Após o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 (Vigissan) revelar em junho que 33,1 milhões de pessoas passam fome no país, o detalhamento por Unidades da Federação (UF) aponta como a insegurança alimentar se disseminou durante o desgoverno Bolsonaro. Enquanto estados do Norte e Nordeste apresentam maior percentual de pessoas na situação – principalmente em lares com crianças – os do Sudeste, mais populosos, apresentam os maiores números absolutos.
O levantamento foi divulgado nesta quarta-feira (14) pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan). “Trata-se de uma conquista que aprimora o monitoramento da Insegurança Alimentar (IA) no país, em um momento em que a situação se agrava de modo assombroso e quando faltam dados oficiais capazes de nortear as mobilizações e tomadas de decisão”, afirmam os integrantes da Coordenação Executiva da entidade na apresentação do estudo.
“Vimos como o negacionismo científico, o negligenciamento das políticas públicas e a falta de ação coordenada da União com estados e municípios ampliaram a relevância das iniciativas de âmbito estadual”, prossegue o texto. Apesar das desigualdades regionais, “as elevadas desigualdades sociais e os fatores de vulnerabilidade social que marcam a sociedade brasileira são encontrados em todas as UF”, aponta o documento.
Embora Jair Bolsonaro se esforce para negar a realidade, o relatório revela que pelo menos um quinto dos lares passa fome em dez das 27 UF. Em números absolutos, o maior contingente de pessoas com fome está no Sudeste. São Paulo tem 6,8 milhões de pessoas (14,6% dos habitantes), enquanto o Rio de Janeiro tem 2,7 milhões (15,9%). Pará (2,6 milhões, ou 30%) e Ceará (2,4 milhões, ou 26,3%) vêm em seguida.
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Nas regiões Norte e Nordeste ficam todos os estados em que mais de 20% das residências sofrem de insegurança alimentar grave. Alagoas lidera a lista, com 36,7% das casas com privação no consumo de alimentos.
Os dados nacionais mostram que quase 60% (58,7%) da população brasileira convive com a insegurança alimentar em algum grau – leve, moderado ou grave (fome). Em números absolutos, são 125,2 milhões de brasileiros. Na análise por estados, em oito das 27 UFs mais de 70% da população convive com insegurança alimentar.
“Os resultados refletem as desigualdades regionais registradas no relatório do II Vigisan, e evidenciam diferenças substanciais entre os estados de cada macrorregião do país”, aponta Renato Maluf, coordenador da Rede Penssan. “Não são espaços homogêneos do ponto de vista das condições de vida. Há diferenças socioeconômicas nas regiões que pedem políticas públicas direcionadas para cada estado que as compõem.”
Crianças, precarizados, desempregados e endividados são maiores vítimas
Nacionalmente, os dados mostram que, em pouco mais de um ano, a fome praticamente dobrou entre famílias com crianças menores de 10 anos, passando de 9,4% em 2020 para 18,1% em 2022. Mas Norte e Nordeste também “têm uma gravidade maior no acesso à alimentação”, nas palavras de Rosana Salles, pesquisadora da Rede Penssan. No Norte, 51,9% dos domicílios com ao menos uma criança menor de 10 anos tem nível moderado ou grave de insegurança alimentar, e no Nordeste o percentual é de 49,4%.
Embora outras regiões tenham percentuais mais baixos — 37,3% no Centro-Oeste, 32,6% no Sudeste e 25% no Sul —a situação também é considerada preocupante em vários de seus estados. “É um cenário esperado encontrar as formas mais severas de insegurança alimentar em famílias que têm pelo menos um menor de idade. É muito comum isso, não só no Brasil, mas em pesquisas internacionais”, explica a professora do Instituto de Nutrição da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) à BBC Brasil.
“Quando você tem famílias só de adultos, é como se a gente tivesse mais arranjos: reduzindo a quantidade de comida, deixando para comer no trabalho… A preocupação existe, mas há sempre uma reorganização”, ressalta Salles. “Quando há crianças, o filho é sempre protegido nessa distribuição de alimentos. Se tem que restringir a quantidade de comida, é a criança quem come mais, e os adultos reduzem sua quantidade.”
Outro dado do relatório desvela como a degradação do mercado de trabalho, a partir da “reforma” de Michel Temer e dos ataques às leis trabalhistas por Jair Bolsonaro e seu ministro-banqueiro Paulo Guedes, influenciaram a evolução da insegurança alimentar. A fome é ameaça em 44,7% dos lares onde o responsável é um trabalhador informal ou desempregado. Nos lares onde o trabalho é formal, o percentual cai a 16,7%.
