Partido dos Trabalhadores

ARTIGO: Dia da África – mais do que comemoração é preciso ação política

Que relevância tem essa data para o Brasil? Confira artigo da ex-ministra e pesquisadora Matilde Ribeiro e do pesquisador Thiago Barbosa

O Dia da África (25 de maio) é um marco importante de ser conhecido pelas/os brasileiras/os. A partir dessa informação, pode surgir a pergunte: que relevância o Dia da África tem para o Brasil? A reflexão sobre comemoração e ação, pode começar por aí.

Cabe assinalar que o 25 de maio não é só ou tão somente uma data para se comemorar; é também um chamado à reflexão sobre passado, presente e futuro.

Entre vários os motivos para refletir sobre comemoração e ação em relação ao Continente Africano, podemos destacar: a) o Brasil é o país que, fora da África, tem a maior quantidade de população negra; b) vivenciamos em nosso país quase 400 anos de escravização das/os africanas/os que foram capturadas/os da África; c) o Brasil de maneira oficial, teve historicamente grande distanciamento do Continente Africano. Apenas a partir dos anos 1960 inicia-se uma aproximação, porém de maneira descontínua.

 

Breves informações sobre o Continente Africano

Em relação ao Continente Africano é importante conhecermos que, no dia 25 de maio de 1963, chefes de Estados de 32 nações africanas “reuniram-se em Adis Abeba, Etiópia, para assinar a Carta que criou a primeira instituição continental pós-independência da África, a Organização da Unidade Africana (OUA)” [1] visando fortalecer as lutas contra a colonização europeia e o regime do Apartheid. Porém, as discussões sobre colonialismo, imperialismo e racismo foram mantidas no contexto africano. O “Dia da Libertação da África” foi instituído em 1972, pela Organização das Nações Unidas (ONU). Posteriormente, em 2002, a OUA foi substituída pela União Africana (UA) – órgão constituído pelos 55 estados do continente –, e o 25 de maio passou a ser mais intensamente celebrado como o Dia da África.

Em abril de 1955, Indonésia, Birmânia, Ceilão, Índia e Paquistão organizaram uma conferência em Bandung, na Indonésia. Participaram do evento representantes de 23 países asiáticos[2] e 6 países africanos[3]. Esses 29 países, segundo Bulau (2016), “representavam mais da metade da população mundial”. A Conferência Afro-Asiática, ou Conferência de Bandung, como também é conhecida, marcou a percepção de que as relações com as duas superpotências à época (EUA e URSS), bem como com outros países influentes do Norte Global, estavam aquém das necessidades e expectativas dos países do Sul. Era preciso, portanto, investir em relações Sul-Sul.

E além dos domínios econômico, político e social impostos pelos países do Norte, criticava-se também o racismo em todas as suas formas e consequências. Tais percepções ensejaram posteriormente a formação de um bloco alternativo àquelas superpotências, o chamado Movimento dos Não-Alinhados. Assim como Bandung, este movimento é considerado um marco acerca das relações Sul-Sul. Entretanto, havia diversas querelas existentes entre as nações participantes e isto gradativamente minou a perspectiva de solidariedade afro-asiática.

Em 2006, no período de 12 a 14 de julho, Salvador (BA) foi palco de realização da II Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora16 (CIAD) sob coordenação do Ministério das Relações Exteriores (MRE) em conjunto com o Ministério da Cultura (MinC) e a SEPPIR, em parceria com o Senegal e a União Africana. O objetivo da II CIAD foi de aprofundar os temas de interesse da África e da diáspora, como relações de gênero, educação, identidade cultural, saúde, democracia, paz, desenvolvimento, idiomas, colonialismo, religiosidade, cooperação internacional, ações afirmativas e políticas de combate ao racismo, xenofobia e outras formas de discriminação.

Na “Carta de Salvador” a II CIAD anuncia que o Renascimento Africano concretiza no século XXI uma nova era “em que todos os povos e países tenham acesso à riqueza e à cultura, em pleno respeito da dignidade, dos direitos e dos valores das crianças, mulheres, idosos e homens de todas as etnias e crenças” (Fundação Cultural Palmares, 2007, p. 91).

Uma das perspectivas africanas de investimento em desenvolvimento social, como por exemplo, ampliar as possibilidades educacionais das/os africanos tem se iniciado a partir de uma ação de cooperação entre Brasil e África. É o caso da UNILAB – Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira, criada em 2010, no Ceará, expandindo-se para a Bahia, em 2014.

