Retomar a luta constituinte

Nos marcos dos 50 anos do golpe militar, várias heranças do período têm sido questionadas em manifestações de protesto e no debate público. O desenho do atual sistema político, que…

Nos marcos dos 50 anos do golpe militar, várias heranças do período têm sido questionadas em manifestações de protesto e no debate público. O desenho do atual sistema político, que teve na Constituinte de 1987-1988 um momento decisivo, foi um desses legados da transição conservadora que marcou o fim da ditadura militar no país.

Passados mais de 25 anos da promulgação do texto constitucional, movimentos sociais e partidos de esquerda retomam a luta por uma constituinte exclusiva e soberana para mudar o sistema político e realizarão um plebiscito popular sobre o tema no ano de 2014. Para avançarmos na democratização do país e na realização de uma reforma política estrutural será preciso superar obstáculos impostos desde o processo constituinte anterior.

Em 2011, a sexta edição da Revista Perseu, do Centro Sérgio Buarque de Holanda da Fundação Perseu Abramo, reuniu um conjunto de documentos (O PT e a Constituinte, 1985-1988”), relativos à atuação do partido no processo constituinte. São resoluções de encontros partidários, boletins, notas da bancada, artigos e entrevistas que permitem uma visão representativa das disputas travadas pelo campo democrático e popular no período.

Estes documentos indicam que a questão da constituinte, presente nas resoluções do Encontro Nacional Extraordinário do PT (1985), começa a se desenhar desde a campanha das Diretas. Desde o ato de convocação, a Constituinte foi marcada por forte tensão entre as forças políticas que sustentavam uma constituinte tutelada pelos interesses das elites e do regime anterior e a atuação do movimento social, da esquerda e dos setores progressistas por um novo texto constitucional que representasse os interesses das maiorias populares.

Além disso, o processo constituinte de 1987-1988 se daria em meio ao “entulho autoritário” da ditadura, como a manutenção da Lei de Segurança Nacional, as leis e decretos do Pacote de Abril de 1977, a imposição da Lei da Anistia em 1979 e a derrota da emenda das eleições diretas em 1984.

Na época, partidos e movimentos sociais do campo democrático e popular se mobilizavam por uma Assembleia Constituinte “livre, democrática e soberana”, com seus membros sendo eleitos para elaborar a nova constituição e funcionamento separado do Congresso Nacional. No entanto, prevaleceria a proposta de emenda constitucional enviada pelo então presidente José Sarney, que concedia aos parlamentares eleitos em 1986 poderes para elaborar a próxima constituição, acumulando a dupla função de congressistas e constituintes.

Neste mesmo ano, o PT elegeria 16 deputados e deputadas constituintes. A bancada petista, liderada por Luiz Inácio Lula da Silva (SP), era composta ainda por Benedita da Silva (RJ), Eduardo Jorge (SP), Florestan Fernandes (SP), Gumercindo Milhomem (SP), Irma Passoni (SP), João Paulo (MG), José Genoino (SP), Luiz Gushiken (SP), Olívio Dutra (RS), Paulo Delgado (MG), Paulo Paim, Plínio de Arruda Sampaio (SP), Virgílio Guimarães (MG), Vitor Buaiz (ES) e Vladimir Palmeira (RJ).

Reconhecendo desde o início os limites do congresso constituinte, o 4º Encontro Nacional do PT (1986) aprovara um plano de ação política para a Constituinte que considera como fundamental a mobilização de massas no período. Num contexto de lutas sociais, a Constituinte abriria espaço para temas de interesse dos trabalhadores, como “os direitos que limitem a propriedade, em especial a propriedade da terra rural e urbana; o problema da dívida externa, a partir da revisão da ordem econômica; a questão da própria democracia, em relação à qual se deverão propor medidas que tomem real a participação popular no poder, inclusive através da criação de conselhos populares, de medidas que representem uma efetiva descentralização e desconcentração do poder político, hoje em mãos do Executivo.”

Para tanto, o mesmo Encontro reafirmava a ousada proposta de apresentar um projeto global de constituição, delegando à Comissão Executiva Nacional a sistematização de um projeto do PT que levasse em conta as propostas já existentes, como a elaborada pelo jurista Fabio Konder Comparato (“Muda Brasil”) e as sugestões da Comissão Constitucional do PT, coordenada por Marco Aurélio Garcia.

Nos temas relativos ao sistema político, “O Projeto de Constituição da República Federativa Democrática do Brasil” optou pela forma presidencial de governo, pela abolição do sistema bicameral com extinção do Senado Federal, pela manutenção do sistema eleitoral proporcional e pelo voto em listas partidárias pré-ordenadas. Indicava ainda a possibilidade de alistamento eleitoral aos 16 anos e a livre organização política e partidária.

No Congresso, a Constituinte inicia seus trabalhos em 1º de fevereiro de 1987 e durante 583 dias se torna uma significativa arena da disputa política no país. A mobilização da sociedade foi uma marca do período, presente nas concorridas audiências públicas, na atuação parlamentar da esquerda, na participação destacada dos fóruns Pró-Participação Popular na Constituinte e na coleta de mais de 12 milhões de assinaturas das 122 emendas populares apresentadas.

