O risco de uma guerra civil não está descartada na conjuntura política atual, em plena crise de saúde pública. Enquanto o país enfrenta a sua mais grave emergência sanitária da história, que já levou à morte de mais de 23 mil brasileiros, o presidente da República dá sinais de que busca o acirramento direto. Na reunião do dia 22 de abril, quando realizou encontro com as principais autoridades do primeiro escalão do governo, incluindo todos os ministros e presidentes de bancos públicos, Bolsonaro cobrou a assinatura dos ministros da Defesa, General Fernando Azevedo, e da Justiça, Sérgio Moro, para facilitar a compra de armas e munição pela população.
“O que esses filha de uma égua quer (sic), ô [Abraham] Weintraub, é a nossa liberdade”, disse Bolsonaro, no encontro palaciano. “Olha, eu tô… como é fácil impor uma ditadura no Brasil. Como é fácil. O povo tá dentro de casa. Por isso que eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme!”, cobrou dos colaboradores próximos. Nesta terça-feira, 26, voltou a fazer a defesa das armas nas mãos da população, publicando um vídeo em seu perfil no Twitter, em que o ator Charlton Heston, enaltece o uso de armas e exibe um rifle. Bolsonaro regozijou-se: “A garantia de um povo livre”.
Assim como na reunião de abril, nenhuma autoridade tentou ao menos manter o jogo de aparências de que o presidente da República não está a pregar abertamente uma guerra civil. Não houve nenhuma nota dos Generais do Planalto ou de outros ex-colaboradores próximos. Coube ao PT, estabelecer um freio ao desejo bélico incontrolável do presidente, cuja campanha eleitoral foi baseada no rearmamento da população.
Um projeto de decreto legislativo foi apresentado pela bancada do PT para cancelar a decisão de Bolsonaro de ampliar a quantidade de munição a ser comprada por cidadãos. “O objetivo do projeto é evitar a formação de milícias com munição para iniciar uma desordem armada no Brasil, patrocinada pelo presidente da República, em meio à pandemia”, justifica Rogério Carvalho, líder do PT no Senado.
Omissão do ministro da Justiça
A política de contenção de armas – e retomada do endurecimento do Estatuto do Desarmamento – jamais foi encampada por Sérgio Moro, enquanto esteve à frente do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Defenestrado do cargo, 24 horas depois da reunião em que se manteve silente, Sérgio Moro não conseguiu explicar até agora porque cedeu ao desejo do presidente de ampliar o volume de armas e munição na mão de milícias.
Na entrevista concedida no domingo, no programa ‘Fantástico’, Moro titubeou ao ser cobrado pela jornalista Poliana Abritta, sobre seu silêncio na reunião ministerial. Disse que não tinha como deixar de atender à ordem de Bolsonaro. “Eu não queria também que isso fosse utilizado como um subterfúgio para desviar a questão da Polícia Federal, da interferência na Polícia Federal”, disse, candidamente, o ex-juiz federal.
Moro passou as quase duas horas da reunião praticamente calado, sob a pressão do presidente, a quem aceitou servir em 2018, antes mesmo de encerrado o 2º turno das eleições presidenciais, como confessou o vice Hamilton Mourão. “Veio um pedido do presidente. E eu entendi, naquele momento, que não tinha condições de me opor a isso porque já existia essa querela envolvendo a Polícia Federal”, respondeu o ministro.
Moro deve explicações
A ‘querela da Polícia Federal’, alvo da disputa entre o presidente e o ministro, com Bolsonaro levando a melhor e promovendo a mudança no comando da instituição, demitindo o delegado Maurício Valeixo dois dias depois da reunião ministerial, custou ao ministro da Justiça o cargo. Ele atacou Bolsonaro em seguida, mas deve muitas explicações e é investigado e suspeito dos crimes de prevaricação e peculato no episódio da sua ida para o governo.
Na reunião ministerial, Moro ouviu calado aos disparates dos colegas da Esplanada – Damares Alves defendeu a prisão de governadores; Abraham Weintraub, a detenção de ministros do Supremo Tribunal Federal; e Ricardo Salles defendeu que era hora de aproveitar as atenções da mídia voltados para o Covid-19 para mudar a legislação ambiental e outras normas, ludibriando a opinião pública. “Vamos passar de boiada”, disse.
No ‘Fantástico’, o ex-juiz, outrora falante e cheio de moral, que condenou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva num processo cheio de ilegalidade, controverso e que ainda está sujeito à revisão pelo STF, se limita a dizer que não estava confortável no encontro. “Me senti incomodado por várias aspectos”, disse. Nenhuma palavra dele condenando as falas do presidente e dos ministros com quem atuou de maneira dedicada durante 16 meses. Moro deve temer agora o banco dos réus, já que pode ser acusado de abuso de autoridade, no recurso movido por Lula.
No encontro, Moro não pareceu contrariado, mesmo diante do comportamento autoritário do presidente. Todos os ministros não parecem intimidados pelo tom mandonista de Bolsonaro, que atua como um caricato chefete militar, de um romance popular de República de bananas, escrito por Vargas Llosa ou Gabriel García Marquez. A afronta do presidente às instituições democráticas está patente, porque ele simplesmente se recusa a reconhecer o direito da divergência política ou ideológica.
‘Quero todo mundo armado’
Segundo Bolsonaro, só com armas na mão será possível às pessoas resistirem às ordens de autoridades como prefeitos e governadores, que contrariem a visão do Palácio do Planalto. “Eu peço ao Fernando [Azevedo] e ao [Sérgio] Moro que, por favor, assine (sic) essa portaria hoje que eu quero dar um puta de um recado pra esses bosta (sic)! Por que que eu tô armando o povo? Porque eu não quero uma ditadura! E não da pra segurar mais! Não é? Não dá pra segurar mais”, diz o presidente, em tom apoplético e exagerado.
O transtorno do rosto presidencial só encontra o silêncio dos ministros, inclusive dos dois generais que estavam ao seu lado naquele momento: Braga Neto e Mourão. “[Vamos] é escancarar a questão do armamento aqui. Eu quero todo mundo armado!”, diz Bolsonaro, elevando o tom de voz.
“O que esses caras fizeram com o vírus, esse bosta desse governador de São Paulo [João Dória], esse estrume do Rio de Janeiro [Wilson Witzel], entre outros, é exatamente isso”, reclama o presidente. “Aproveitaram o vírus, tá um bosta de um prefeito lá de Manaus [Arthur Virgílio Neto, do PSDB] agora, abrindo covas coletivas. Um bosta”.
Em 22 de abril, o Brasil tinha pouco mais de 2,9 mil mortos em decorrência do Covid-19 e registrava mais de 46 mil casos de pessoas contaminadas. Neste final de semana, 30 dias depois de Bolsonaro liderar a reunião ministerial em que se discutiu sobre tudo, menos sobre o avanço da doença, os óbitos alcançavam 23 mil pessoas e a doença já havia infectado 374 mil brasileiros.
Durante sua carreira como deputado federal, Bolsonaro defendeu a tortura em inúmeras ocasiões, defendeu o fuzilamento de Fernando Henrique Cardoso, lamentou o fato de que a ditadura militar no Brasil tenha matado pouco nos 25 anos em que ficou instalada. Disse que fecharia o Congresso e afirmou que seria necessário ter dado fim à vida de pelo menos 30 mil brasileiros. A marca deve ser atingida pelo ex-capitão na próxima semana.