O Brasil não é para principiantes | Brazil is not for beginners
O artigo sobre a sentença condenatória contra Lula proferida pelo juiz Sérgio Moro no caso do apartamento triplex foi originalmente publicado no Jornal de Notícias, de Portugal. Also available in English
Publicado em
Rita Mota Sousa (Magistrada do Ministério Público)
Jornal de Notícias, 17 de abril de 2018
De tanto ouvir dizer que Lula da Silva tinha sido condenado sem provas decidir ler a sentença.
A lei brasileira ensombra o julgamento imparcial pois permite que Sérgio Moro seja o juiz na instrução e no julgamento. A falta de distanciamento mostra-se na sentença de Moro, sendo vários os momentos em que se diz “ofendido” com a defesa, ou se refere a “interferências inapropriadas do defensor”, denotando ânimo e falta de distanciamento indesejáveis num juiz.
A decisão de Moro suscita várias perplexidades. A mais notável é porque não estão claramente identificados os factos provados. Toda a decisão é uma redonda motivação. Lula desconhece rigorosamente as circunstâncias em que lhe dizem que praticou o crime. É ler para crer.
Outra perplexidade: as notícias da Globo são consideradas matéria probatória. Aliás, dão-se por provados factos noticiados pela Globo – sem qualquer confirmação da sua veracidade, e só porque foram noticiados pela Globo. No ponto 376 diz-se: “Releva destacar que, no ano seguinte à transferência do empreendimento imobiliário para a OAS Empreendimentos, o Jornal O Globo, publicou matéria da jornalista Tatiana Farah, mais especificamente em 10/03/2010, com atualização em 01/11/2011, com o seguinte título “Caso Bancoop: tríplex do casal Lula está atrasado (…)”. E no ponto seguinte: “a matéria em questão é bastante relevante do ponto de vista probatório”.
Notícias da Globo são convocadas noutros pontos da sentença como determinantes para prova da propriedade do apartamento, sedo-lhes mesmo atribuído o valor de documentos.
Isto não é de somenos, se pensarmos que se trata de um dos jornais mais lidos no Brasil. Ora, Sérgio Moro atribuiu grande peso ao facto de funcionários do prédio, sem nunca justificarem porquê, terem declarado que viam em Lula o proprietário do apartamento. Impor-se-ia ao julgador perguntar se não poderia ser assim em virtude das sucessivas notícias da Globo que repetidamente o afirmaram.
Um outro eixo central da condenação são as mensagens transcritas.
As duas primeiras conversas são de fevereiro de 2014. A primeira decorreu entre Léo Pinheiro e Paulo Gordilho, respetivamente o empreiteiro e o engenheiro da OAS e ambos arguidos:
Paulo Gordilho: “O projeto da cozinha do chefe tá pronto se marcar com a Madame pode ser a hora que quiser”.
Léo Pinheiro: “Amanhã as 19h. Vou confirmar. Seria bom tb ver se o de Guarujá está pronto”.
Paulo Gordilho: “Guarujá também está pronto”.
Léo Pinheiro: “Em princípio amanhã as 19h”.
Paulo Gordilho: “Léo. Está confirmado? Vamos sair de onde a que horas?”.
Léo Pinheiro: “O Fábio ligou desmarcando. Em princípio será as 14h na segunda. Estou vendo. Pois vou para o Uruguai”
Paulo Gordilho:” Fico no aguardo.
Leo Pinheiro: OK”.
A segunda decorreu entre pessoa não identificada e Leo Pinheiro:
– Ok. Vamos começar qdo. Vamos abrir 2 centro de custos: 1.º zeca pagodinho (sítio) 2.º zeca pagodinho (Praia)
-Ok.
– É isto, vamos sim.
– Dr. Léo o Fernando Bittar aprovou junto a dama os projetos tanto de Guarujá como do sítio. Só a cozinha Kitchens completa pediram 149 mil ainda sem negociação. Posso começar na semana que vem. E isto mesmo?
– Manda bala.
– Ok vou mandar.
– Ok. Os centros de custos já lhe passei?
– Conversando com Joilson ele criou 2 centros na investimentos. 1. Sítio 2. Praia. A equipe vem de SSA são pessoas de confiança que fazem reformas na oas. Ficou resolvido eles ficarem no sítio morando. A dama me pediu isto para não ficarem na cidade.