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No geral, famílias mais vulneráveis são as com renda inferior a meio salário mínimo por pessoa, cujos chefes, com baixa escolaridade, estão desempregados ou trabalhando precariamente. Mas o endividamento galopante nesta última quadra do desgoverno Bolsonaro também é apontado pelos pesquisadores como fator de vulnerabilidade, com efeitos diretos na capacidade de acesso aos alimentos, quantitativa e qualitativamente.
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“Em diferentes regiões do Brasil foi observado que a prevalência de insegurança alimentar grave era mais alta entre famílias que se endividaram no período da pandemia da Covid-19 e como consequência dela”, afirmam os pesquisadores no relatório.
“Em todas as macrorregiões há, também, aumento expressivo de IA leve, o que demonstra que o endividamento gera instabilidade, levando muitas famílias em situação de segurança a perderem esta condição e entrarem em um processo de incertezas e a uma redução da qualidade da alimentação”, prossegue o texto.
Auxílio Brasil é insuficiente, mal planejado e mal executado
“Mesmo as famílias que recebem o Auxílio Brasil, por estarem endividadas, não conseguem utilizá-lo somente para a compra de alimentos”, ressalta Ana Maria Segall, pesquisadora da Rede e da Fiocruz. “Há endividamento com coisas básicas, com vizinho, com parente, contas de água, gás, luz, aluguel, as dificuldades para pagar o transporte para o trabalho. O alimento acaba sendo a segunda, terceira ou quarta prioridade.”
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Os pesquisadores também afirmam que a luta contra a fome não deve se reduzir ao Auxílio Brasil. “É preciso valorizar o salário mínimo, voltar com o programa de apoio à agricultura familiar, extensão do acesso à água no semiárido. Retomar ações mais específicas, voltadas para a população mais vulnerável”, defende Renato Maluf, um dos gerentes da Rede.
“Nos últimos anos, vimos a redução de políticas sociais de combate à fome, a redução do poder de compra do salário mínimo, o aumento do preço dos alimentos. As famílias nas regiões Norte e Nordeste são as mais afetadas por tudo isso”, arremata Rosana Salles. Para ela, o objetivo do país deve ser voltar ao percentual de apenas 3,2% dos domicílios em situação de insegurança alimentar grave constatado em 2013 pelo IBGE.
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Lula: “É possível acabar com a fome. Já fizemos uma vez e faremos de novo”
Francisco Menezes, consultor de políticas públicas da Actionaid, chama a atenção para a redução significativa da verba federal para merenda escolar. “Quando o Brasil saiu do mapa da fome, a alimentação escolar teve papel importante. A alimentação na escola vai piorando, com a substituição de alimentos de melhor qualidade nutricional para ultraprocessados, mais baratos”, aponta.
Os recursos estão congelados desde 2017, embora a inflação dos alimentos tenha ultrapassando 43% desde o início da pandemia, em 2020. Em meados do mês passado, Jair Bolsonaro vetou o reajuste de 34% (inflação acumulada desde 2017) nos recursos repassados para merenda escolar, incluído pelo Congresso no Orçamento.
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No último dia 6, foi iniciada uma mobilização organizada pelo Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) para derrubar a medida de Bolsonaro. A campanha, com o mote ‘Derruba veto, reajusta Pnae’, pede que o presidente do Congresso, senador Rodrigo Pacheco (PSD), convoque a sessão que pode restabelecer o texto aprovado pelos parlamentares na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO).
Em suas aparições públicas, Luiz Inácio Lula da Silva tem ressaltado que o combate à fome voltará a ser prioridade do Governo Federal, caso ele seja eleito. “É possível acabar com a fome. Já fizemos uma vez e faremos de novo”, afirmou em entrevista coletiva em 19 de agosto. “Quando todas as pessoas estiverem participando do processo dinâmico da economia, a gente vai acabar com o desemprego, a gente vai diminuir a fome e a gente vai permitir que as pessoas voltem a tomar café, almoçar e jantar”, finalizou.
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Em conversa com comunicadores, nesta terça-feira (13), Lula voltou a falar do assunto. “As pessoas têm o direito de comer, de trabalhar, de morar, de ir e vir. É isso que nós precisamos garantir”, disse ele, adiantando que, além de reconstruir a economia, é preciso reconstruir a possibilidade de as famílias brasileiras viverem felizes e em paz.
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Baixe o relatório na íntegra aqui.
Da Redação, com informações de agências