Soberania, Política Externa e Política de Defesa, por Marcelo Zero

.

Introdução

Já se afirmou, com absoluta razão, que os governos do PT recuperaram o sentido da palavra soberania, no contexto político nacional. Com efeito, em passado recente, o conceito de soberania havia perdido o seu significado real, tendo se convertido praticamente em anátema nos cânones do neoliberalismo tupiniquim.

Enquanto autoridades descalçavam-se, o País passou por intenso processo de desnacionalização econômica, que aumentou a nossa vulnerabilidade externa e reduziu a capacidade do Estado nacional de promover políticas de desenvolvimento e de ciência e tecnologia.

O resultado mais nefasto, contudo, foi a perda de sentido estratégico da política externa e de defesa brasileiras.

Em boa parte da última metade do século passado, tais políticas, implementadas sob a égide do Estado desenvolvimentista, se constituíram num instrumento de afirmação do desenvolvimento do país no plano internacional.

No contexto de tal tipo de Estado, a política externa brasileira buscou a afirmação autônoma do Brasil mediante vigorosas negociações bilaterais, mantendo, no entanto, forte presença nos organismos multilaterais.

A principal preocupação desta política era a de colocar os temas do desenvolvimento, da transferência de tecnologia e da superação das desigualdades entre os países como assuntos centrais das relações internacionais. Ao mesmo tempo, auxiliado pela bipolaridade da Guerra Fria, o Brasil buscava ativamente novos espaços geopolíticos para gerar zonas de influência estratégicas próprias (como a África de língua portuguesa, por exemplo).

No campo específico da defesa nacional, a ideia-força predominante era dotar o País de capacidade de “dissuasão plena” compatível com seu status de “potência média” e de futura grande potência regional. Embora, num primeiro momento, a afirmação estratégica fosse pensada como subsidiária a um dos polos da Guerra Fria, num segundo momento, após a denúncia do Acordo de Cooperação Militar com os EUA, em meado da década de 1970, os militares passaram a propugnar pela construção de um espaço geopolítico próprio e independente para o Brasil.

Dessa forma, gerou-se uma complementaridade entre as políticas externas e de defesa, na busca de uma afirmação dos interesses estratégicos do Brasil no mundo.

Entretanto, a partir da do início da década de 90 (e, em especial, durante as gestões de FHC) o paradigma do Estado desenvolvimentista passou a ser substituído, ao menos parcialmente, pelo paradigma do “Estado normal”, isto é, aquele Estado que tem parâmetros de conduta supostamente semelhantes aos dos Estados “desenvolvidos e modernos”. Um Estado, em síntese, que deixa o mercado agir sem maiores constrangimentos e influências governamentais.

Ora, tal “Estado normal”, ideologicamente neoliberal (seria melhor dizer “paleoliberal”) e politicamente afinado com o Consenso de Washington, tem três condutas básicas:

  • Obediência acrítica às pressões dos centros hegemônicos do capitalismo mundial;
  • Destruição e alienação de núcleos estratégicos da economia nacional, mediante processos de privatização de empresas estatais e compra de empresas privadas nacionais; e
  • Regressão histórica do estágio de desenvolvimento do País, mediante o aprofundamento da desnacionalização das atividades produtivas e a ampliação da dependência tecnológica das empresas nacionais.

No plano específico das relações internacionais, essas condutas básicas resultaram em saldos comerciais negativos, enfraquecimento do Mercosul, aumento da vulnerabilidade externa e redução do protagonismo comercial e diplomático do Brasil.

Na área atinente à defesa, abandonou-se a ideia da “dissuasão plena”, que foi substituída pelo conceito de “dissuasão defensiva”, isto é, pela dissuasão operada apenas em território nacional. Ao mesmo tempo, iniciou-se o processo de sucateamento do aparelho das Forças Armadas e de paralisação ou semiparalisação de vários projetos estratégicos para o País, como o do Veículo Lançador de Satélites (VLS) e do Submarino Nuclear Brasileiro.

Assim, o predomínio do paradigma do Estado neoliberal fez com que a política externa e de defesa brasileiras perdessem consistência estratégica e capacidade de projetar os interesses nacionais no exterior.