– Ok.
A terceira mensagem é de agosto de 2014, e foi trocada entre o empreiteiro e um executivo da OAS:
Marcos Ramalho: “Dr. Léo. A previsão de pouso será por volta das 9.40, alguma orientação quanto ao horário do compromisso. Obs.: Reinaldo acredita que chegará no local que o Senhor indicado por volta das 10.30”.
Leo Pinheiro: “Avisa para a Cláudia (sec) do nosso Amigo para que o encontro passe para as 10.30 no mesmo local”.
Marcos Ramalho: “Ok. Leo Pinheiro: Avisou?”.
Marcos Ramalho: “Falei com Priscila. Ela tentou transferir no celular de Claudia, mas ela está no banho e ficou de me ligar em 15 minutos. Pelo horário ela já deve está me ligando. Aviso o Senhor assim que falar com ela”.
Leo Pinheiro: “É urgente”.
Marcos Ramalho: “Dr. Léo. Alterado para 10.30. Falei com Claudia e agora falei o Fábio (filho)”.
Marcos Ramalho: “Dr. Léo. Segue o celular de Dr. Fábio. 04111999739606″.
Leo Pinheiro:” Avisa para o Dr. Paulo Gordilho”.
Marcos Ramalho: “Acabei de avisar Dr. Paulo Gordilho”.
Marcos Ramalho: “Dr. Léo, Dra. Lara só pode atender o senhor as 14.30. Deixei confirmado e fiquei de dar OK pra ela assim que falasse com o Senhor”.
O teor das mensagens é simplesmente anódino. A segunda delas será a mais comprometedora. Mas Sérgio Moro não explica por que razão conclui que Lula da Silva é “zeca pagodinho”, limitando-se a concluir que é assim. De todo o modo, estas mensagens não são suficientes para se concluir que o apartamento foi oferecido a Lula da Silva, que nem sequer intervém em nenhuma daquelas comunicações.
O elemento de prova crucial foi o depoimento de Léo Pinheiro, que aceitou colaborar com a investigação para ter a sua pena reduzida. Fê-lo perante a perspectivava de passar, pelo menos, mais 26 anos preso.
Este arguido foi detido pela primeira vez em novembro de 2014. Em junho de 2016, já em prisão domiciliária, dispôs-se à colaboração premiada. Esta disponibilidade é contemporânea com a sua primeira condenação, por sinal ditada por Moro, em 16 anos e 4 meses de prisão efetiva. A proposta de colaboração foi rejeitada.
Em setembro de 2016, Sérgio Moro ordena a prisão carcerária de Léo Pinheiro, que entretanto também vira a sua pena agravada para nada menos do que 26 anos de prisão. Em abril de 2017 Léo Pinheiro muda de advogados e propõe nova colaboração, desta vez confessando ter oferecido a Lula da Silva o apartamento tríplex. A proposta de colaboração foi, então, aceite.
Atualmente, e ainda sem qualquer acordo de colaboração premiada concluído, a pena de Léo Pinheiro no processo Lula passou de 10 anos a 3 anos de prisão – em regime semi-aberto e grande parte da qual já cumprida. A colaboração trouxe-lhe enorme benefício, sendo a diferença entre passar o resto da sua vida preso ou apenas uma pequena parte. Quando o prémio é desta grandeza será muito tentador contar o que a acusação quer ouvir. O julgador não pode deixar de ter presente esta lei da vida.
Em termos de documentos, a prova queda-se com a cópia carbono de “Proposta de adesão sujeita à aprovação” assinada por D. Marisa em 12/04/2005 relativamente à aquisição do apartamento 174 (o “apartamento tipo”); e com o original daquele documento, que foi rasurado para o numero 141 (correspondente ao tríplex), ambos apreendidos em casa de Lula.
Entre 2009 e 2014 o apartamento foi visitado duas vezes pela família de Lula de Silva, que não acompanhou os trabalhos de remodelação. Não será plausível que as remodelações tenham sido feitas para seduzir o ex-presidente à aquisição do imóvel? Na altura, Lula era uma figura de prestígio mundial, cuja presença garantiria valor não só ao imóvel, mas até a toda a área. Por outro lado, não sendo Lula, em 2014, presidente do Brasil, por que razão haveria o empreiteiro de se sentir obrigado a remodelar-lhe o apartamento?