Assim, com as finalidades de desenvolvimento de ensino, pesquisa e extensão universitária, a UNILAB desenvolve-se a partir da interiorização e internacionalização, e tem por missão institucional específica formar recursos humanos para contribuir com a integração entre o Brasil e os demais países membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), especialmente os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) – Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, fortalecendo a cooperação Sul-Sul. Visa, também, o tratamento de questões relativas à diversidade étnico-racial, cultural, religiosa, de gênero e de orientação sexual com o intuito de contribuir para a superação das desigualdades.

 

Brasil e suas mazelas racistas e possibilidades de superação

Com a intenção de chamar a atenção do Brasil sobre a África, duas personalidades brasileiras formularam importantes reflexões. Abdias do Nascimento já falecido, e, valoroso ativista da luta pela inclusão da população negra, no ordenamento político nacional e no acesso a direitos sociais e raciais, declarou no seu discurso de posse no Senado Federal: “a afirmação da nossa origem africana não implica nenhuma rejeição à nossa identidade nacional brasileira, pela simples razão de que a identidade nacional brasileira também é africana”. Em 2015, Celso Amorim (embaixador brasileiro, foi Ministro das Relações Exteriores e da Defesa), como palestrante na série “Conversas sobre África” do Instituto Lula, realizou um balanço sobre as relações Brasil-África, e afirmou: “damos atenção à África porque a África mora aqui”.

Estas perspectivas conduzem a reflexões sobre a fragilidade do reconhecimento dos vínculos históricos do Brasil com o continente africano e a necessidade de fortalecimento da agenda de trabalho sobre relações e cooperação Brasil – África.

Para tanto, faz-se necessário conhecer minimamente a história e a cultura dos povos africanos, e as contribuições destas para as sociedades as quais estes povos foram escravizados. Ainda, é importante constatar que após 134 anos da abolição da escravidão, mesmo com persistentes vozes clamando pela superação do racismo, devido à forma como se deu a abolição que até hoje não foi concluída, pelo fato de não ter sido encaminhada a inclusão dos ex-escravos como seres humanos livres, com direitos a participar da vida social, política, cultural e econômica no país. Dessa forma a população negra é a mais pobre entre os pobres, sendo empurrada a condição de subcidadania.

Visando incidir na superação do racismo, o Movimento Negro brasileiro, sempre esteve à frente das lutas da classe trabalhadora, mantendo ainda especificamente a ação política e organizativa da população negra, ocorrendo também (principalmente nas últimas décadas) a movimentação política das mulheres negras de maneira autônoma. Há também um posicionamento desses agentes políticos de que a luta antirracismo não deve ser tocada só pelas/os negra/os organizados, e, sim por meio de uma ação conjunta com brancos, asiáticos e indígenas, a considerar que o racismo atinge mais diretamente a população negra, mas seus resultados afetam também o conjunto da população brasileira. Nesse sentido, em aliança com os setores progressistas da sociedade têm logrado – à base de muita luta, de avanços e retrocessos – conquistas importantes nas últimas décadas.

No final dos anos 1970 e meados de 1980, com o enfrentamento a ditadura civil-militar no Brasil, diversos movimentos sociais passaram a se (re)organizar para pautar suas questões, incluindo o Movimento Negro (RIBEIRO, 2014). Com o intuito de responsabilizar o Estado brasileiro, a criar instrumentos de enfrentamento ao racismo e ao machismo, o Movimento Negro e a organização de mulheres negras, participaram ativamente da Assembleia Constituinte, em 1986, e logrou conquistas importantes por meio da Constituição Federal de 1988, como por exemplo: a criminalização do racismo; o reconhecimento e indicativos de políticas públicas para as comunidades quilombolas; e, ações afirmativas (o que resultou na aprovação em 2012 da Lei 12.711 – Cotas nas universidades públicas).

Assim, diante de diversas manifestações antirracistas e antissexistas, ao longo das últimas décadas, o Estado brasileiro reconheceu o caráter estrutural do racismo no país e passou a adotar medidas para o seu enfrentamento, mesmo que morosamente, aquém das necessidades dos grupos que vivem discriminações históricas.

Em 2001, o Movimento Negro, e, em especial, as organizações de Mulheres Negras, foram protagonistas da participação brasileira na III Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada em Durban/África do Sul (conhecida como Conferência de Durban). Na ocasião, foram estabelecidas a Declaração e o Programa de Ação de Durban, documentos que registram uma agenda inovadora e orientada para a ação da comunidade internacional. Foram momentos emblemáticos na luta das/os negras/os brasileiros/as, em conjunto com africanas/os e a diáspora.

