A Câmara dos Deputados salvou Michel Temer da abertura de um processo por corrupção passiva no Supremo Tribunal Federal (STF), mas as consequências da decisão terão impacto duradouro no funcionamento das instituições.
Em busca de votos favoráveis ao presidente, emissários do governo trabalharam até o início da votação, na quarta-feira 2. Com a negociação de emendas parlamentares até os últimos minutos, dentro do plenário da Câmara, o Planalto conseguiu a quantidade de votos necessários para arquivar a denúncia apresentada contra Temer pela Procuradoria-Geral da República (PGR).
“Com a possibilidade de que novas denúncias apareçam, a barganha e a chantagem dos deputados em relação àquele que lidera o Executivo chegou a níveis tão altos que o semiparlamentarismo acaba se configurando. É um semiparlamentarismo da chantagem explícita”, afirma Wagner Romão, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de Campinas (Unicamp) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Participação, Movimentos Sociais e Ação Coletiva (Nepac).
O cientista político afirma, ainda, que Temer deve ter dificuldades para levar adiante a reforma da Previdência e diz que o governo, agora, é um “governo zumbi”. “A base não está mais tão coesa, e os grupos políticos estarão cada vez mais focados na disputa de 2018.”
O que representa o resultado da votação sobre a denúncia contra Michel Temer na Câmara dos Deputados?
Wagner Romão: Era um resultado aguardado, mas surpreendeu a quantidade de votos “não” [não ao relatório, sim à denúncia]. Isso se deve a alguns fatores, por exemplo, ao fato de que o voto a favor de Temer é um voto impopular, que representa risco aos parlamentares que querem se reeleger.
Aqueles que votaram a favor de Temer sentiram a necessidade de justificar o voto, seja pelo compromisso com as reformas ou com a estabilidade econômica. Então eu acho que há um cálculo político, alguns membros da base do governo votaram de forma a satisfazer suas bases eleitorais.
Também houve um movimento expressivo de alguns agrupamentos de partidos, dentro da base, para o não comprometimento público com o governo. Isso aconteceu principalmente com o PSDB de São Paulo, com uma parte expressiva do PSB, e também com o PSD. Esse voto contrário ao relatório do PSDB paulista expressa uma posição política muito clara, que vem sendo a posição do governador Geraldo Alckmin de se diferenciar do governo e pavimentar a sua própria candidatura à Presidência em 2018.
Essas rupturas podem afetar a tramitação da reforma da Previdência, a nova prioridade do governo Temer?
WR: Se houver alguma possibilidade de votação, digamos que será uma reforma bastante desidratada. O fato de o governo não ter tido uma vitória expressiva mostra que acabou a lua-de-mel entre Temer e a base que votou pelo impeachment de Dilma [Rousseff]. É claro que o governo continua com uma base expressiva, mas eu acho que enfrentará muita dificuldade para conseguir três quintos de votos, que é o necessário para aprovar reformas constitucionais.
A base não é mais aquela de 350, 400 deputados. Aquilo que poderia ser modificado em um governo de transição como é o governo Temer já foi modificado. O grande estrago já foi feito com a aprovação da lei da terceirização, com a reforma trabalhista e com a PEC do teto de gastos, o que já é muita coisa.
Talvez essa votação seja um marco, um divisor entre o momento em que se fez a implementação dessa agenda mais radical, mais claramente neoliberal, e o atual, no qual o governo Temer entra em um momento zumbi. É um governo zumbi que vai ter muito menos chance de aprovar medidas radicais, medidas que alterem a Constituição. A base não está mais tão coesa, e os grupos políticos estarão cada vez mais focados na disputa de 2018.
Que leitura o senhor faz a respeito dos últimos movimentos do presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, em relação a Michel Temer?
WR: À exceção do episódio sobre os dissidentes do PSB, o Rodrigo Maia se comportou de maneira muito leal ao PMDB e, em especial, ao Michel Temer. Eu tenho a impressão de que o Maia terá uma importância relativamente grande no debate político de 2018, algo que não estava posto há alguns meses.
