Reportagem da agência ‘Reuters’, publicada nesta terça-feira (26), revela que o presidente Jair Bolsonaro trabalha para sabotar o combate ao coronavírus desde o início da pandemia. Segundo a extensa investigação da agência, no início da propagação da doença, em 13 março, o Ministério da Saúde parecia ter a situação sob controle, adotando medidas para a contenção do vírus apenas dois dias depois de a Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciá-lo como uma pandemia.
Entre as medidas, a pasta determinou que os cruzeiros fossem cancelados, aconselhou as autoridades locais a descartarem eventos de grande escala e determinou que viajantes vindos do exterior ficassem isolados por uma semana. Menos de um dia depois, no entanto, a pasta voltou atrás por pressão direta do presidente Jair Bolsonaro.
Segundo a ‘Reuters’, o ministério removeu do site orientações sobre quarentena para viajantes e o cancelamento de cruzeiros, dizendo que essas medidas estavam “em revisão”. E voltou atrás no cancelamento de grandes eventos, deixando a medida apenas para áreas com transmissão local. A reviravolta, dada pouca atenção na época, marcou um ponto de virada no tratamento da crise pelo governo federal, observam quatro fontes ouvidas pela reportagem, entre elas Julio Croda, epidemiologista então chefe do Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis (DEIDT).
“Nos bastidores, eles disseram, o poder estava mudando do Ministério da Saúde, líder tradicional em questões de saúde pública, para o escritório do chefe de gabinete do presidente, conhecido como Casa Civil, liderado por Walter Souza Braga Netto, general do Exército”, descreve o texto, assinado pelos correspondentes Stephen Eisenhammer e Gabriel Stargardter.
A ‘Reuters’ afirma ainda que as mudanças fortaleceram a tese de Bolsonaro de que a prioridade era “salvar a economia”. Ele não arredou o pé dessa posição, apesar “das críticas nacionais e internacionais ao tratamento da crise e do número de mortos em uma bola de neve”. Segundo a reportagem, a Casa Civil informou que as mudanças nas diretrizes de 13 de março foram feitas pelo Ministério da Saúde, após contribuições de estados e municípios. O Palácio do Planalto não comentou o conteúdo da reportagem.
Reportagem de fôlego
De acordo com o veiculo, para radiografar de modo fidedigno a sucessão de erros cometidos pelo país na tentativa de frear o avanço da pandemia, foram entrevistadas mais de duas dúzias de pessoas, entre técnicos do governo e ex-gestores, além de especialistas, médicos e representantes do setor de saúde.
“Eles descreveram uma resposta que começou de maneira promissora, mas que logo foi atrapalhada pelos confrontos do presidente com o Ministério da Saúde”, observa a reportagem. Técnicos e mesmo funcionários do gabinete não conseguiram convencer Bolsonaro de que a sorte econômica do Brasil dependia da eficácia com que ele lidava com sua emergência de saúde pública. O resultado agora é conhecido pelo planeta.
Logo após a publicação das novas diretrizes, em 13 de março, Croda disse que recebeu um telefonema de seu ex-chefe, o secretário de Vigilância em Saúde Wanderson Oliveira, que disse estar “sob muita pressão da Casa Civil e que teve que mudar o comunicado” publicado pelo ministério com a descrição das medidas. Croda disse que Oliveira não apontou especificamente quem na Casa Civil exigiu que as diretrizes fossem enfraquecidas, destaca a Reuters.
Para especialistas, o fracasso brasileiro ainda é mais chocante à luz do sucesso de governos anteriores no combate à malária, ao zika e ao HIV. Segundo Albert Ko, professor da Escola de Saúde Pública de Yale, com décadas de experiência no Brasil, o sistema de saúde do país representava um sopro de luz para a população, mas “ver tudo se desintegrar tão rapidamente é muito triste”.
Em outro despacho, a ‘Reuters’ ainda informa que o Covid está se espalhando nos campos de petróleo do Brasil, enquanto cinco operadoras offshore registram casos.
Atenção da imprensa mundial
Com a ocupação pelo Brasil do posto de epicentro da pandemia do coronarívus na América Latina, o mundo olha com atenção para os desdobramentos da crise brasileira. Semanalmente, os principais veículos de imprensa do mundo apontam não apenas a desastrosa administração do governo no combate à doença como também os abalos institucionais provocados por Bolsonaro, que vem subindo o tom autoritário nas últimas semanas.
Além da ‘Reuters’, diários como o francês ‘Le Monde’, o espanhol ‘El País’ e o alemão ‘Sueddeutsche Zeitung’ publicaram reportagens sobre a situação no país, engrossando a lista de publicações e redes de TV que estão cobrindo a tragédia brasileira, como os britânicos ‘Financial Times’, ‘The Telegraph’, ‘The Economist’ e ‘The Guardian’, os americanos ‘New York Times’ e ‘Washington Post’, bem como a ‘CNN’, além dos argentinos ‘Página12’ e ‘Clarín’, entre outros milhares de veículos, sites e agências de notícias que replicam conteúdo.
O ‘Le Monde’ relata nesta terça que o país atingiu a marca de 23.473 mortes e 374.898 casos positivos e tornou-se um dos principais novos focos do coronavírus no mundo. De acordo com o jornal francês, a marca simbólica de 1 mil mortes diárias foi cruzada há pouco mais de uma semana. E destaca: as previsões para os próximos meses são “sombrias, pois o sistema de saúde está saturado e Bolsonaro se recusa a tomar medidas fortes para combater a pandemia”.
Combater o vírus sem plano
Já o espanhol ‘El País’ constata que o país está “completamente acéfalo em sua frente de combate”. “Enquanto o Ministério da Saúde segue sem um comando oficial definido há dez dias, o país falha em apresentar qualquer plano contundente para tentar barrar a progressão da doença, que não para de acumular cifras trágicas desde o primeiro caso confirmado, em 26 de fevereiro”, descreve a reportagem. Segundo o jornal, desde o primeiro registro de óbito, em 17 de março, o Brasil tem 14 óbitos por hora, em média.
O país ainda é associado como único país no mundo que autoriza o uso indiscriminado de hidroxicloroquina, cujos estudos foram banidos na segunda-feira (25) pela OMS, com ampla repercussão em jornais estrangeiros, como o francês ‘Libération’, o alemão ‘Frankfurter Allgemeine Zeitung’ e o inglês ‘The Guardian’.
Da Redação, com agências internacionais