Tenho para mim que Sérgio Moro levou o conceito de prova indiciária demasiado longe. Nenhuma das provas é suficientemente consistente e conclusiva. Não afirmo a inocência de Lula. Mas entendo que a sua culpa não ficou suficientemente demonstrada para a condenação. E, tal como muitas vezes se repete pelos tribunais, melhor fora um culpado em liberdade do que um inocente preso.
Artigo original (em português): www.jn.pt/opiniao/convidados/interior/o-brasil-nao-e-para-principiantes-9264512.html
We provide below a free translation of an article originally published in Portugal’s newspaper Jornal de Notícias on the conviction handed down by Judge Sérgio Moro against Lula in the triplex apartment case. Click here to access the original article (in Portuguese).
Brazil is not for beginners
Rita Mota Sousa (Public Prosecution Magistrate)
Jornal de Notícias, 17 April 2018
After having heard so much that Lula da Silva had been convicted without any evidence, I decided to read the sentence.
The Brazilian law casts a shadow over the impartiality of the trial by allowing Sérgio Moro to be both the investigating judge and the trial judge. The lack of separation is revealed in Moro’s sentence, when at various moments he states he feels “offended” by the defense or when he refers to “inappropriate interferences by the defender”, thus denoting a spirit and lack of detachment undesirable in a judge.
Moro’s decision raises several perplexities, the most notable of which is why the facts proven are not clearly identified. The whole decision is motivated. Lula rigorously denies the circumstances in which he is said to have perpetrated the crime. It is just a matter of reading it.
Another perplexity: Globo news stories are considered to be probative matter. Actually, facts reported by Globo are taken as evidence – without any verification of their veracity, just because they were reported by Globo. In point 376 it is said: “It is worth pointing out that, in the year following the transfer of the real estate business to [construction company] OAS Empreendimentos, newspaper O Globo, published a story by journalist Tatiana Farah, more specifically on 10 March 2010, updated on 1 November 2011, with the following title “Bancoop case: the Lula couple’s triplex is behind schedule (…)”. And in the following item: “the matter at hand is quite relevant from the probative point of view”.
Globo news reports are also used in other parts of the sentence as determining evidence of the ownership of the apartment, having even been assigned the status of documents.
This is not a minor detail if we think that this is one of Brazil’s most read newspapers. Well, Sérgio Moro attributed great weight to the fact that building staff, without ever having justified why, had declared that they saw in Lula the owner of the apartment. It would be incumbent upon the judge to ask if that was not so by virtue of the successive Globo news stories repeatedly affirming that.
Another key axis of the conviction is the transcribed messages.
The first two conversations are from February 2014. The first one is between Léo Pinheiro and Paulo Gordilho, respectively the contractor and the OAS engineer, both questioned:
Paulo Gordilho: “The chief’s kitchen project is ready, if you want to set an appointment with the Madam, that could be any time you want”.
Léo Pinheiro: “Tomorrow at 7p.m. I’ll confirm. It would also be good to find out if Guarujá is ready”.
Paulo Gordilho: “Guarujá is also ready”.
Léo Pinheiro: “Let’s say, 7p.m. tomorrow”.
Paulo Gordilho: “Léo. Is that confirmed? Where from and at what time do we leave?”
Léo Pinheiro: “Fábio called to cancel it. At first, it will be at 2p.m. on Monday. I’m on it. Because I’m going to Uruguay.”
Paulo Gordilho:”I’m looking forward to it”. Leo Pinheiro: “OK”.
The second one involved an unidentified person and Leo Pinheiro:
– Ok. We start when. Let’s create two cost centers: 1st zeca pagodinho (ranch) 2nd zeca pagodinho (beach)
-Ok.
– That’s it, let’s do that.
– Dr. Léo, Fernando Bittar has gotten the lady’s approval for both the Guarujá and the ranch projects. Only the [furniture manufacturer] Kitchens’s full kitchen they asked for 149,000, still without a deal. I can start next week. Is that it?
– Do it.
– Ok, will do.
