Essa escalada ocorre enquanto continuamos a desestabilizar o clima ao destruir nossas florestas e nossas cidades e territórios não estão preparados para lidar de forma resiliente com estes fenômenos. Países pobres e em desenvolvimento são os mais atingidos com 98% desses eventos (ONU) mesmo tendo sido historicamente menos responsáveis pela Crise Climática e terem menos recursos para responder à mesma. Não adianta só sermos sustentáveis, precisamos ser resilientes preparando nossas cidades e territórios para aguentar os extremos climáticos que já são certos de vir por aí até que consigamos estabilizar o clima.
Um grande problema que acomete esses países, suas cidades e territórios, é a falta de desenho urbano e de territórios, ou desenho de paisagem. Sim, a paisagem não é apenas o visual da Chapada Diamantina ou o seu jardim mas sim todos os componentes de um território sejam eles naturais, desde sua topografia até a composição do seu solo, seu sistema hídrico, vegetação e também seu espaço urbano. Por exemplo, a escolha dos governantes paulistas em colocar suas duas principais marginais na beira dos rios Pinheiros e Tietê, assim como sistematicamente impermeabilizar muitos dos seus principais rios em prol do modal automobilístico só comprometeram ainda mais o contexto urbano da cidade. A maior cidade do hemisfério sul, São Paulo cresceu de 40 mil habitantes em 1890 para 18 mi em sua área metropolitana em 2020 como uma colcha de retalhos urbana sem o menor planejamento quanto a áreas vulneráveis à enchentes e sua interação com a natureza.
O resultado padrão dos últimos eventos extremos gira em torno 62 pontos de alagamento na cidade e uma total incapacidade da prefeitura em antecipar e responder ao fenômeno. Já no sul da Bahia acabamos de testemunhar na virada do ano o alto nível de destruição das últimas chuvas, amplificado pelo avanço da monocultura agrícola junto a ocupação do território sem o devido planejamento onde 145 mil pessoas foram atingidas, 26 mil ficaram desabrigadas e 61 mil desalojadas além de 28 mortos, 2 desaparecidos e 520 feridos. Como colocado por Penildon Silva, Pró-reitor de Ensino e Graduação da UFBA que tem desenvolvido o tema de Meio Ambiente dentro da universidade como preparação para essa nova realidade:
“O maior desastre natural da história da Bahia vem ocorrendo desde o início de dezembro no Sul do Estado, e somado às enchentes que vem se alastrando por Minas Gerais, já totalizam 45 mortes e 109 mil desabrigados em toda essa região. Esses desastres são a expressão local da crise climática que temos enfrentado, que se manifesta em desastres e eventos climáticos extremos em todo o globo… […]No caso da Bahia e de Minas Gerais, esses eventos climáticos são potencializados pela destruição do bioma da Mata Atlântica, das matas ciliares dos rios e pela construção sem planejamento e predatória nas margens dos cursos d ‘ água. Já vivemos hoje uma crise climática que deve ser enfrentada firmemente e para a qual já temos alternativas para diminuir ou retroceder seus impactos.”
Entre São Paulo e a Bahia, no nordeste da macrorregião Rio-SP, terceira maior do planeta com 43 mi de habitantes, os muros de contenção arcaicos utilizados nas favelas do Rio de Janeiro, como o Vidigal por exemplo, não dão conta dos atuais padrões de chuva e a erosão é uma constante. Indigna o fato de que já existem meios de alta precisão de se antecipar impactos desse tipo e as citadas enchentes. Em 2015, por meio de modelagem digital 4D realizada no Vidigal com equipe de Harvard e MIT em 2014, prevemos a erosão de larga escala que ocorreu precisamente como na iteração digital realizada (95% de precisão), fechando por um ano a Avenida Niemeyer. Cobramos as autoridades continuamente desde então um redesenho da encosta que utilizasse a natureza como infraestrutura para entregar uma drenagem efetiva para o espaço natural e construído no maciço Dois Irmãos, o que ainda precisa acontecer como em outras favelas e áreas de risco do Rio de Janeiro. Fenômeno similar ocorreu recentemente na cidade histórica de Ouro Preto em Minas Gerais, onde um casarão tombado foi engolido pela erosão causada pelo estresse no solo gerado pelas fortes chuvas de começo de ano, enquanto os impactos humanos e estruturais se acumulavam por todo estado.