Não obstante, os governos do PT conseguiram, em seu ciclo histórico, reverter essa desconstrução estratégica, via inflexões substanciais que se verificaram tanto na política externa quanto na política de defesa.

I- A Política Externa dos governos do PT e sua articulação com as Políticas Internas

Não há dúvida de que o Brasil passou, ao longo dos governos do PT, por transformações extraordinárias, que fazem um agudo contraste com a inércia verificada em períodos históricos anteriores, particularmente o relativo à hegemonia do neoliberalismo no país.

Retirar 36 milhões de pessoas da pobreza extrema, propiciar a ascensão de outras 42 milhões à classe média ou classe trabalhadora, gerar mais de 20 milhões de empregos formais, aumentar a participação de renda trabalho no PIB, diminuir significativamente o nosso índice de Gini, duplicar o número de estudantes universitários, abrir o ensino superior para os mais pobres e os afrodescendentes, multiplicar as escolas técnicas, levar energia elétrica a 15 milhões de brasileiros, implantar o maior programa de habitação popular da história do país, propiciar a inclusão bancária de milhões de cidadãos, voltar a fazer investimentos substanciais em infraestrutura, entre muitas outras realizações, não é algo fácil e trivial.

Não aconteceu por acaso ou por sorte. Não foi mera consequência automática de uma conjuntura internacional favorável, como afirmam alguns.

Assim, a etapa histórica vivida pelo Brasil entre 2003 e 2015 só pode ser consistentemente explicada e entendida, quando levamos em consideração as escolhas políticas que foram feitas desde o início dos governos do Partido dos Trabalhadores.
No plano interno, essas escolhas políticas conduziram a uma substancial redução da pobreza e a uma relativa, porém significativa, desconcentração da renda. Essas duas tendências combinadas deram início à implantação de uma democracia social no Brasil e dinamizaram extraordinariamente o mercado interno de consumo, que se converteu, na realidade, no eixo estratégico e estruturante de um novo processo de desenvolvimento.

Alguns se referem a essa recente etapa histórica como um “novo desenvolvimentismo”, cujo centro dinâmico, em contraste com o desenvolvimentismo concentrador anterior e com o período neoliberal, reside justamente nesse processo célere e intenso de redução da pobreza e de distribuição dos rendimentos.

Mas, embora a característica principal desse “novo desenvolvimentismo” brasileiro seja a transformação do social em eixo estruturante do processo de crescimento e desenvolvimento, com a consequente dinamização do mercado interno, o setor externo foi também de fundamental importância na criação das condições necessárias para a constituição de um novo período de desenvolvimento econômico e social no Brasil.

Com efeito, as políticas adotadas no plano externo pelos governos do PT também deram uma contribuição significativa para a conformação daquela nova etapa histórica no Brasil e provocaram mudança substancial na inserção internacional do país.
Muito embora seja costume se afirmar que a política externa pouco muda, pois ela reflete interesses de longo prazo do Estado-Nação e não anseios imediatos de governos, deve-se considerar que tal assertiva é apenas uma meia verdade.

A política externa, como qualquer política, é instituída com base nos anseios da sociedade aferidos por eleições democráticas. É esse processo democrático periódico que baliza a definição dos interesses de longo prazo do Estado. A política externa nunca existiu num vácuo político. Por isso, é bom assinalar a óbvia redundância de que a política externa é uma política, mutável em sua essência, e não um conjunto de programas e ações definido por uma casta tecnocrática, que se mantém intocada ao longo do tempo.

Ademais, as políticas externas sofrem mudanças significativas em razão das alterações, por vezes profundas e rápidas, que se verificam no cenário mundial e no cenário regional. Uma política externa manietada por diretrizes anacrônicas seria uma política externa desastrosa.

Desse modo, é possível identificar, na análise histórica da política externa brasileira, momentos de inflexão que conduziram a mudanças paradigmáticas. Desde a política de “alinhamento automático” de Dutra até os tempos atuais, passando pela política externa independente e o “pragmatismo responsável”, as diretrizes da inserção internacional do Brasil tiveram câmbios significativos, alguns bem profundos.

