O indisfarçável desprezo de Bolsonaro pela vida

Presidente rebate com ironia e sarcasmo perguntas sobre perdas humanas para a Covid-19. Especialista em gestão de saúde pública diz que Bolsonaro faz parte de um grupo de líderes políticos “sem capacidade de gestão nem estatura de estadistas”

Michel Dantas

Entre as tantas vísceras expostas na reunião ministerial de 22 de abril, tornada pública pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na sexta (23), o descaso pela vida humana e pelo sofrimento de milhões de brasileiros e brasileiras – seja porque foram acometidos pela Covid-19, seja porque perderam entes queridos para a doença – é um dos pontos mais reveladores da iniquidade do desgoverno de Jair Bolsonaro e seus ministros-cúmplices.

Segundo a ‘BBC News Brasil’, em 155 minutos do encontro, agendado para deliberações sobre a pandemia do coronavírus, apenas por 19 minutos foi mencionado o tema. Bolsonaro fala especificamente sobre a pandemia em quatro ocasiões. Sempre para reclamar: da paralisação da economia, de governadores e prefeitos que adotam medidas de contenção social, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e da proposta de soltura de presos para se evitar a propagação do vírus nas cadeias.

O presidente também atacou o então diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal (PRF) Adriano Marcos Furtado, por ter lamentado em nota oficial a morte de um patrulheiro por Covid-19. Um mês depois, Adriano foi exonerado do cargo. Finalmente, Bolsonaro ameaçou convidar ministros para passear por Ceilândia e Taguatinga, nos arredores de Brasília, em ações destinadas a afrontar o isolamento social.

Diante dos hospitais e das vítimas da Covid-19, Bolsonaro Bolsonaro não economizou tempo para viajar a Porto Alegre, em 30 de abril, quando acenou a apoiadores antes de cerimônia militar e tentou apertar as mãos do comandante do Exército, general Edson Leal Pujol, que lhe ofereceu o cotovelo. Foto: Clauber Cleber Caetano.

Outro levantamento, do Portal ‘Uol’, analisou o período entre 13 de março — quando o Ministério da Saúde passou a recomendar que aglomerações fossem evitadas — e 13 de maio. A conclusão foi que, ao longo de dois meses, Bolsonaro ignorou as recomendações médicas e causou aglomerações em mais de 60 aparições públicas.

Em média, houve uma aglomeração por dia na rotina de Bolsonaro, em Brasília ou em passeios por outras cidades. A lista considerou duas situações específicas: contato direto com apoiadores e aparições públicas ao lado de vários ministros e/ou funcionários.

O brasileiro tem que ser estudado. Ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali, ele sai, mergulha e não acontece nada com ele

Jair Bolsonaro

Quando o Ministério da Saúde divulgou um texto com uma série de dicas à população para evitar aglomerações, inclusive “em supermercados e farmácias”, por exemplo, ele causou a concentração de pessoas nos dois tipos de estabelecimento.

Entre as provocações constam atos como passear pelas ruas e por supermercados em 29 de março, comer pão doce em uma padaria em 9 de abril e distribuir abraços a apoiadores em 2 de maio.

De ao menos 62 aglomerações causadas por Bolsonaro no período, 39 ocorreram no chamado “cercadinho” do Palácio da Alvorada, no lado de fora da residência oficial, onde os apoiadores o esperam para conversar e tirar fotos. Ali, ele já cumprimentou, conversou, fez orações e interagiu com idosos, sem qualquer proteção.

Em 15 de março, quando seus apoiadores promoveram um ato contra a democracia em frente ao Quartel General do Exército, em Brasília, Bolsonaro discursou do alto de um carro de som, dizendo que não viveria “preso dentro do Alvorada”.

Em 11 de maio, apareceu na área externa do Palácio da Alvorada usando máscara, para conversar com apoiadores. Parecia uma mudança de postura, mas durou pouco tempo: no dia seguinte, Bolsonaro esteve em uma aglomeração com crianças, pegou uma garotinha no colo e quase que imediatamente passou a mão no rosto dela.