– Ok. Have I passed the cost centers over to you?
– [I was] talking with Joilson, he created two cost centers in investments. 1. Ranch 2. Beach. The team is from SSA, reliable people that do renovations at OAS. It was decided that they can stay in the ranch. The lady asked me that so they didn’t have to stay in the city.
– Ok.
The third message is from August 2014 and was exchanged between the contractor and an OAS executive:
Marcos Ramalho: “Dr. Léo. Landing is estimated at 9:40, any orientation as for the time of the appointment. Obs.: Reinaldo believes he will arrive at the place that the Mister set at around 10:30”.
Leo Pinheiro: “Tell Claudia (secretary) of our Friend that the meeting is to be shifted to 10:30 at the same place”.
Marcos Ramalho: “Ok”. Leo Pinheiro: “Did you tell them?”
Marcos Ramalho: “I spoke with Priscila. She tried to transfer to Claudia’s mobile, but she was in the shower and said she would call me back in 15 minutes. [Judging from] the hour, she must be about to call me. I’ll let you know as soon as I have spoken with her”.
Leo Pinheiro: “It’s urgent”.
Marcos Ramalho: “Dr. Léo. Rescheduled for 10:30. I spoke with Claudia and now I spoke with Fábio (son)”.
Marcos Ramalho: “Dr. Léo. There goes Dr. Fábio’s cell phone number. 04111999739606″.
Leo Pinheiro:” Tell Dr. Paulo Gordilho”.
Marcos Ramalho: “I have just informed Dr. Paulo Gordilho”.
Marcos Ramalho: “Dr. Léo, Dr. Lara can only see you at 2:30p.m. I confirmed the appointment and am to give her the OK as soon as I speak to you”.
The content of the messages is simply immaterial. The second of them will be the most compromising. But Sérgio Moro does not explain the reason why he concluded that Lula da Silva is “zeca pagodinho” – he just concludes thus. At any rate, these messages are not enough for us to conclude that the apartment was offered to Lula da Silva, who does not even take part in any of these conversations.
The key evidence was the testimony by Léo Pinheiro, who accepted to collaborate with the investigation to have his sentence reduced. He did it in face of the prospect of spending, at least, another 26 years in jail.
This witness was detained the first time in November 2014. In June 2016, already under house arrest, he accepted the plea bargain. His acceptance is simultaneous with his first conviction, as a matter of fact also ruled by Moro, 16 years and four months in prison. The proposal to collaborate was rejected.
In September 2016, Sérgio Moro orders the arrest of Léo Pinheiro, who however had also seen his sentence aggravated to no less than 26 years imprisonment. In April 2017 Léo Pinheiro changes lawyers and proposes a new collaboration, this time confessing having offered Lula da Silva the triplex apartment. This time the plea bargain was accepted.
Today, and still without any plea deal having been concluded, Léo Pinheiro’s sentence has been reduced from 10 to 3 years’ imprisonment – part-time imprisonment and most of which has already been done. Collaboration afforded him a great benefit, the difference between spending the rest of his life in jail or just a small part. When the prize is of such a magnitude, it would be very tempting to tell what the accusation wants to hear. The judger should not overlook this law of life.
In terms of documents, the evidence rests solely on the carbon copy of the “Proposal of adherence subject to approval” signed by Ms. Marisa on 12 April 2005 regarding the acquisition of apartment 174 (the “apartment type”); and the original of that document, which had the number 174 scratched out to number 141 (corresponding to the triplex), both seized in Lula’s house.
>From 2009 to 2014 the apartment was visited twice by the Lula de Silva family, who did not follow the remodeling work. Is it not plausible that the remodeling had been done to lure the former president into acquiring the property? At the time, Lula was a world-renowned figure, whose presence would add value to the property, and even to the whole area. Moreover, as in 2014 Lula was no longer president of Brazil, why would the contractor feel obliged to revamp his apartment?
It is my opinion that Sérgio Moro has taken the concept of evidentiary proof too far. None of the evidence is sufficiently consistent and conclusive. I am not affirming Lula’s innocence. But I understand his guilt has not been sufficiently demonstrated toward a conviction. And, as so often is repeated in courtrooms, better a guilty man to go free than an innocent man to be convicted.