No último dia 12 de maio de 2015, às vésperas do aniversário da fantasiosa Abolição da Escravatura, o instituto Itaú Cultural abriu suas portas para um rico e inquietante debate sobre raça e teatro. A ocasião se deu em resposta às reivindicações de vários movimentos negros que, diante de uma imagem de divulgação da peça “A Mulher do Trem” da Cia. Os Fofos Encenam, apontaram a existência de um elemento racista na montagem: a Black Face – uma representação estereotipada da figura do negro datada do século XIX, tão discutida hoje pela militância negra.
Para desenvolver esse espetáculo o grupo se baseou nos formatos populares de circo-teatro em que “tipos sociais” são ridicularizados através da utilização de máscaras caricaturais e comportamento grotesco para que se possa abrir discussão sobre a estrutura social burguesa e não apenas sobre os sujeitos por ela definidos. O jogo da linguagem do circo-teatro é complexo e, nessa dança entre indivíduos operando como estepes simbólicos e a crítica social, as contradições éticas da criação começam a ocupar o campo da discussão política.
O cancelamento da peça “A Mulher do Trem” em respeito aos protestos descortinou um quadro muito significativo sobre o atual momento do teatro de pesquisa em São Paulo e a relação entre os artistas e a produção simbólica no meio público. No debate surgiram questionamentos fundamentais sobre a composição de um imaginário negro de autoria branca, sobre a autonomia dos significantes estéticos, sobre o mercado de trabalho excludente do teatro e a prática artística como meio de transformação de nosso contexto marcado historicamente pelo racismo naturalizado sobretudo nas construções cotidianas do ideário de negritude e das origens não-brancas que compõem nossa diversidade cultural.
O dimensionamento histórico-social foi um dos principais alimentos do encontro. A mesa debatedora (que agregava militantes de movimentos negros, pesquisadores, diretores de teatro incluindo Fernando Neves, diretor do espetáculo “A Mulher do Trem”) ponderou sobre a utilização equivocada e muitas vezes fetichista do termo político “censura” para situações em que a sociedade civil se manifesta contra algo que não está dentro das relações éticas acordadas política e socialmente (lembremo-nos que “censura” enquanto conceito só nomeia o exercício da atitude silenciadora do Estado e de outras instituições totalitárias em relação à livre expressão da população), falou-se a respeito da falseada idéia de racismo reverso, e sobre o também falso constructo da democracia racial.
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Em nosso País não podemos lidar com o movimento negro como uma organização homogênea, tampouco considerar que há em nossa dinâmica nacional um purismo de raça uma vez que a colonização brasileira foi em absoluto subsidiada pela miscigenação – considerada harmônica pelos entusiastas do conceito positivado de mestiçagem, embora se comprove historicamente que a mistura racial no País foi autoritária e baseada na cultura do estupro. Apesar disso, o processo separatista entre brancos e negros, legitimado pela escravidão, legou à população de pele clara o poder de elaborar e configurar simbolicamente todos os negros e indígenas a sua maneira, partindo de seus referenciais de classe e de raça, afiliando-os a tipificações discriminatórias ou de reiteração pejorativa da desigualdade social a qual os povos dominados foram historicamente submetidos. Isso se torna muito evidente quando assistimos a toda sorte de programação televisiva em que podemos testemunhar a adequação compulsória da identidade negra a tipos e personagens-base monomotivados substancialmente por sua sexualidade, submissão e/ou por seu comportamento oportunista.
A intersecção entre raça e classe no século XXI brasileiro continua, portanto, abastecida e engessada pelo critério escravocrata de dominação das raças não-brancas vigente no período colonial, mesmo depois dos processos de “libertação” dos negros, da criminalização do racismo, de emancipação moderna dos movimentos de luta racial e do aumento de representatividade da população negra no mercado de trabalho formal e na mídia. A atitude discriminatória travestida de comportamento normal consentido pela comunidade civil e pelo Estado chama-se racismo institucional.
E o que tem o teatro a ver com isso?
A arte é definida na História principalmente como um processo de documentação e provocação sensível do tempo, do espaço e das comunidades/corpos que os habitam. Através das diversas linguagens artísticas é possível organizar uma investigação sobre os eventos do passado e perceber quais seriam os índices determinantes dos diferentes contextos sociais e culturais estudados, entretanto, a partir do momento em que integramos uma cultura social forjada em 400 anos de escravidão (ou seja, de legalizada desumanização do povo preto), é necessário realizar a verificação crítica sobre quem produziu e tem produzido as teorias historiográficas no presente. A resposta está na autoria e coordenação editorial dos livros-base e na produção acadêmica: salvo raras exceções, a produção reflexiva sobre os movimentos político-sociais do mundo pertence a uma classe intelectual branca, economicamente privilegiada.
Se a voz narrativa da História geral pertence ao aludido dominador, a História do teatro enquanto objeto-vivo não está imune a essas condições de produção e análise. Por consequência, pode-se concluir que a criação de uma cartografia simbólica das populações não-brancas se dá fora do círculo racial e social daqueles a quem se pretende representar.
O debate do dia 12 de maio com todas as suas contradições, incluindo a mediação do banco Itaú que foi agradecido por diversas vezes, aponta nortes bastante férteis para que possamos reagir sobre o ocorrido. Ali todos os participantes fomos convocados à profunda reflexão sobre as formas estéticas permeadas ideologicamente pelo racismo institucional, o sexismo, a hegemonia das elites, os discursos autoritários tão combatidos pelo espírito libertário do solo artístico.
Ninguém disse que seria fácil.