Dois anos após a Conferência, aprovou-se no Brasil a Lei nº 10.639/2003, que incluiu no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. Esta foi complementada posteriormente pela Lei nº 11.645/2008, que incluiu a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Conforme esta lei, o estudo destas temáticas incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, da luta das/os negras/os e dos povos indígenas no Brasil, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. (BRASIL, 2008)

A existência destas leis atesta que estes conteúdos não eram abordados pela História Oficial e, por conseguinte, pela educação brasileira. Ou, quando abordados, os conteúdos eram distorcidos e desvalorizados em benefício de outros, geralmente de bases eurocêntricas.

Mais do que omitir tais conteúdos, as classes dominantes brasileiras têm se prestado historicamente a escamotear, distorcer e falsificar informações sobre os povos africanos, população negra e povos indígenas. O exemplo mais emblemático disso é o mito da democracia racial.

Segundo Petrônio Domingues, “democracia racial, a rigor, significa um sistema racial desprovido de qualquer barreira legal ou institucional para a igualdade racial, e, em certa medida, um sistema racial desprovido de qualquer manifestação de preconceito ou discriminação”. (DOMINGUES, 2005, p. 116).

O mais surpreendente, neste caso, não é nem tanto o absurdo de democracia racial como mito, mas sim a sua manutenção ao longo de décadas, a despeito de inúmeras denúncias e ações políticas por parte de acadêmicos, ativistas etc. Isto reforça nosso argumento inicial sobre a necessidade de reflexão sobre o passado e o presente, para que possamos imaginar um futuro diferente e lutar para conquistá-lo.

Matilde Ribeiro é doutora em Serviço Social, professora da UNILAB – Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira. Foi ministra da SEPPIR – Secretaria Especial de Políticas de Igualdade Racial e Secretária Adjunta da Secretaria Municipal de Igualdade Racial de São Paulo.

Thiago Barbosa é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais da UFABC – Fundação Universidade Federal do ABC.

 

Referências Bibliográficas

BRASIL. Lei Nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm. Acesso em 11 mai. 2022.

______. Lei Nº 11.645, de 10 março de 2008. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm. Acesso em 11 mai. 2022.

BULAU, Doris. 1961: Acaba a primeira Conferência dos Países Não Alinhados. Deutsche Welle. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/1961-acaba-a-primeira-confer%C3%AAncia-dos-pa%C3%ADses-n%C3%A3o-alinhados/a-319303. Acesso em 11 mai. 2022.

DOMINGUES, P. O mito da democracia racial e a mestiçagem no Brasil (1889-1930). Diálogos Latinoamericanos, [S. l.], v. 6, n. 10, p. 16, 2005. Disponível em: https://tidsskrift.dk/dialogos/article/view/113653. Acesso em: 23 mai. 2022.

DOS REIS, Raissa Brescia; RESENDE, Taciana Almeida Garrido. Bandung, 1955: ponto de encontro global. ESBOÇOS (UFSC), Florianópolis, v. 26, n. 42, p. 309-332, maio/ago. 2019. ISSN 2175-7976 DOI https://doi.org/10.5007/2175-7976.2019v26n42p309.

OLIVEIRA, José Roberto Guedes de. Dia da Libertação da África. Fundação Cultural Palmares – Governo Federal. Disponível em: https://www.palmares.gov.br/?p=3559. Acesso em 10 mai. 2022.

RIBEIRO, Matilde. Políticas de promoção da igualdade racial no Brasil (1986 – 2010) /

Matilde Ribeiro. – 1. ed. – Rio de Janeiro : Garamond, 2014. 368 p. ; 21 cm. Inclui bibliografia

ISBN 9788576173731.

_______.  Brasil e África: Desafios das Políticas de Igualdade Racial em Âmbito Nacional e Internacional. Revista Diálogos Africanos/Instituto Lula, nº 1. Jul/Ago/Set de 2015.

UNIÃO AFRICANA. About the African Union. Disponível em: https://au.int/pt/node/34613. Acesso em 10 mai. 2022.

[1] No original: “In May 1963, 32 Heads of independent African States met in Addis Ababa Ethiopia to sign the Charter creating Africa’s first post-independence continental institution, The Organisation of African Unity (OAU).”. Tradução livre.

[2] Além dos organizadores: Burma (atual Mianmar), Ceilão (atual Sri Lanka), Índia, Indonésia e Paquistão, participaram do evento: Afeganistão, Arábia Saudita, Camboja, China, Filipinas, Irã, Iraque, Japão, Jordânia, Laos, Líbano, Nepal, Síria, Tailândia, Turquia, Vietnã do Norte, Vietnã do Sul e Iêmen.

[3] Costa do Ouro (atual Gana), Egito, Etiópia, Líbia, Libéria e Sudão.