Junte-se a falta de preparação e ação nas cidades e territórios da macrorregião e do Brasil o fato de que os padrões de chuva mudaram tanto no Rio como em São Paulo, Belo Horizonte ou na Bahia. As chuvas tornaram-se mais escassas e quando ocorrendo mais intensas criando então o cenário ideal para enchentes e erosões: solo mais arenoso e impermeável que sofre maior pancada d’água em um curto espaço de tempo (1 mês em 1 dia por exemplo) em um território que sofre perda de vegetação nativa devido ao crescimento desordenado ou produção agrícola destrutiva se tornando impermeabilizado pela falta de seu sistema de drenagem natural ou pior ainda, devido a asfalto e concreto. O sofrimento causado pelos eventos extremos nas cidades e áreas rurais do país custa vidas, prejudicando ainda mais os pobres mas também os mais ricos. Juntando os custos da falta de preparação e o consequente impacto nas nossas cidades, o prejuízo financeiro da inércia de antecipação de resiliência climática aproxima-se no Brasil a mais de meio bilhão de reais apenas no começo desse ano.
Aproveitar bons projetos urbanísticos e desenvolvimento rural anteriores é necessário, mas não é o suficiente devido aos acentuados impactos da Crise Climática e o crescimento não previsto dos nossos centros urbanos e áreas rurais. É urgente avançar do abstrato planejamento urbano e zoneamento de áreas para prática específica de desenho urbano e de território paisagem com uso de alta tecnologia tanto para antecipar desastres como para produzir intervenções urbanas que sejam multifuncionais, resilientes e sustentáveis, ou seja, capazes de fortalecer os sistemas naturais existentes e contribuir para o funcionamento das cidades e territórios.
Em todas essas áreas urbanas solidificadas como o Rio com suas encostas e em São Paulo, com rios brutalmente aterrados e o solo urbano impermeabilizado, teremos o desafio de reconstruir o grid, a rede de infraestrutura existente, num projeto de redesenho urbano que exigirá grandes esforços e integração com os sistemas naturais das urbes. Nas áreas rurais e territórios produtivos como os de agricultura e de mineração, precisaremos de intervenções de desenho de território e paisagem de larga escala para recuperar sistemas naturais como infraestrutura ambiental, como no sistema floresta-pasto-lavoura, e evitar futuras tragédias como a de Brumadinho com reforços topográficos e recuperação de vegetação nativa.
É preciso entender que tanto nas cidades como nas áreas rurais e territórios produtivos a natureza é sempre nossa primeira e mais importante camada e sistema de infraestrutura e que quaisquer novas camadas e sistemas que sejam desenvolvidos têm de ser construídos ou reconstruídos a partir dela e em simbiose com ela. Todas essas intervenções junto a transição climática necessária com desmatamento zero e superação dos combustíveis fósseis cobra um alto preço. Entretanto, o custo de não fazê-las é muito maior do que o das intervenções necessárias. Só temos uma chance de nos adaptar e ser resilientes aos eventos extremos da Crise Climática, não temos como vencer a natureza, precisamos nos unir à ela.
Pedro Henrique de Cristo, Coordenador do NAVE, Polímata, é professor-visitante de políticas públicas, desenho urbano e arquitetura na Universidad Eafit-Urbam, em Medellín, e na Universidad Diego Portales (UDP), em Santiago. MPP’11 Harvard
Twitter: pedrohdcristo Instagram: Pedro Henrique de Cristo