“Se ele fizesse isso a portas fechadas, seria uma coisa. Mas a questão é o exemplo, que é contrário a tudo o que está sendo proposto. Isso tem um impacto imenso no não cumprimento das medidas de isolamento”, disse ao ‘Uol’ o epidemiologista Paulo Lotufo, diretor do Centro de Pesquisa Clínica e Epidemiológica da USP (Universidade de São Paulo). “O dano que ele está causando é imenso, é total, porque se cria uma dualidade na cabeça de quem está vendo”, lamentou.

“O dano que ele está causando é imenso, é total, porque se cria uma dualidade na cabeça de quem está vendo”, lamenta o epidemiologista Paulo Lotufo, diretor do Centro de Pesquisa Clínica e Epidemiológica da USP (Universidade de São Paulo). Foto: Reprodução.

Ironia e sarcasmo

Embora algumas vezes lamente as mortes de forma protocolar, Bolsonaro geralmente faz declarações irônicas quando questionado sobre as perdas humanas com a Covid-19. Antes mesmo do primeiro óbito, havia dito que “outras gripes mataram mais que essa”.

Em 17 de março, quando o Brasil registrou a primeira morte por Covid-19 – um homem de 62 anos de idade em São Paulo – Bolsonaro afirmou: “A vida continua, não tem que ter histeria”.

Em 20 de março, quando o coronavírus já tinha matado 11 pessoas no país, ele declarou: “Depois da facada, não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar não”. Foi assim também em 24 de março, quando o país registrava 34 mortes: “Raros são os casos fatais, de pessoas sãs, com menos de 40 anos de idade”.

Quando 46 vidas foram ceifadas, dois dias depois, ele soltou: “O brasileiro tem que ser estudado. Ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali, ele sai, mergulha e não acontece nada com ele”.

Em 20 de abril, quando o país registrava mais de 2,5 mil mortos, Bolsonaro soltou: “Ô, cara. Quem fala de (mortes)… eu não sou coveiro, tá?”. Em 28 de abril, quando o número de mortos ultrapassou os cinco mil, outro tapa na cara da Nação: “E daí? Lamento. Quer que eu faço o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”.

O estafe do Palácio do Planalto avalia que falta ação presencial do presidente pelo país e o aconselhou a visitar um hospital. Bolsonaro, que em 2 de abril disse a pastores evangélicos, na portaria do Palácio da Alvorada, desconhecer “qualquer hospital que esteja lotado”, e que a crise do coronavírus “não é isso tudo que estão pintando”, visita com regularidade apenas o Hospital das Forças Armadas (HFA), para cuidar de si. A única exceção apenas confirmou a regra de seu descaso pela segurança das pessoas.

Foi em 11 de abril, quando esteve em Águas Lindas de Goiás (GO) ao lado do governador de Goiás, Ronaldo Caiado, visitando as obras de um hospital de campanha – e como sempre, afrontando as orientações sanitárias. Autoridades e convidados se aglomeraram na chegada ao canteiro de obras e, do lado de fora, dezenas de pessoas se amontoaram próximo ao terreno. Depois da visita, à qual a imprensa não teve acesso, Bolsonaro seguiu até outros focos de aglomeração e retirou a máscara enquanto cumprimentava os simpatizantes.

O então ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, já em rota de colisão com o presidente, acompanhou de longe as aglomerações e o criticou. “Posso recomendar, não posso viver a vida das pessoas. Pessoas que fazem uma atitude dessas hoje daqui a pouco vão ser as mesmas que vão estar lamentando”, afirmou.

Nesta segunda (25), o governo federal finalmente entregou ao governo de Goiás a gestão do hospital de campanha, mas com as instalações desequipadas. “Hoje, o governo federal nos entrega 200 leitos em Águas Lindas, mas sem respirador, sem monitor e sem cama de UTI. Está nos entregando somente com rede oxigênio”, revelou Caiado.