Por outro lado, a coalizão de partidos e políticos que sustentavam a “Nova República” articularia durante a Constituinte um bloco político que ficou conhecido como “Centrão”, que atuou tanto em reação às conquistas da esquerda e dos movimentos sociais como para frear a radicalização da luta democrática e das reivindicações dos trabalhadores.

Com esta ofensiva das classes dominantes, mesmo com alguns avanços na área social, a versão consolidada do texto constitucional do Congresso foi recebida pelo PT como uma proposta conservadora, especialmente na ordem econômica e nos temas da reforma agraria, reforma urbana, papel das forças armadas, estrutura da propriedade e desnacionalização da economia.

Diante disso, o PT decide votar “contra o texto, exatamente porque entende que, mesmo havendo avanços na Constituinte, a essência do poder, a essência da propriedade privada, a essência do poder dos militares continua intacta nesta Constituinte”. Embora tenha votado contra o projeto, o PT assinou a Constituição promulgada em 5 de outubro de 1988, entendendo este ato como um cumprimento formal da participação do partido na Constituinte.

A Constituição de 1988 previa entre suas disposições transitórias uma revisão constitucional e um plebiscito sobre o sistema de governo dali a cinco anos. Em 1993, o presidencialismo vence o plebiscito sobre sistema de governo e no mesmo período, o PT e outros partidos e movimentos sociais se manifestam contrários à revisão constitucional. Com a derrota da Frente Popular nas eleições presidenciais de 1989 e o avanço do neoliberalismo no país, a Constituição também passa a ser alvo do processo de retirada de direitos e dos tempos de Estado Mínimo, por meio de sucessivas emendas.

Ao longo de todos esses anos, várias iniciativas de reformas do sistema político foram tentadas sem sucesso no âmbito do legislativo e do executivo. Com a chegada de Lula à presidência em 2003, renovaram-se essas expectativas de mudanças. Em 2009, o ex-presidente chegou a propor, por meio do Ministério da Justiça, uma reforma política ao Congresso que contemplava propostas como a lista fechada, o financiamento público exclusivo, a proibição de coligações nas eleições para deputado e a fidelidade partidária.

Em 2007, durante o seu 3º Congresso, o PT defende que “a reforma política não pode ser um debate restrito ao Congresso Nacional, que já demonstrou incapaz de aprovar medidas que prejudiquem os interesses estabelecidos dos seus integrantes. Ademais, setores conservadores do Congresso pretendem introduzir medidas como o voto distrital e o voto facultativo, de sentido claramente conservador. O Partido dos Trabalhadores defende que a reforma política deve ser feita por uma Constituinte exclusiva, livre, soberana e democrática.”.

No mesmo documento, o Partido avançava em alguns dos temas considerados estratégicos no debate da reforma, como a “convocação de plebiscitos para decidir questões de grande alcance nacional; a simplificação das formalidades para proposição de iniciativas populares legislativas; a convocação de consultas, referendos e/ou plebiscitos em temas de impacto nacional; o Orçamento Participativo; a correção das distorções do pacto federativo na representação parlamentar; a revisão do papel do Senado, considerando o tempo de mandato, a eleição de suplentes e seu caráter de câmara revisora; a fidelidade partidária, o financiamento público exclusivo de campanhas eleitorais, o voto em lista pré-ordenada, o fim das coligações em eleições proporcionais; o fim da reeleição para todos os cargos majoritários a partir das próximas eleições; e a proibição do exercício de mais de três mandatos consecutivos no mesmo cargo”.

Em 2013, a luta por mudanças no sistema político ganhou novo fôlego no contexto das jornadas de junho e julho. Diante das mobilizações do período, a presidenta Dilma Rousseff propôs a convocação de um processo constituinte específico para a reforma política como um dos cinco pactos nacionais apresentados à população.

A reação à proposta da presidenta provoca no Congresso Nacional a retomada de iniciativas conservadoras de reforma do sistema político. Dentre estas a PEC 352/2013 que, a despeito da posição contrária do Partido dos Trabalhadores e da sua bancada, tem como relator o deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP) e reúne retrocessos como a manutenção do financiamento empresarial, do voto nominal e a inclusão de uma modalidade de voto distrital. No mesmo período, organizações populares do campo e da cidade assumiram a realização de um plebiscito popular e a pauta da constituinte do sistema político, como parte de uma luta mais ampla por reformas democráticas e populares no país.

Como se vê, a mobilização social por uma constituinte não começou por agora e nem se encerrará em setembro, com a realização do plebiscito popular. Ao enfrentar a privatização da política e lutar pela ampliação da democracia direta, da participação popular e da representação política dos trabalhadores, o campo democrático e popular enfrenta nos dias de hoje as mesmas forças políticas que resistiram às conquistas populares na constituinte de 1987-1988.

 

Bruno Elias, Secretário de Movimentos Populares do PT.

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