro, 1977), Antônio Vieira (Areia, mar, poesia, 1972, Cantos, encantos e desencantos d’alma, 1975, Cantares d’África, 1980), Jônatas Conceição da Silva (Miragem do engenho, 1984), Ronald Tutuca (O paquiderme com asas de água, 1981), Mortoalegrense, 1982, Homem ao rubro, 1983), Carlos Assumpção (Protesto, 1982).

Mulheres negras

 

Apesar da intensa produção literária de autores negros e negras, o racismo e o preconceito impediram que o reconhecimento viesse a seu tempo e à altura da qualidade das obras. No caso das mulheres negras, o silenciamento e a falta de reconhecimento é ainda maior. Basta notar a predominância de nomes masculinos na relação acima, 

Carolina Maria de Jesus, autora de “Quarto de Despejo”, que traça um retrato cruel das desigualdades do boom de desenvolvimento da cidade de São Paulo, nos anos 50, foi um dos poucos nomes consagrados na história da literatura por mulheres negras. E, mesmo assim, quando tentou ir além e produzir obras que superavam a condição e a descrição da pobreza sofreu duras críticas literárias e, apesar de ter escrito mais duas obras além de seu best-seller, não conseguiu retornar ao círculo literário.  A escritora Conceição Evaristo, quando foi laureada e homenageada pelo prêmio Jabuti em 2019, ressaltou essa questão, em entrevista ao R7.

“Aos 73 anos ainda pretendo escrever muito, mas às vezes me pergunto se esse reconhecimento não se deu de forma muito tardia, quando penso que minha primeira publicação foi em 1990. Isso marca também a trajetória da mulher negra brasileira, para se afirmar fora dos espaços de oportunidade”, afirmou a autora.

Ela destacou a trajetória da literatura negra brasileira que começou a se destacar com Machado de Assis, Cruz e Souza, Lima Barreto, Maria Firmina dos Reis, mas também pondera a crítica literária que nasce e é desenvolvida num país onde relações raciais são profundamente racistas, mas que não assumem esse racismo — como a crítica que nega a condição negra de Machado de Assis.

“Na medida que vamos reivindicando com muita veemência o nosso lugar na literatura brasileira, isso chama atenção e leva as pessoas mais sensíveis a prestarem atenção, a procurarem essa autoria negra, mas porque demos o primeiro grito. […] Acredito que o Jabuti pra mim e pra outros escritores e escritoras que estão fora das grandes editoras, causa uma revolução na maneira de pensar esses lugares de novas vozes literárias. E isso só acontece se houver uma curadoria sensível, capaz de sair do lugar onde estavam antes”, Conceição Evaristo.