Bolsonaro também viajou a Porto Alegre, em 30 de abril, quando acenou a apoiadores antes de cerimônia militar e tentou apertar as mãos do comandante do Exército, general Edson Leal Pujol, que lhe ofereceu o cotovelo. Em 2 de maio, abraçou e cumprimentou apoiadores em um posto de gasolina a caminho de Cristalina (GO), onde abraçou e cumprimentou apoiadores na 3ª Brigada de Infantaria Motorizada.

Presidente sem lideranças

Bolsonaro faz parte de um “seleto” grupo de lideranças políticas que Michaela Kerrissey, especialista em gestão de saúde pública da Universidade Harvard, descreveu ao jornal ‘El País como’ “sem capacidade de gestão nem estatura de estadistas”.

“Nos últimos cinco anos, assistimos a uma proliferação de líderes de competência muito duvidosa que foram escolhidos pelo radicalismo de suas pautas ideológicas e de seus estilos de comunicação”, comenta a cientista, elencando nomes como o indiano Narendra Modi, o filipino Rodrigo Duterte, o nicaraguense Daniel Ortega e Bolsonaro, mas também “com matizes” ao norte-americano Donald Trump, ao britânico Boris Johnson e ao mexicano Andrés Manuel López Obrador. Para ela, são os representantes de um retorno a “modelos de liderança caduca” como o do “homem providencial”.

O jornalista David Robson, autor do tratado de gestão estratégica ‘The Mind Trap’ (A armadilha mental), diz nessa hora da verdade a pandemia do coronavírus fez “milhões de cidadãos de todo o mundo constatarem com horror que tinham entregado aos loucos a chave do manicômio”.

Arjen Boin, cientista político da Universidade de Leiden (Países Baixos) e autor de ‘The Politics of Crisis Management’ (“As políticas de gestão de crise”), diz que não se pode “edulcorar a verdade” nem optar por uma linha de comunicação ambígua, que gere dúvidas entre a população e dificulte a criação de consensos.

Presidente da Argentina, Alberto Fernández, visitando empresa que produz as máscaras N95 para proteger os médicos e os enfermeiros que atende as vítimas da Covid-19. Foto: Esteban Collazo.

 

“Uma liderança eficaz em condições extremas consiste tanto em agir corretamente no terreno como em desenvolver uma narrativa convincente que seja assumida pelo conjunto da população e permita tomar decisões difíceis e adotar medidas traumáticas sem que gerem uma resistência excessiva”, ensina o cientista, para quem esse relato deve ser, além de coerente, “honesto”.

A outra receita de Boin consiste em “envolver a população dizendo o que se espera dela e como ela pode contribuir de maneira eficaz para a superação da crise”. Neste aspecto, segundo o jornalista David Robson, poucos líderes são tão modelares como a primeira-ministra neozelandesa, Jacinda Ardern.

Para a cientista política Michaela Kerrissey, Ardern construiu uma narrativa sólida sem cair em nenhum dos dois relatos extremos que essa crise gerou, “nem no excesso de otimismo dos que afirmavam sem nenhum fundamento que a epidemia não chegaria aos seus países, nem no discurso de um belicismo desfocado dos que insistem em que esta pandemia é uma guerra e precisa ser encarada como tal”.

Em geral, os dirigentes e estadistas que nesta crise deram exemplos de boa gestão e de liderança moderna e eficaz são mulheres, caso da já mencionada Jacinda Ardern, da norueguesa Erna Solberg, da taiwanesa Tsai Ing-wen, da islandesa Katrín Jakobsdóttir, da dinamarquesa Helle Thorning-Schmidt e da alemã Angela Merkel, uma veterana que parece estar dando o melhor de si mesmo nas piores circunstâncias, e a quem seus compatriotas já se referem como “a chanceler cientista”.

A imprensa internacional também tem destacado positivamente exemplos de liderança masculina como a do português António Costa, o grego Kyriakos Mitsotakis e o sul-coreano Moon Jae-in. Também o argentino Alberto Fernández é reconhecido no país por sua atuação. Mas, como sugere David Robson, que sejam sobretudo mulheres as que estão se destacando por sua eficácia e capacidade de gerar amplos consensos “não pode ser uma simples casualidade”, num mundo esmagadoramente regido por homens.

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