Márcio Tavares: Carnaval abriu ciclo de reorganização popular
A folia serviu de palco para que a população desse vazão a seu descontentamento com o governo golpista e também de desejo de retomada da democracia
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A marca da mais popular manifestação cultural do Brasil em 2018 foi a mistura de alegria e protesto. Nesse carnaval, as ruas e passarelas foram tingidas com um tom crítico como não assistíamos há muitos anos no Brasil.
A folia serviu de palco para que a população desse vazão a seu profundo descontentamento com o governo golpista e também de seu desejo de retomada da democracia, simbolizados, sobretudo, nas incontáveis ações em defesa do direito de Lula ser candidato que surgiram nas festas carnavalescas.
De norte a sul do país acompanhamos um carnaval politizado e politizador em que o espaço da polêmica e da crônica social retomaram seu lugar de destaque. Nesse contexto, a campanha “Carnaval com Lula”, que contou com o apoio e a adesão da militância petista e de apoiadores valorosos, conseguiu atingir os mais diversos rincões do Brasil e, assim, vimos uma gama enorme de blocos, fantasias, manifestações coletivas e individuais emergirem junto das festas de momo clamando pelo direito do povo voltar a ter esperança através do retorno de Lula à presidência pelo voto.
Esse movimento politizado e democratizante acontecido nesse carnaval teve seu ponto culminante nos desfiles das Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Inúmeras escolas apresentaram-se na avenida com enredos carregados de crítica social, demonstrando claramente a amplitude crescente do descontentamento popular com a atual situação da nação.
Contudo, foi o desfile da Escola de Samba Paraíso do Tuiuti, que com seu enredo “Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?” abordou a permanência do legado da escravidão até a contemporaneidade na formação social brasileira que ofereceu a expressão discursiva mais bem organizada para o sentimento de rebeldia que se manifestava pelos blocos e ruas.
A Escola de Samba conseguiu artisticamente explicar a forma injusta como nossa sociedade está conformada, através do predomínio de uma pequena casta, herdeira ainda da sociedade escravocrata, sobre as maiorias sociais altamente exploradas. Sobretudo, a maioria da população de etnia negra que mesmo após 130 anos da abolição da escravidão ainda sofre com o preconceito e com as maiores dificuldades sociais. Isto é, lindamente, através de seu samba e seu enredo, a Paraíso do Tuiuti falou sobre o racismo estrutural e a desigualdade como marcas fundamentais da arquitetura social nacional. Assistindo ao desfile, ganhava legibilidade através das alas e alegorias, a narrativa proposta pelo brilhante carnavalesco Jack Vasconcelos que mostrava que a permanência e irresolutibilidade de nossas chagas históricas eram as únicas explicações possíveis para compreender a retomada do poder em 2016, por meio de um golpe, da casta que domina com injustiça o Brasil na maior parte de seus 500 anos.
A potência dos símbolos que foram mobilizados no desfile da Paraíso do Tuiuti foi tamanha que tudo leva a crer que a escola tenha sido censurada durante o desfile das campeãs do carnaval. O destaque “vampiro neoliberalista”, que fechava o desfile da Escola na última alegoria, apareceu na Sapucaí sem a faixa presidencial que carregava no domingo. É evidente que o enredo apresentado e a imagem do vampirão presidencial incomodou profundamente os agentes do golpe e possivelmente os instou a mobilizar sua capacidade de impor a censura ou a auto-censura. Isto acontecendo logo depois de uma onda de censura à arte que vivemos nos últimos meses demonstra que cada vez menos vivemos sob garantias democráticas.
A força dos acontecimentos desse carnaval não pode ser minimizada. Passou algo muito importante, pois se tornou manifesto que está em vias de ser forjada uma nova narrativa nacional a serviço das maiorias populares e que a expressão desse movimento desemboca no simbolismo de Lula. Um processo que se levado a bom fim poderá desembocar em uma nova constituição popular, talvez de caráter inédito.
Aparentemente, a força das manifestações de janeiro em defesa de Lula, o carnaval do protesto, a incapacidade dos golpistas em aprovar a reforma da previdência e em apresentar uma candidatura com viabilidade eleitoral parece estar levando as forças da casta dominante a forjar o aprofundamento do golpe. A intervenção federal no Rio de Janeiro anunciada após o carnaval parece ser um salto no escuro dado por aqueles que afogaram o país no obscurantismo com a quebra democrática de 2016.
Entretanto, se por um lado fica transparente que o governo ilegítimo e sua camarilha farão de tudo para impedir que o descontentamento do povo se torne um ciclo de mobilização vigoroso, nacional e popular, os acontecimentos do carnaval demonstraram que as condições estão dadas para que um ciclo de lutas e mobilizações massivas em defesa da democracia e dos direitos do povo torne-se realidade.
Nesse contexto, a figura de Lula poderá ganhar ainda maior importância para a configuração de uma nova hegemonia, uma vez que as reivindicações e aspirações populares têm convergido na esperança simbolizada por sua capacidade de amalgamar as mais diferentes demandas das maiorias subalternizadas pelo regime neoliberal-conservador. Evidentemente, tudo dependerá da habilidade dos agentes políticos em construir e manter essa passarela de esperança para onde convergem os anseios da maioria da população.
Portanto, o carnaval nos levou a um ponto de inflexão na conjuntura e talvez a mais uma aceleração dos acontecimentos históricos já tão precipitados. A esperança dos golpistas era de que a festa fizesse com que o povo esquecesse seus desmandos, ao menos por alguns dias. Porém, eles não contavam com um carnaval com Lula.
Márcio Tavares é historiador e curador de arte e secretário nacional de Cultura do PT.