Artigo: Exploração da fé nas eleições de 2022, por Gutierres Barbosa
O assédio religioso que explode nestas eleições provocado por pastores e pastoras não é menos condenável que o assédio eleitoral
Publicado em
Quem acompanha a política e a história recente do Brasil sabe que a pauta religiosa vem assumindo cada vez mais posição de destaque no debate eleitoral. Em 19 de março de 1964, dias antes do anúncio do golpe militar, movimentos conservadores foram às ruas na cidade de São Paulo contra uma suposta ameaça “comunista”, prestes a se abater sobre o país. A Marcha da família com Deus pela liberdade tinha como um dos alvos o presidente João Goulart e suas temidas reformas econômicas e sociais. Setores de direita da Igreja Católica, empresários e políticos estavam por trás da mobilização.
Em 1989, nas primeiras eleições diretas para presidente após o longo período imposto pelo regime de exceção, e com a disputa marcada pelo intempestivo Fernando Collor (PRN) e o candidato das massas Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no 2º turno, o debate religioso ressurge provocado pela ala evangélica, que via na escolha do petista o prenúncio do perigo. Assim como hoje, Lula preparou uma carta tranquilizadora e endereçada à comunidade, firmando compromisso com a liberdade religiosa em seu governo caso fosse eleito.
O equivocado casamento entre fé e política num Estado declaradamente laico resulta na eleição de Bolsonaro para presidente em 2018. Aqui vale destacar o apoio decisivo da população evangélica – cujo crescimento, segundo o Censo de 2010, foi de 61% – e a conjuntura internacional: dois anos antes, nos EUA, quem chegava ao poder com a ajuda de milícias digitais e surfando na influência da extrema-direita em várias partes do mundo era o magnata Donald Trump.
Estamos em 2022. Bolsonaro tem a proteção de uma bancada evangélica em Brasília, de uma engenharia montada para disseminar mais ódio e mentira ligados a ideologia de gênero e religião. E o orçamento secreto. Agora não é mais o fantasma da mamadeira de piroca que assusta, mas o banheiro unissex. Ou, caso seja reeleito, Lula irá fechar igrejas. Porém o mesmo governo que fala de “liberdade, pátria e família”, é o que comete incitação à pedofilia ao mencionar que “pintou um clima” com meninas venezuelanas de 13 e 14 anos e defende o uso de armas até sob tortura.
O desrespeito aos direitos humanos, a onda de racismo, violência, homofobia e ataques contra toda e qualquer religião que ouse ir de encontro ao neofascismo bolsonarista atingiu seu ponto máximo. As cenas de fanatismo na porta da Basílica de N. Sra Aparecida e a aparição do presidente no santuário, no último dia 12 de outubro, afrontando famílias católicas e Dom Orlando Brandes, causaram perplexidade e repúdio. Nas redes sociais, nem mesmo o papa Francisco foi poupado das agressões.
Vivemos um momento atípico em nossa história, no qual à intolerância religiosa que vinha sendo observada em relação às religiões de matriz africana soma-se a intolerância dentro das igrejas cristãs, das escolas, dos prédios e condomínios de apartamentos nos grandes centros urbanos. Nos ambientes de trabalho, sem o menor pudor, patrões praticam assédio eleitoral com empregados. Nos ambientes dedicados à oração, também surge a não menos incômoda presença do assédio religioso.
O assédio religioso que explode nestas eleições provocado por pastores e pastoras não é menos condenável que o assédio eleitoral. São vítimas presbíteros, diáconos, obreiros, evangelistas, missionários. Manifesta-se também no púlpito, através da intimidação, de narrativas fantasiosas sobre o lado opositor. E ai de quem discordar! A cantora Marinêz de Jesus, 40 anos de carreira e ex-vocalista da Banda Reflexo, recebeu chuvas de críticas nas redes sociais pelo apoio declarado a Lula. A senadora Eliziane Gama (MA) foi alvo de nota de repúdio da igreja Assembleia de Deus. “Bolsonaro está longe da prática do Evangelho de Cristo”, respondeu.
Eliziane, que também é jornalista e teve papel destacado na CPI da Covid-19, não prega solitariamente. O sentimento que expressa é partilhado por evangélicas e evangélicos de coração e mente progressistas, que fazem o contraponto com o bolsonarismo atrasado e fundamentalista, e reagem com preocupação em relação aos rumos desencontrados da sua igreja. Embora não existam dados oficiais, o número de pessoas desestimuladas a irem para os templos evangélicos vem aumentando.
Críticos de Bolsonaro, a vereadora Aaava Santiago (PSDB), de Goiânia, e o pastor Henrique Vieira, recém-eleito deputado federal pelo PSOL-RJ, são exemplos de vozes insurgentes no campo evangélico. Eles compareceram ao lançamento da Carta de Lula aos Evangélicos, um documento no qual o ex-presidente reafirma o compromisso com a democracia e a livre expressão religiosa caso seja reeleito, bem como condena a utilização das igrejas como espaço eleitoral.
A Carta relembra ações importantes promovidas nos oito anos em que Lula esteve à frente da presidência, e mais o período em que Dilma governou, como as leis e decretos que reforçaram a plena liberdade religiosa. Destaque para a Reforma do Código Civil assegurando a Liberdade Religiosa no Brasil, o Decreto que criou o dia dedicado à Marcha para Jesus e o Dia Nacional dos Evangélicos.
Esta é uma semana decisiva para quem acredita em um Brasil com mais amor e menos ódio, com mais livros, menos armas e truculência, mais prosperidade e menos fome e desemprego. Quem acredita que a fé é uma decisão individual, sem amarras e sem tirania, e conhece o Evangelho de Jesus Cristo, não vai se deixar enganar: vota na liberdade e na democracia.