O PMDB sempre se situou entre o PSDB e o PT, mas parece que o momento atual é bastante especial na vida do partido, que desde [José] Sarney não encabeça um governo. O momento agora é de fragmentação partidária. O PSDB está rachado.
Eu acho, portanto, que este é o momento mais propício dos últimos 20 ou 30 anos para o PMDB lançar uma candidatura à Presidência. O grande problema seria encontrar um candidato. Talvez seja o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, que tem grande simpatia dos chamados mercados e não está, pelo menos por enquanto, envolvido em nenhuma investigação da Polícia Federal.
Se esse quadro se coloca, parece provável que o PMDB possa encabeçar esse centro conservador que foi se formando no Brasil nos últimos anos e que tem muita força dentro do Congresso Nacional. Então não tenho dificuldades em imaginar uma chapa PMDB-DEM, com o Rodrigo Maia. Não creio que ele encabeçaria a chapa, mas acredito que ele teria uma posição de destaque nessa configuração. O DEM votou muito fechado com o Temer, e, na condução dos trabalhos, o Maia procurou não dar margem a qualquer interpretação sobre uma traição.
Independentemente do racha interno explicitado na votação, como o senhor avalia a relação entre o Executivo e o Legislativo neste governo?
WR: O governo Temer é o que tem a melhor relação possível com o Legislativo, tanto pela trajetória do Michel como pelo fato de que o Executivo está absolutamente nas mãos do Legislativo. A possibilidade de que o governo fosse bombardeado por denúncias da PGR impõe a necessidade de uma relação muito próxima com o Legislativo, visto que é especialmente a Câmara dos Deputados que decide pela aceitação ou não dessas denúncias.
É quase como se fossem a mesma coisa. É como se fosse, como alguns têm dito, um semiparlamentarismo.
O senhor concorda com essa definição?
WR: Com a possibilidade de que novas denúncias apareçam, a barganha e a chantagem dos deputados em relação àquele que lidera o Executivo chegou a níveis tão altos que o semiparlamentarismo acaba se configurando. É um semiparlamentarismo de chantagem explícita. Então acho que sim, é possível dizer isso.
O que explica a inércia da sociedade, que não vai às ruas contra o governo, e a dificuldade do campo progressista de se unir em um discurso?
WR: Mesmo que as pesquisas expressem a baixa popularidade do Temer, parece que há um sentimento de que alguma coisa precisa ser feita para tirar o País dessa situação de crise econômica. Mas as pessoas não sabem muito bem o que deve ser feito.
No campo de quem fez manifestações pelo impeachment da Dilma, há grupos que aprovam o que o Temer tem feito. São grupos mais claramente neoliberais, que fizeram o queriam ter feito: tiraram o PT do poder e fortaleceram uma agenda de reformas neoliberais. Então não há motivo para que esses grupos voltem a ocupar as ruas.
Por outro lado, há uma resistência considerável com relação às reformas, especialmente a trabalhista e a previdenciária, e isso se expressou muito fortemente na greve geral do dia 28 de abril. Foi a última grande manifestação contra o governo.
Eu entendo que, mesmo rechaçando as reformas, uma parte das pessoas não está disposta a ir às ruas para se colocar frontalmente contra o governo.
E por que não estão?
WR: Porque não são pessoas que estão organizadas. E também porque não confiam nas alternativas colocadas à queda do Temer. Do lado da direita, uma parte entende que a queda do Temer pode ensejar a volta do ex-presidente Lula. E, por uma aversão à figura do Lula e ao PT, não querem se arriscar a ir às ruas para derrubar o Temer.
Aqueles mais à esquerda entendem que a queda do Temer não traria, necessariamente, a possibilidade de eleições diretas e que esse aparato institucional, que está cada vez mais distante da sociedade, colocaria uma figura como o Rodrigo Maia à frente da Presidência da República.
Assim como o Congresso vai mirar 2018 e se posicionar em relação às medidas do governo Temer a partir dessa expectativa, os grupos e as pessoas que foram às ruas também estão pensando mais em 2018. Estão pensando mais em como se posicionar para 2018 do que como devem se posicionar agora.
Da CartaCapital