Ao Café PT, juíza Maria José Rigotti fala sobre precarização do trabalho doméstico
Em entrevista, magistrada destaca os resquícios do colonialismo e a invisibilização do trabalho doméstico no país, cujas más condições afetam majoritariamente mulheres negras de baixa renda
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O Café PT desta segunda-feira (04) trouxe para debate um tema relevante e urgente para o mês da Consciência Negra: a precarização do trabalho doméstico no Brasil. A entrevistada, a juíza do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região e gestora do Programa Nacional de Enfrentamento ao Trabalho Escravo e ao Tráfico de Pessoas do CSJT, Maria José Rigotti, falou sobre a realidade do trabalho doméstico no país.
Rigotti é conhecida por sua atuação em defesa dos direitos das trabalhadoras, e analisou as raízes históricas e culturais que sustentam essa realidade no Brasil.
“É uma categoria que impacta expressivamente o mercado de trabalho e a sociedade”, disse Rigotti. Ela destacou o contingente majoritariamente feminino e negro, muitas vezes oriundo de famílias de baixa renda.
A juíza enfatizou que o trabalho doméstico reflete marcas de estigmatização, preconceito e discriminação, ainda enraizadas no imaginário coletivo e que remetem ao período colonial e escravocrata. Segundo ela, a informalidade afeta mais de 70% das trabalhadoras domésticas no Brasil, o que reflete uma “herança de uma abolição inconclusa”.
Resquícios do colonialismo
Durante a entrevista, Rigotti explicou que a cultura do trabalho doméstico no Brasil é marcada por resquícios coloniais.
A maioria das trabalhadoras domésticas, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), são mulheres negras, de baixa escolaridade, e recebem, na maior parte, menos de um salário mínimo.
“O cuidado é o que sustenta a sociedade dentro desse modelo produtivo”, apontou.
Para a juíza, a precarização do trabalho doméstico também se revela em uma “informalidade extrema”, com menos de 30% das trabalhadoras tendo carteira assinada.
Essa realidade se dá não apenas pela falta de regulamentação, mas pelo que Rigotti chama de “fator cultural”, onde a sociedade ainda vê o trabalho doméstico como “menor” e desnecessário de formalização e respeito aos direitos.
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Relação de dependência e exploração
Um dos temas sensíveis destacados pela juíza foi a relação afetiva que se cria entre as trabalhadoras e as famílias que servem.
Ela ressaltou que muitas trabalhadoras se veem em uma situação ambígua, onde o afeto se mistura à exploração, o que muitas vezes as impede de buscar seus direitos.
“Há um vínculo muito forte, ao mesmo tempo há, muitas vezes, um sentimento de gratidão, mesmo sendo explorado, porque para algumas é o único referencial de afeto que elas têm”, explicou.
A juíza frisou que, devido a essa vulnerabilidade, muitas trabalhadoras se encontram “presas” em condições desfavoráveis e com medo de perder a única fonte de sustento.
“É um problema social muito grave e que exige campanhas muito sérias para conscientizar a importância de se respeitarem os direitos dessas mulheres”, enfatizou.
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Trabalho doméstico análogo à escravidão
Outro assunto destacado durante a entrevista foi o trabalho doméstico em condições análogas à escravidão.
Segundo Rigotti, as condições desse tipo de trabalho atualmente vão além da privação de liberdade, pois envolvem “correntes invisíveis”, como a falta de pagamento, alimentação inadequada e moradia precária.
“É muito importante que todos estejam atentos a isso. A própria vítima muitas vezes não se percebe nessa situação devido à vulnerabilidade em que vive”, alertou a juíza.
Rigotti reforçou ainda que muitos casos de resgate são extremamente trágicos, relatando o sofrimento das trabalhadoras resgatadas e a necessidade de apoio da sociedade e do governo para combater essas práticas.
“Essas mulheres muitas vezes perdem toda uma vida em condições de extrema vulnerabilidade”, afirmou.
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Políticas públicas e fiscalização
Em relação às iniciativas de proteção e combate ao trabalho análogo à escravidão, Rigotti mencionou a criação de uma coordenação Nacional de Fiscalização do Trabalho Doméstico e de Cuidados, conhecida como Conaideon, como um avanço positivo.
Essa coordenadoria, segundo a juíza, vem realizando fiscalizações em condomínios residenciais, clubes e residências para investigar indícios de trabalho doméstico análogo à escravidão.
“A fiscalização deve ocorrer como em qualquer outra categoria, mas com as peculiaridades do trabalho doméstico”, explicou. Ela reforçou a importância de um olhar específico e especializado para garantir o cumprimento da legislação trabalhista e dos direitos humanos.
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Livro “Mirtes: Trabalho Doméstico e Desigualdades uno Brasil”
Rigotti também é autora do livro “Mirtes: Mãe de Miguel, Trabalho Doméstico Remunerado e Desigualdades no Brasil”, que conta a trágica história do menino Miguel. Ele faleceu enquanto sua mãe, Mirtes, trabalhava em um edifício de luxo no Recife durante a pandemia.
A magistrada considera o caso emblemático, pois revela as desigualdades estruturais e o racismo que ainda permeiam o trabalho doméstico no país.
“O que esse caso mostra é a coisificação de um corpo de criança negra. Ele foi abandonado à morte no elevador pela patroa, que não o viu como uma criança”, comentou Rigotti.
A juíza destacou que o episódio escancara o racismo estrutural e o apagamento social que ainda impacta as famílias negras, especialmente as trabalhadoras domésticas. Ela elogiou a força e determinação de Mirtes, que transformou seu luto em luta, buscando justiça e conscientização sobre os desafios do trabalho doméstico precarizado.
Projeto de Lei para ressocialização das trabalhadoras resgatadas
A entrevista também contextualizou o Projeto de Lei 3351/2024, proposto pela ex-deputada federal Carla Aires (PT-SC), que visa estabelecer diretrizes para a ressocialização de trabalhadoras domésticas resgatadas de situações análogas à escravidão.
Para Rigotti, essa proposta é um passo importante para garantir uma assistência integral às vítimas, incluindo apoio psicológico, saúde, moradia e integração social.
Ela ressaltou que o PL é uma “iniciativa muito necessária para proteger e dar dignidade a essas trabalhadoras após o resgate”, destacando que as ações pós-resgate são essenciais para reconstruir a vida dessas pessoas, muitas das quais foram privadas de uma vida social normal desde a infância.
Dignidade no trabalho doméstico
Ao final da entrevista, Rigotti reiterou a importância de se reconhecer a dignidade do trabalho doméstico e de combater a normalização da exploração e da informalidade nessa categoria.
Ela acredita que todos os poderes – governo, sociedade e justiça – devem atuar juntos para garantir a proteção e os direitos trabalhistas das trabalhadoras domésticas, visando transformar o Brasil em um país mais justo e igualitário.
“O reconhecimento da dignidade dessas mulheres é essencial para combatermos as desigualdades estruturais. Todos nós temos dignidade, mas é preciso que ela seja reconhecida e fomentada”, concluiu Rigotti.
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Da Redação