Letras Por Elas | Pelas ruas de Barcelona, “Nada” acontece e encanta

Barraco familiar, sonhos frustrados, relações complexas e um mundo novo estão presentes no romance “Nada”, da espanhola Carmen Laforet

Ana Clara, Agência Todas

Se você olha assim, por cima, de forma bem desavisada, o romance da espanhola Carmem Laforet é um roteiro perfeito de novela das sete, ambientada em uma Barcelona pós Guerra Civil. A mocinha do interior vem para estudar na cidade grande, traz na bagagem sonhos de uma carreira universitária em Letras, mas vai ter que lidar com uma galerinha do barulho: a própria família. 

Uma casa que, outrora, foi opulenta e requintada, descasca e desaba aos poucos junto com a moralidade e o conservadorismo que marcam a época. O período histórico que se insere o romance de Laforet  expressa o universo difuso do exato momento de transição de ordens estabelecidas, em que as pessoas buscam insanamente corresponder às expectativas do velho enquanto seguram, sem sucesso, o rompante da chegada do novo.

Quando as portas da casa na rua Aribau se abrem para Andrea, o circo de horrores invade a narrativa. Pelo olhar da protagonista, é possível sentir o peso desconfortável de famílias que mantém relações tóxicas e práticas abusivas, sustentadas nas frustrações pessoais e coletivas da convivência pela necessidade. 

Se você vive em família numerosa e enfrenta dificuldades parecidas, pode ser um bom exercício de observação do outro. E se você curte mesmo é um barraco e fofoca, com uma pitada trágica, esse aqui também pode ser o seu caminho

Uma avó idosa que alterna entre momentos de lucidez e insanidade é a ponta do respiro tragicômico da família. Da indiferença à violência sofrida pela nora dentro de sua própria casa à passada de pano nos erros dos filhos homens, a figura da matriarca pode acabar frustrando expectativas da única personagem que se preocupa com a chegada da neta. As duas figuras masculinas são ex-combatentes da Guerra Civil e um deles sofre de transtorno pós-traumático e desconta suas agressividades na esposa, que também mora na casa. O irmão dele, uma das figuras com maior peso na trama, possui um talento nato para música, vive em um quartinho isolado no sótão, e ocupa o papel de sedutor misterioso. A princípio, é possível esboçar uma leve simpatia pela única pessoa capaz de definir o estado de miséria moral da própria família, no entanto, ele acaba se revelando o componente perverso dessa estrutura. A tia “solteira” esconde um segredo e é a peça que envolve e manipula os humores da casa, uma empregada mal remunerada não se separa do cachorro da família e se mantém no posto. 

Com jantares, almoços e reuniões marcados pela violência verbal e até física, Andrea vai se ocupando da inconstância sentimental e familiar e buscando outras formas de se relacionar com as pessoas e até com a própria cidade. E é a partir desse ponto que a obra começa a sair do tom novelesco para a construção de uma complexidade narrativa — daquelas que permite o leitor se identificar não apenas com as generalidades, mas também com as especificidades, ainda que elas sejam tão diversas nos dois sentidos. 

Andrea tece relações na faculdade, constrói amizades com pessoas mais abastadas do que ela, e costura ao longo de toda obra o sentimento de inferioridade e as diversas estratégias adotadas pelas pessoas para convencerem a si mesmas do valor da própria existência. O mendigo na esquina, os amigos do sarau, a relação de amor e inveja com a melhor amiga, são colocadas em amplitude urbana conectando os momentos às sensações que a cidade de Barcelona oferece. Carmen consegue trazer com maestria as luzes, cores, sons e sabores da rua Aribau pelo caminho até à universidade. A chuva que encharca o rancor e a angústia enquanto ela enfrenta tanto fora quanto dentro de casa uma tempestade de sentimentos alheios.

 A autora concede para as leitoras a difícil construção do eu quando a gente olha para o outro e como as anulações da individualidade, principalmente das mulheres, são construídas na brutalidade da delicadeza do gesto. Todo esse movimento ressignifica e complexifica as cenas familiares quando, de repente, a autora faz a leitora esperar pelas intervenções desastrosas da matriarca que, de forma enviesada, acabam sendo a única interpretação e salvação possível para o impasse. Ou os segredos dos familiares que são revelados correndo pela noite escura de Barcelona, entrando em becos, casas de jogos e prostituição — uma descoberta possível apenas fora do ambiente doméstico, demonstrando que, lá dentro, a força do epicentro dos conflitos giram um mundo muito maior por baixo dos panos.  

Um romance duro e pouco sentimental que lembra bastante a obra “A praça do diamante”, da catalã Mercè Rodoreda, ambientada apenas dez anos antes (1930), nas ruas e praças da mesma Barcelona. A estética pragmática da relações amorosas, o papel das mulheres diante de um mundo que desaba e não há espaço para o exercício da própria afetividade aproximam bastante essas duas leituras. Se ainda houver fôlego depois da saga de Andrea, ainda dá para seguir nos ares catalães com os pombos de Colometa. 

 

Obra: Nada

Autora: Carmen Laforet

Ano: 2018

Editora: Schwarz

Ano da primeira publicação: 1945

 

Obra: A Praça do Diamante

Autora: Mercè Rodoreda

Ano: 2017

Editora: Planeta do Brasil

Ano da primeira publicação: 1962

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