Antonio Lassance: O Estadão contra a participação
Em artigo para o Carta Maior, o cientista político afirma que o jornal, que tem uma longa folha de serviços prestados ao País, está pronto para defender a democracia de seu principal algoz: o povo.
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A turma do editorial do Estadão está em pânico. Apelou e perdeu a razão. Também, não era para menos. O jornal que ajudou a derrubar os governos Vargas, em 1954, e João Goulart, em 1964, não dorme em serviço. Dilma que se cuide, pois estamos, de novo, em um ano de quatro.
Mais uma vez, e antes que seja tarde, o veículo que tem uma longa folha de serviços prestados ao País está pronto para defender a democracia de seu principal algoz: o povo.
O jornal descobriu e denunciou, em um editorial (‘Mudança de regime por decreto’, de 29/5), que o governo da presidenta Dilma Rousseff está cometendo um crime de lesa pátria.
Os ideólogos das furiosas linhas chamam Dilma de ‘companheira’. Calma, os ‘companheiros’ editorialistas continuam os mesmos. Apenas estão usando o pronome de tratamento de forma irônica.
Alertam para o grave risco que temos pela frente: ‘a presidente Dilma Rousseff quer modificar o sistema brasileiro de governo’ por decreto, brada o jornal que sabe defender um regime como ninguém.
Abram alas para os companheiros vetustos que falam de democracia com autoridade:
‘O Decreto 8.243, de 23 de maio de 2014, que cria a Política Nacional de Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS), é um conjunto de barbaridades jurídicas, ainda que possa soar, numa leitura desatenta, como uma resposta aos difusos anseios das ruas. Na realidade é o mais puro oportunismo, aproveitando os ventos do momento para impor velhas pretensões do PT, sempre rejeitadas pela Nação, a respeito do que membros desse partido entendem que deva ser uma democracia.’
E nós, incautos, dormindo, trabalhando e nos preparando para a Copa do Mundo de Futebol – quanta alienação! O gigante dormiu de novo. A coisa da ‘leitura desatenta’ é feita para gente como nós, míopes nas entrelinhas.
Por sorte, nada escapa à eterna vigilância dos companheiros que cavalgam de trombeta.
Cuidado com essa coisa de ‘sociedade civil’, pede o Estadão. Isso é um perigo.
Estejam todos atentos, pois querem destruir a democracia. Como pretendem fazê-lo? Trazendo a sociedade civil para dentro do governo.
Os funéreos redatores jogaram a pá de cal até em liberais moderninhos como Alexis de Tocqueville e John Stuart Mill, que defendiam a participação como base da boa representação, no século XIX.
A Constituição reescrita por um editorial – Em um de seus parágrafos mais histéricos, o editorial que baba afirma que ‘a companheira Dilma não concorda com o sistema representativo brasileiro, definido pela Assembleia Constituinte de 1988, e quer, por decreto, instituir outra fonte de poder: a ‘participação direta’.’
Alguém poderia enviar de presente ao Estadão, pelos Correios, um exemplar da Constituição, pois o deles deve ter sumido faz tempo.
Já se esqueceram do parágrafo único do artigo 1o de nossa Carta Magna , que diz:
‘Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição’.
Provavelmente não chegaram sequer ao artigo 84, que dá ao Presidente da República o poder de expedir decretos sobre a organização e funcionamento da administração federal, que é exatamente o objeto do abominado ato oficial.
Não bastassem alguns ministros do Supremo, também o Estadão agora quer reescrever a Constituição, a começar por editoriais – quem sabe, um dia, via classificados.
Ficaria assim o primeiro artigo da Constituição, pelas mãos dos companheiros trombeteiros:
‘Ora, a participação social numa democracia representativa se dá através dos seus representantes no Congresso, legitimamente eleitos.’
O Estadão acaba de proclamar o parlamentarismo, pois esqueceu-se até de incluir a Presidência da República como uma das instâncias de representação. Ou seja, Eduardo Cunha e Renan Calheiros, tudo bem; mas Dilma Rousseff, nem pensar.
Os tocadores de berrante pedem àqueles que consideram suas vaquinhas de presépio (‘Que o Congresso esteja atento’ e que venha ‘o STF, para declarar a inconstitucionalidade do decreto’) para derrubarem a norma do Executivo.
O argumento pífio é o de que ela ‘fere o princípio básico da igualdade democrática (‘uma pessoa, um voto’)’.
Hora de mandar mais um exemplar da Constituição para o Estadão. Nem o Brasil, nem qualquer país federalista do mundo segue o sistema de ‘uma pessoa, um voto’ na representação parlamentar.
Os caríssimos companheiros editorializantes até hoje não descobriram que nem a Câmara dos Deputados, nem o Senado Federal são constituídos pelo tal sistema de ‘uma pessoa, um voto’. Erraram de país.
A única instância de representação em que essa regra é aplicada, para o azar do Estadão, é justamente a Presidência da República.
Argumentos similares aos desse editorial já foram e continuam sendo usados contra invenções diabólicas como, por exemplo, o orçamento participativo – coisa perigosíssima, nascida da invencionisse petista, dilmista, mensaleira e autoritária dos comissários.
O Estadão chamou para a briga. E pede ajuda a quem quer que seja para salvar nosso sistema representativo.
Sim, esse mesmo sistema representativo que todos os dias os editoriais do Estadão e de muitos outros jornais ajudam a desmoralizar, a esculhambar, a retratar como um ninho de bandidos, é esse sistema que eles conclamam que seja salvo. Avante, ‘companheiros’!
Dilma é acusada de ‘descaramento’ por conta do tal decreto. Aí descobrimos para que serve o cavalo do Estadão: para ajudar a escrever editoriais com coices.
Exorcistas de papel – Em momento algum o Editorialíssimo Jornal, do alto de sua cavalgadura, abandona a postura autoritária e de tutela da opinião pública. Jamais passou, por baixo das patas de suas ferraduras, a ideia de recomendar ao leitor um cuidado básico: o de ler o decreto.
O jornal, como sempre, confia no poder de seu berrante de produzir o efeito manada nos que compram suas páginas. Espera que simplesmente ruminem sobre o decreto: ‘não li e não gostei’.
Quem puder ler a norma verá que a mesma restringe-se a dar recomendações à administração pública federal. Nem Estados, nem Municípios, nem o DF estão obrigados a segui-la.
A Câmara, o Senado e o STF, invocados pelos exorcistas de papel, não têm nada a ver com a coisa e podem permanecer sem sociedade civil, se assim preferirem, no intuito de agradar o jornal.
Sabem qual o grande perigo do decreto? O grande perigo é o de serem criados conselhos e comissões de políticas públicas; conferências nacionais; ouvidorias; mesas de diálogo; fóruns interconselhos; audiências públicas; consultas públicas; e ambientes virtuais de participação social.
Se é disso que o Estadão tem medo, é bom esconder-se debaixo da cama imediatamente, pois, com esse decreto, o bicho vai pegar.
Antonio Lassance é cientista político.
(Artigo originalmente publicado no Carta Maior)