Pois bem, acreditamos ser inteiramente correto afirmar que os governos do PT inauguraram uma nova fase histórica da política externa do país. Não se trata apenas de ênfase maior ou menor em conceitos e linhas de ação preexistentes, mas sim de ponto de inflexão que resultou na constituição de novo paradigma balizador da nossa inserção no cenário mundial. Talvez seja exagerado dizer que houve ampla ruptura, mas ocorreu, com certeza, substancial salto qualitativo que deu maior consistência e assertividade ao protagonismo internacional do país.

Em primeiro lugar, a política externa e de comércio exterior dos governos do PT diversificou enormemente nossas parcerias econômicas e comerciais, o que foi de fundamental importância para a superação da vulnerabilidade externa da nossa economia, principal fator de fragilização do país frente ao cenário internacional.

A baixa consistência estratégica da política externa praticada no período anterior aos governos do PT e as políticas internas de ajuste econômico ortodoxo, bem como as relativas à desconstrução do Estado, se retroalimentavam em um círculo vicioso que enfraquecia a capacidade do país de formular e programar diretrizes e ações destinadas à conformação de um novo ciclo de desenvolvimento e de um maior protagonismo internacional do Brasil.

É nosso entendimento que esse círculo vicioso começou a ser quebrado pela política externa e de comércio exterior dos governos do PT, que aumentou extraordinariamente os superávits comerciais, para além do crescimento do comércio mundial e do aumento dos preços das commodities, e, dessa forma, contribuiu decisivamente para a obtenção de uma estabilidade econômica mais consistente no Brasil, que deu amparo macroeconômico ao processo de construção de uma democracia social.

Com efeito, as diretrizes e ações da nova política externa brasileira implantada pelos governos do PT se fizeram sentir, no campo econômico, na geração de volumosos superávits comerciais, os quais foram decisivos para a superação da vulnerabilidade externa de nossa economia e a criação de uma verdadeira estabilidade macroeconômica no Brasil, as quais possibilitaram o surgimento de um novo ciclo de desenvolvimento.

De fato, a geração desses superávits, em agudo contraste com o período do anterior, caracterizado pelo acúmulo de substanciais déficits, foi crucial para reverter o processo de endividamento externo do país e de carência de divisas, amealhar um grande volume de reservas internacionais e tornar o Brasil um credor líquido internacional, inclusive do FMI.

Muito embora esses superávits tivessem sido obtidos em uma conjuntura favorável do comércio internacional, é preciso enfatizar que a participação do Brasil nos fluxos de comerciais superou em muito a média de crescimento do comércio mundial, o que evidencia a competência e o acerto das diretrizes da nova política externa, particularmente no que tange à diversificação das parcerias estratégicas e à ênfase na cooperação Sul-Sul.

Tivessem prevalecido as diretrizes anteriores, que colocavam demasiada ênfase nas relações com os países mais desenvolvidos, especialmente com os EUA, esses superávits não teriam sido tão alentados, uma vez que o crescimento do comércio exterior nos países industrializados foi inferior ao da média mundial. Ademais, os mercados desses países já eram bastante explorados por nossas empresas, que neles enfrentavam (e enfrentam) concorrência muito grande e um sem número de barreiras não-tarifárias, as quais limitavam e limitam, a priori, ganhos substanciais.

O êxito comercial e econômico dessa nova política externa fica mais bem evidenciado com os gráficos abaixo discriminados.

As informações contidas nesses gráficos, assim como informações complementares, demonstram que:

a. As exportações brasileiras cresceram efetivamente num ritmo bem superior à média mundial, no período considerado, muito embora elas tenham parado de aumentar a partir de 2012, em função, principalmente, do progressivo esgotamento do ciclo internacional das commodities, da diminuição do crescimento da China e da grave crise mundial.
b. Esse crescimento extraordinário expandiu nossa participação no comércio mundial, de 0,88%, em 2000, para 1,43%, em 2011, e contribuiu para elevar substancialmente o protagonismo internacional do Brasil.
c. Em relação ao período anterior aos governos do PT, passou-se de uma situação de estagnação ou baixo crescimento das exportações, com altos déficits comerciais, para uma situação de intenso crescimento das exportações, com grandes superávits.
d. O grande aumento das exportações e dos saldos comerciais tem relação com a ênfase na cooperação Sul-Sul, no Mercosul e integração regional e nas parcerias estratégicas com países emergentes, já que os países em desenvolvimento cresceram mais, em média, que os países desenvolvidos.

