Espécie de Rei Midas ao contrário, Jair Bolsonaro corrompeu a Lei de Acesso à Informação (LAI), sancionada pela então presidenta Dilma Rousseff em 2011, para encobrir seus malfeitos com o uso do sigilo de 100 anos. A manobra vem recebendo duras críticas do candidato do PT à Presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva, que anunciou a revogação dos decretos do desgoverno Bolsonaro, caso seja eleito.
“O atual presidente não exigiu a investigação do Queiroz, dos filhos ou das denúncias da CPI contra o Pazuello. Ele não só coloca a sujeira embaixo do tapete como transforma em sigilo de 100 anos”, afirmou Lula em seu perfil no Twitter nesta quarta-feira (31). Domingo (28), durante o debate na Bandeirantes, ele havia dito que “hoje, qualquer coisinha é sigilo de cem anos”.
Considerada um avanço na transparência pública do país, a LAI regulamenta o direito do cidadão de acessar informações públicas, conforme determina a Constituição Federal de 1988. O texto acaba com o sigilo eterno de documentos ultrassecretos afirmando que nenhum deles poderá ficar por mais de 50 anos sem acesso público.
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Para ocultar evidências de ilícitos e/ou corrupção, Bolsonaro aproveitou uma brecha na lei, que prevê sigilos de até 100 anos quando a divulgação dos dados, mesmo sendo de interesse público, viola a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem de uma pessoa. Quando a manobra foi realizada, ainda no primeiro mês do mandato, representantes de entidades que militam pela transparência na administração pública atacaram as mudanças na LAI, assinadas pelo vice Hamilton Mourão, presidente interino na ocasião.
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“A lei não foi feita para classificar documentos, ela foi feita para ampliar a informação. O governo pode não expor determinadas decisões em tempo real, isso abre a porta para ele não informar a população e os meios de comunicação. Parece um contrassenso no combate à corrupção”, afirmou na época Mônica Sapucaia Machado, professora do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP-SP).
Reportagem do Estadão publicada em maio de 2022 mostrou que, de janeiro de 2019 a dezembro de 2021, um a cada quatro pedidos de informação rejeitados pelo desgoverno Bolsonaro tiveram como justificativa o sigilo da informação. Conheça a seguir algumas das tramoias encobertas pela manobra de Bolsonaro.
“Rachadinha” nos gabinetes dos filhos
Exemplo claro desse “contrassenso no combate à corrupção” é o sigilo imposto pela Receita Federal em julho de 2021 no processo que investiga a ação do órgão para corroborar uma tese da defesa do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) sobre o caso das rachadinhas. Por quatro meses, cinco servidores do órgão tentaram confirmar se dados fiscais de Flávio teriam sido acessados e repassados de forma ilegal ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).
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Flávio e o irmão vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), além de Ana Cristina Siqueira Valle, segunda ex-mulher de Jair, são investigados desde 2018 por envolvimento no esquema de apropriação ilegal de salários de funcionários fantasmas dos gabinetes. Sob a alegação de que os documentos possuem informações pessoais, a Receita limitou o acesso a agentes públicos e aos envolvidos no processo.
Crachás de Carlos e Eduardo Bolsonaro
As informações sobre os crachás de acesso ao Palácio do Planalto emitidos em nome dos filhos Carlos (Republicanos) e o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL/SP) também estão bloqueadas desde julho de 2021. Em documentos públicos enviados à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid naquele ano, a própria Presidência da República havia informado a existência desses cartões.
Mas a Secretaria-Geral da Presidência decretou sigilo alegando que os dados dizem respeito “à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem dos familiares do Senhor Presidente da República, que são protegidas com restrição de acesso, nos termos do artigo 31 da Lei nº 12.527, de 2011”. A informação foi divulgada pela revista Crusoé.
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Conforme a revista, entre abril de 2020 e junho de 2021 Carlos visitou o Planalto pelo menos 32 vezes. Eduardo esteve oficialmente no gabinete do pai pelo menos três vezes em abril de 2020. Ambos participavam de reuniões do “gabinete paralelo”, que orientou Bolsonaro na condução da pandemia, e também do chamado “gabinete do ódio”.
Proteção para Pazuello e os filhos
Outro caso “varrido para debaixo do tapete” em maio de 2021, por servidores de alto escalão de sete ministérios, é o processo interno do Exército contra o general e ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, pela participação em uma motociata ao lado do chefe, em maio de 2021. O regulamento disciplinar do Exército proíbe a participação de militares da ativa em atos políticos.
O pedido de acesso foi feito pelo jornal Folha de São Paulo, que questionou também o fato de Pazuello não receber punição. Em resposta, a Comissão Mista de Reavaliação de Informações (CMRI) alegou que a divulgação do processo representaria “risco aos princípios da hierarquia e da disciplina do Exército”. O general acabou absolvido.
Encontro de Bolsonaro com pastores do MEC
Em meio ao escândalo de corrupção no Ministério da Educação que mais tarde levaria à demissão do ministro e pastor Milton Ribeiro, o Palácio do Planalto decretou o sigilo, em julho de 2021, sobre os encontros de Bolsonaro com os pastores lobistas Gilmar Santos e Arilton Moura. Ambos são investigados pela operação de um esquema de desvios de recursos da educação para municípios em troca de propina.
O jornal O Globo pediu, via Lei de Acesso à Informação, a relação das entradas e saídas no Palácio do Planalto de ambos os religiosos, incluindo reuniões com o presidente. Mas o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), comandado pelo ministro Augusto Heleno, informou que a solicitação “não pode ser atendida” porque a divulgação das informações poderia colocar em risco a vida do presidente da República e familiares.
Cartão de vacinação presidencial
Até informações sobre o cartão de vacinação e as doses de vacinas já recebidas por Bolsonaro foram censuradas por 100 anos em janeiro de 2021. No auge da pandemia do coronavírus, em 2020, ele contestou a eficácia das vacinas enquanto tentava empurrar medicamentos inócuos para a população, chegando a dizer que seria o último a se imunizar. Sua campanha atrasou a aquisição de vacinas, causando a morte evitável de centenas de milhares de pessoas.
A revista Época solicitou, por meio da LAI, os dados sobre a imunização do presidente, mas o Palácio do Planalto afirmou que os dados “dizem respeito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem” do presidente. Se é que ele sabe o que é honra…
Da Redação