Vânia Maria Cury: A questão dos impostos e a sonegação fiscal
Há anos, aqui no Brasil, temos visto uma campanha sistemática contra o volume de arrecadação de impostos recolhidos pelos governos em seus três níveis principais: municipal, estadual e federal. Com…
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Há anos, aqui no Brasil, temos visto uma campanha sistemática contra o volume de arrecadação de impostos recolhidos pelos governos em seus três níveis principais: municipal, estadual e federal. Com farta repercussão na mídia, em geral, essa campanha acabou, pouco a pouco, disseminando uma ideia muito perigosa: a de que os tributos pagos pelos contribuintes não revertem em benefícios correspondentes e são, portanto, injustos, ilegítimos e excessivos. A Associação Comercial de São Paulo instalou inclusive um painel eletrônico, num dos locais mais conhecidos da cidade de São Paulo, que atualiza a todo momento o valor dos milhões, bilhões e trilhões de reais que vão sendo pagos em impostos por todos os brasileiros. Sem especificações, sem explicações, sem comparações (com outros países, com outras épocas de nossa história, por exemplo), esses números ficam lá sendo exibidos como uma fonte permanente de “reclamação” quanto à mão pesada dos governos sobre as rendas e receitas dos contribuintes.
“Paga-se muito”, é a mensagem daquele que ficou conhecido como o “impostômetro”. Em contrapartida, um grupo de auditores fiscais da Receita Federal (o órgão encarregado de recolher os tributos devidos à União) criou também um painel eletrônico em Brasília, onde são atualizados os números da sonegação de impostos que grassa no Brasil. Segundo as estimativas desse que foi apelidado de “sonegômetro”, só nos primeiros cinco meses de 2015, o volume de sonegações já havia alcançado os surpreendentes 200 bilhões de reais. É muito dinheiro. Vários escândalos têm ganhado os noticiários, envolvendo a sonegação de impostos, a evasão de divisas, a remessa ilegal de dinheiro para o exterior. Recentemente, ficamos sabendo que quase 8 mil brasileiros possuem e/ou possuíram contas correntes no banco HSBC da Suíça, sem que se tenha certeza de que esse dinheiro depositado no exterior tenha chegado lá de forma legal e devidamente declarado às autoridades fazendárias do Brasil.
Tudo está sendo investigado, é o que dizem os responsáveis pela fiscalização. Veremos. Por outro lado, descobrimos também há pouco tempo que o setor encarregado de fiscalizar a aplicação de multas tributárias a grandes devedores da Receita Federal não anda fazendo o seu trabalho com a lisura devida, encontrando-se sob suspeita de aceitar propinas para suspender ou reduzir as cobranças. Ou seja, grandes volumes de dinheiro que deveriam estar sendo recolhidos aos cofres públicos (estima-se que cheguem a 19 bilhões de reais, neste caso específico das multas sonegadas) têm sido sistematicamente subtraídos por meio de expedientes ilícitos. Não custa lembrar que o pagamento de impostos é parte fundamental do contrato social. A origem dos Estados modernos está diretamente vinculada à criação de um conjunto de instituições – políticas, administrativas, fazendárias, legislativas, judiciárias e muitas outras – que precisam ser mantidas e expandidas para garantir o pleno funcionamento de uma formação social.
As comunidades humanas, nas suas mais variadas formas, criam os seus arcabouços institucionais a fim de assegurar a continuidade de suas organizações sociais. Não é uma tarefa simples, e demanda recursos. Sem um arcabouço institucional minimamente articulado, prevalece a “lei do mais forte”. Com isso, em lugar de uma organização social qualquer (por mais imperfeita que seja), tem-se a barbárie. A história mostra que sempre é possível aperfeiçoar e melhorar as instituições, e foi o que aconteceu com a passagem do Estado absolutista para o Estado liberal-democrático atual, com a sua tradicional divisão de poderes (executivo, legislativo, judiciário). Uma democracia representativa e participativa ainda é a melhor forma de organização social de que dispomos, para enfrentar os grandes desafios da emancipação humana. Até que se criem outras, mais eficazes e mais factíveis, devemos lutar para preservá-la.
E a preservação de uma sociedade democrática representativa e participativa passa, necessariamente, obrigatoriamente, pelo reconhecimento de que todos têm responsabilidades em relação à sua continuidade, e devem votar e pagar seus impostos com a regularidade definida em lei. Eventuais questionamentos podem ser encaminhados pelos canais competentes: se eles não são ágeis nem eficientes, é preciso reformá-los, aprimorá-los. O que não se deve aceitar é essa postura abertamente delinquente de admitir que a “sonegação é justa” porque os impostos, na opinião de alguns (ou de muitos), não revertem nos benefícios esperados e/ou desejados. Esta não é uma solução, evidentemente. É apenas uma forma de descumprimento das regras do contrato social, altamente lesiva ao conjunto das instituições que regem a sociedade. É tão somente uma incitação à desordem, cujo objetivo final pode ser prejudicial a todos, sem exceção.
Vale lembrar que um ano depois de o presidente Lula assumir o poder, em seu segundo mandato (2008), o Congresso Nacional votou pela eliminação da CPMF, o famoso imposto que incidia sobre as transações bancárias correntes e que deveria ser totalmente empenhado nos gastos com a saúde pública brasileira. Perdeu-se, com isso, uma fonte importante de recursos para investir no Sistema Único de Saúde (SUS), mas acatou-se a decisão soberana do legislativo. Todavia, não deixa de ser curioso que se tenha eliminado um imposto voltado exclusivamente para a saúde pública e que se tenha iniciado essa “cruzada” em favor da sonegação ou da rebelião dos contribuintes, numa mesma época e num mesmo contexto político. Não é de estranhar, portanto, que essa gritaria estridente contra o volume de impostos cobrados no País encontre eco ainda nas mesmas vozes que bradam contra o programa Bolsa Família, acusando-o de funcionar como barganha eleitoral para os candidatos do PT.
O fato de o Brasil ter sido retirado do mapa da fome da ONU é mero detalhe?
(Texto originalmente publicado no site “GGN“, no dia 8 de junho de 2015)
Vânia Maria Cury é doutora em História pela UFF