De especial relevo para nosso bem desempenho comercial e econômico naquele período foi a integração regional, particularmente o Mercosul e a Associação Latino-Americana de Integração (Aladi), tão desprezados por nossos conservadores.

No período considerado, o Mercosul nos deu um extraordinário saldo positivo de mais de US$ 90 bilhões, sendo que com a Aladi, que o inclui, tivemos um saldo de US$ 137, 2 bilhões. Com outras regiões, tivemos um saldo mais modesto. Observe-se que, se somarmos os saldos dos BRICS, da União Europeia e dos EUA, temos um saldo acumulado de aproximadamente US$ 120 bilhões. Portanto, a Associação Latino-Americana de Integração, cujo principal bloco é o Mercosul, nos deu um saldo positivo superior ao obtido com os EUA, a União Europeia e os BRICS, combinados.

Mas a principal característica de nossos fluxos comerciais com o Mercosul e a Aladi tange ao grande percentual de produtos manufaturados que exportamos para a região. Com efeito, esse dinamismo do Mercosul e da integração regional tem, para o Brasil, uma vantagem qualitativa e estratégica. É que as exportações brasileiras para o bloco são, em mais de 90%, de produtos industrializados, com alto valor agregado. Exportamos para o bloco automóveis, máquinas agrícolas, material de transporte, celulares, etc. Em contraste, no que tange às nossas exportações para a União Europeia, a China e os EUA, os percentuais de manufaturados são de 36%, 5% e 50%, respectivamente. Assim, o Mercosul compensa, em parte, a nossa balança comercial negativa da indústria.

Todos esses dados mostram como mudou o perfil do nosso comércio exterior. Antes, tínhamos um fluxo de comércio muito concentrado em países desenvolvidos. Já no ciclo dos governos do PT, aproveitando-nos bem das mudanças ocorridas na geoeconomia mundial, que beneficiaram os países emergentes, tivemos um fluxo de comércio mais robusto com os países em desenvolvimento, os quais ainda mantêm um dinamismo econômico maior, nessa conjuntura de crise mundial.

Isso pode ser claramente observado nos dois gráficos, a continuação.

Por conseguinte, apesar das críticas, frequentemente reproduzidas na mídia tradicional brasileira, de que a política externa do PT era “ideologizada” e “terceiro-mundista”, o fato concreto é que tal política foi pragmaticamente bem-sucedida em todos os níveis.

O Brasil aproveitou bem as mudanças ocorridas na geoeconomia mundial e, mediante as novas diretrizes de sua política externa, reverteu sua vulnerabilidade externa e sua fragilização econômica e diplomática e investiu exitosamente na integração regional, na cooperação Sul-Sul e na grande diversificação de suas parceiras econômicas, comerciais e estratégicas, com ganhos evidentes em seu protagonismo internacional.

Obviamente, esse êxito pragmático teria sido muito mais difícil de ser obtido, caso o mundo não tivesse passado por transformações tão significativas em sua geoeconomia e geopolítica. O maior dinamismo econômico dos países emergentes, vis à vis os países mais desenvolvidos, levou-os a ter uma participação bem maior no comércio mundial.

No gráfico acima descriminado, elaborado com base nos dados coletados pelo FMI, há duas grandes tendências de crescimento econômico: a relativa aos países desenvolvidos (em azul) e a relativa aos países emergentes (em vermelho). Pois bem, vê-se claramente que, a partir do final dos anos 90 e início deste século, há um nítido descolamento entre essas duas linhas de tendência. Os países emergentes passam a apresentar um crescimento substantivamente mais intenso que o dos países desenvolvidos.

Isso provocou uma profunda mudança geoeconômica no mundo. A China e outros países em desenvolvimento, como Brasil, Índia, etc. adquiriram um protagonismo econômico muito maior. Obviamente, esse maior protagonismo abriu novas e grandes janelas de oportunidades para o Brasil, especialmente no campo do comércio exterior. Deve-se levar em consideração que, devido a esse crescimento maior, os países emergentes e em desenvolvimento aumentaram muito a sua participação no comércio mundial.

