Artigo: Gestão pública à cubana – Por Leopoldo Vieira

Após a Revolução, Cuba elaborou uma estratégia de desenvolvimento, com erros e acertos, adptações a contextos históricos, mas com início, meio e fim: ser um país socialista, isto é, fazer da riqueza produzida pela sociedade um bem coletivo.

A questão da gestão pública em Cuba tangencia a figura de Ernesto Guevara de la Serna, o Che, cuja imagem se associou ao mito do guerrilheiro internacionalista, mas muito pouco ao papel crucial que cumpriu como ministro da indústria e da técnica logo após a Revolução. Como “burocrata”, a partir de sua visão estratégica e integral da situação do país, ele se concentrou não em apenas resolver os problemas imediatos, mas em construir soluções para o futuro, a partir de amplos diálogos e embates com sua equipe e os costumazes representantes dos países aliados, como URSS e Tchecoslováquia. É o que narra Tirso Saenz, que foi vice-ministro de Guevara em entrevista que deu recentemente à Revista Fórum. Estas “soluções para o futuro” se desdobraram em três prioridades estratégicas para a nova economia planificada do antigo cassino da máfia americana: educação, cultura e saúde pública. Conta ele que a tecnologia que era transferida pelos países do Leste não era muito avançada . Os cubanos, por causa do embargo, não podiam usar tecnologia dos EUA e tinham enormes dificuldades de acessar as produzias por países de ponta da Europa Ocidental, como França e Inglaterra. Então, toda a questão crucial do desenvolvimento e sua sobrevivência a tantos solavancos se deu em torno do “fazer”, da construção da execução e da implementação ante uma selva de adversidades, inclusive as naturais do país. Mas, sempre com o plano dando o norte aonde se chegar e o que se assegurar à cidadania no percurso. Desta feita, foi iniciado um extenso processo de eletrificação, que atinge a 95% da ilha. Parafraseando Vladimir Ilitch, os cubanos entenderam que “sovietes” mais energia elétrica era a dimensão da gestão pública do plano, que era o socialismo. Construir seu sistema de energia, portanto, esteve na base do primeiro teste da viabilidade das capacidades do novo Estado e da estratégia de desenvolvimento que lhe dava conteúdo. Sempre com a estratégia de desenvolvimento iluminando, Cuba então parte para a edificação de uma de suas prioridades, hoje sua principal vitrine e espetacular caso de sucesso administrativo, que é seu sistema de saúde. Colocando, até por sua matriz ideológica, o interesse público como bússola da gestão pública, o sistema foi desenvolvido com ênfase na prevenção das doenças e voltada para as comunidades. De acordo com “Estado ineficiente, mito medíocre“, “o argumento do mercado mais eficiente também não se sustenta em diversos casos. Na realidade, em alguns setores a lógica mercadológica parece atuar de forma contrária à eficiência. No que se refere à saúde, por exemplo, é possível comparar dois sistemas situados em pólos opostos: EUA e Cuba. Os índices de expectativa de vida e de mortalidade infantil da ilha caribenha são praticamente os mesmos dos EUA. Entretanto, os gastos anuais dos EUA em saúde, por pessoa, são de U$ 5.711, enquanto Cuba gasta apenas U$ 251. Dessa forma, o Estado cubano tem um custo pelo menos vinte vezes menor para obter um resultado equivalente ao da iniciativa privada americana”. Em termos físicos, Cuba assegura 1 médico a cada 200 habitantes, equivalente a 1 médico a cada quatro quadras urbanas. Sobre seus avanços na área do câncer, por exemplo, nem vale à pena tratar neste artigo. Contudo, Cuba fez desta excelência em saúde pública, assim como na área educacional, especialmente o combate ao analfabetismo, um produto tipo exportação, cujo retorno gira aproximadamente em torno de 5 bilhões de dólares, ou, ainda, como no caso do acordo com a Venezuela, 100 mil barris diários de petróleo, o que garante parte do refinanciamento não só desta rede de saúde como de todo seu sistema de segurança alimentar, renda mínima, serviços públicos universais e abastecimento energético. Por outro lado, exportando médicos e alfabetizadores, o país não apenas expressa sua solidariedade humanística, ao contrário das nações que exportam armas, mas ativos essenciais ao desenvolvimento de outras nações. Todos sabemos que uma população educada e saudável, aém representar, concretamente, o exercício dos seus direitos humanos, é um bônus fundamental para o crescimento e o desenvolvimento econômico, por melhores condições, tempo, disposição e qualificação para o trabalho. Ou seja, Cuba combina incentivo ao progresso dos povos como retroalimentador de seu próprio avanço social. A isso, pode-se chamar, sem embargo, de qualidade do gasto público e eficiência da gestão por resultados. Por isso, Cuba é uma senhora vitrine de gestão pública. Apesar do “Período Especial”, logo após a queda da URSS, consolidado o Estado que garante boas condições de vida à cidadania, a Ilha pôde iniciar, na prática, uma profunda reforma administrativa, já que era pleno o domínio estatal dos serviços, produção e circulação, para ampliar o