Em 1980, os países em desenvolvimento respondiam por somente um terço do comércio global. Hoje, tal participação já se aproxima da metade (48%, em 2014), graças, em boa parte, ao grande crescimento econômico e comercial verificado neste século. Por conseguinte, a aposta da nova política externa brasileira dos governos do PT na vertente estratégica Sul-Sul mostrou-se pragmaticamente muito acertada, tendo acompanhado as grandes tendências geoeconômicas e geopolíticas mundiais.

Mas a contribuição da política externa não se esgotou no campo econômico-comercial. Ela também foi fundamental para aumentar o protagonismo internacional do País e contribuir para tornar a ordem mundial mais permeável aos interesses dos países em desenvolvimento.

Com efeito, a ênfase da nova política externa na cooperação Sul-Sul, na integração regional e no fortalecimento do Mercosul, na articulação dos países em desenvolvimento em negociações da OMC, na transformação do antigo G-8 no G-20, na construção de parcerias estratégicas com os BRICS, entre outras diretrizes, foi decisiva para melhor projetar os interesses nacionais no plano externo, abrindo um espaço anteriormente inexistente, bem como para tornar os interesses dos países emergentes, e de suas populações destituídas, mais visíveis e presentes nos foros mundiais.

Ademais, esses avanços serviram também para tornar o nosso subcontinente uma área mais capacitada para resolver seus próprios conflitos e, portanto, menos propensa a sofrer intervenções indevidas de potências externas, como ocorria, de forma recorrente, no período da arcaica lógica bipolar da Guerra Fria. Para tanto, foi de relevo especial a criação do Conselho de Defesa, no âmbito da Unasul.

No plano multilateral, a criação do G20, na OMC, a transformação do antigo G8 no G20 ampliado, a paciente e firme construção de parcerias estratégicas com países emergentes e a ênfase na cooperação Sul-Sul, além dos avanços econômicos e sociais internos, contribuíram para elevar substancialmente o protagonismo internacional do Brasil.

A articulação bem-sucedida no BRICS, em particular, teve efeito substancial na geração de um polo de poder que serve de contrapeso à hegemonia da única superpotência do planeta e à sua pretensão de construir uma ordem internacional unipolar, bem como no estímulo à conformação de um mundo mais centrado no multilateralismo e menos assimétrico.

Observe-se que os BRICS têm 42% da população mundial e 26% do território do planeta. São responsáveis por 23% da economia mundial e 15% do comércio internacional. Não bastasse, eles detêm 75% das reservas monetárias internacionais. Além disso, os BRICS foram responsáveis por 36% do crescimento da economia mundial, na primeira década deste século. Com a recessão nos países mais desenvolvidos, esse número pulou para cerca de 50%, mesmo com a desaceleração recente do crescimento desse bloco.

O bloco do BRICS concretizou seu próprio banco de investimentos, o Novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS (NDB), e seu próprio Arranjo de Contingente de Reservas (CRA) para ajudar países em dificuldades.

Esses dois arranjos financeiros não surgiram por acaso. Eles surgiram de uma necessidade: as velhas instituições multilaterais, criadas no longínquo ano de 1944, em Bretton Woods, o FMI e o Banco Mundial, já não conseguem lidar com os desafios postos pela nova geoeconomia mundial. A UNCTAD, agência especializada da ONU para o comércio e o desenvolvimento, estima que os países em desenvolvimento precisariam de US$ 1 trilhão para aprimorar a sua infraestrutura. FMI e Banco mundial são incapazes de responder a esse desafio. Afinal, trata-se de instituições esclerosadas, cuja governança não incorpora os interesses e os anseios dos novos atores globais.

A participação ativa do Brasil nesse e em outros foros internacionais de relevo, tornou o país um interlocutor imprescindível, de grande representatividade e legitimidade.

Com efeito, nos tempos dos governos do PT era impossível se pensar na discussão de quaisquer temas mundiais sem a participação do Brasil como interlocutor de primeira linha. O nosso país tinha atuação decisiva em todos os foros e foi de fundamental importância na transformação do G8 em G20 e no enfrentamento global da crise financeira.