financiamento a Estado para o garantismo ampliado dos direitos conquistados pela população, aproveitando os bons ventos do novo ciclo de governança de esquerda na América Latina. Assim, o governo está a enxugar o excesso de funcionários da máquina estatal, aumentar a produtividade e melhorar os salários, incentivando os pequenos e médios negócios. Consequentemente, surgem medidas como pagar imposto sobre a renda e contribuir para a previdência social por parte dos cubanos. O número de licenças concedidas às atividades autônomas chega a 325 mil. Já estão liberadas, também, as contratações de mão-de-obra nas 178 atividades do setor privado. Entrou em vigor em 2013 a nova lei que permite aos cubanos viajar e retornar ao país sem autorizações específicas e, devido à nova lei migratória, médicos e atletas de elite que desertaram durante missões oficiais no exterior, bem como emigrantes ilegais, poderão regressar a Cuba temporariamente, o que resultará em muito mais divisas. Isso se ampara nos investimentos internacionais que Cuba vem atraindo, através de modelos como o da rede hoteleira, onde o capital internacional entra com os recursos físicos e o governo com o pagamento dos empregados. Em pouco mais de um ano, 285 empresas estatais e privadas de todos os cantos do globo se instalaram na Ilha. Agora os cubanos vão ganhando mercado interno para consumir e vender produtos, aumentando a arrecadação de impostos para o país e dinamizando a economia, que volta para eles em serviços socialistas. Porém, o maior de todos os investimentos neste sentido é o Porto de Mariel, que será pago e, acima de tudo, não é “jogado fora”, mas dentro do Brasil, pelo contrato de compra de bens e serviços brasileiros para a obra. Esta, aliás, é a tônica para todos os investimentos estrangeiros. Não à toa, a União Européia descongelou as relações diplomáticas. Mas, sobretudo, é mais um aporte para o desenvolvimento dos países latino e sul-americanos mais ricos, que verão o retorno de suas inversões em potencial dentro de seus territórios. O porto terá capacidade para um milhão de contêineres por ano. Haverá uma área industrial em torno dele, a fim de atrair empresas latino-americanas que produzam mercadorias para o Pacífico, atraindo até fábricas asiáticas. Se alcançar a meta de produzir 5 milhões de barris de petróleo, o país não mais será dependente do “ouro negro” que importa a preços generosos da solidária Venezuela, podendo chegar a abastecer-se plenamente de energia e criar condições para iniciar um processo de industrialização. A Odebretch brasileira será concessionária da usina “7 de Setembro”, em Cinfuegos, onde abrirá uma destiladeira e produzirá biocombustíveis, o que pode levar os cubanos a serem os terceiros maiores produtores do produto em escala mundial. Além disso, com um bilhão de investimentos no Porto de Mariel, a empreiteira do Brasil construirá uma ampla estrutura viária, com processamento de resíduos sólidos, autosuficiente em energia, onde o governo pretende instalar um pólo industrial. Cuba, neste ritmo, se tornará a Locomotiva do Caribe. Econômica e, mais do que tudo, social. Mas, apesar de tudo isso, o país busca experiência em gestão brasileira e sul-americana. Em 05/04/2013, a ministra do Planejamento, Miriam Belchior, recebeu uma delegação do país, liderada pelo vice-presidente do Conselho de Ministros, Marino Murillo Jorge. O objetivo da reunião foi apresentar as estratégias e os instrumentos de planejamento que o governo brasileiro tem utilizado nos últimos anos, como PAC, RDC, entre outros. O governo cubano pretende aplicar a experiência brasileira, embora, em tese, devessem ser os “bambas” em planificação do desenvolvimento. Porém, os cubanos sabem que os melhores projetos residem nos próprios países do continente, que herdaram um misto de Estado Mínimo com entulhos autoritários das antigas ditaduras no âmbito da administração pública, que forjaram um poder público fraco, burocratizado em seus procedimentos e capacidade de agir. Portanto, as experiências recentes foram inovações no âmbito da capacidade de replanejar e implementar, remando contra estruturas voltadas à reprodução das desigualdades sociais e aos interesses do capital mais selvagem. Logo, sendo um dos raros setores do planeta a crescer e diminuir as desigualdades e pobreza, aqui encontra-se insumo valioso para uma nova gestão pública voltada a tais propósitos. Aliás, o intercâmbio destes novos instrumentos nesta área entre os países latino e sul-americanos pode e deve ser uma diretriz fundamental para o projeto de integração regional ou, simplesmente, para a busca de “expertise” em fazer a máquina pública girar para que os de cima não permaneçam sempre em cima, e os debaixo para sempre embaixo. Leia também: A falsa excelência técnica do neoliberalismo. Leopoldo Vieira é assessor especial da Secretária de Planejamento e Investimentos Estratégicos do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, e secretário do Núcleo Petista Celso Daniel de Administração Pública.

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