Um ponto em que a nova política externa do PT foi de extremo relevo tange à reversão do processo de fragilização do país propiciado pela política externa anterior. Assim, a nova política externa desmontou a armadilha criada com as negociações da ALCA, que ameaçava submeter o Brasil a uma dependência definitiva e extremamente danosa, sepultou de vez o famigerado Acordo de Alcântara, que colocava o programa espacial brasileiro na órbita do programa espacial norte-americano e impedia, na prática, o desenvolvimento do nosso veículo lançador, e rejeitou os acordos bilaterais de promoção e proteção recíproca de investimentos firmados no modelo da OCDE, que continham obstáculos praticamente intransponíveis à implantação de políticas autônomas de industrialização e desenvolvimento.

O círculo vicioso anterior de aumento da fragilidade econômica e diminuição do protagonismo internacional foi substituído por um círculo virtuoso de fortalecimento econômico-social e incremento da projeção de nossos interesses no exterior.
De uma forma bastante sintética, podemos contrastar as políticas externas do período da hegemonia do paradigma neoliberal com este novo período dos governos do PT com os comentários feitos a seguir.

No período neoliberal, a adesão aos ditames do Consenso de Washington e aos imperativos da globalização assimétrica, levou o país a:
a) Colocar a relação bilateral com os EUA como seu eixo estruturante básico. O relacionamento com a superpotência única deveria ser prioridade, já que o acesso exitoso à nova ordem mundial dependeria, obviamente, da adoção de ações e políticas consentâneas com os interesses dos EUA. A inserção multilateral adviria essencialmente das diretrizes surgidas nessa relação bilateral.
b) Dar prioridade à dimensão Norte-Sul de seu relacionamento exterior, em detrimento da dimensão Sul-Sul. O eixo vertical da política externa passaria a predominar sobre o seu eixo horizontal. Uma vez que a prosperidade adviria essencialmente da ampliação do comércio com os países desenvolvidos e da capacidade de atrair investimentos externos oriundos das nações detentoras de capital, era vital orientar a política externa em relação ao Norte industrializado.
c) Substituir a busca do que convencionou chamar na época de “autonomia pela exclusão”, suposta consequência do desenvolvimento relativamente autônomo ditado pelo paradigma do Estado Desenvolvimentista, pela busca da “autonomia pela integração”, isto é, pela inserção do país nos cânones emanados da nova ordem internacional.
d) Aderir às instituições e aos tratados que, em âmbito multilateral, regional ou bilateral, conformavam institucional e juridicamente a nova ordem mundial.

Já no período dos governos do PT, houve forte mudança de inflexão da nossa política exterior, a qual passou a apresentar as seguintes características básicas:

a) A promoção do desenvolvimento nacional relativamente autônomo, agora matizada pela forma de atuação do Estado do novo desenvolvimentismo, passa a ter de novo centralidade na condução da política exterior.
b) A superação da vulnerabilidade externa da economia se torna prioridade absoluta e o país, como no passado pré-neoliberalismo, busca ativamente obter vultosos superávits comerciais.
c) O comércio exterior que, no quadro do ajuste externo, havia se convertido em uma variável dependente da política de combate à inflação e de estabilidade monetária, voltou a ser colocado a serviço do estímulo à produção interna e à geração de empregos e divisas.
d) O objetivo da “governança global”, de matriz nitidamente idealista e neokantiana, é substituído pelo objetivo mais realista da promoção de uma ordem mundial multipolar, que crie maiores oportunidades para os países emergentes e supere os estrangulamentos do unilateralismo.
e) O eixo horizontal (Sul-Sul) passa a ter prioridade, sem que se abandonem as relações do eixo vertical (Norte-Sul). Na realidade, esses dois eixos são conduzidos articuladamente, evitando-se antigos pseudodilemas.
f) A matriz multilateralista da política externa não é abandonada, porém passa a ser matizada por um forte regionalismo e por um ativo bilateralismo.
g) Ao princípio da “não-intervenção” é agregado o princípio da “não-indiferença”, o qual pavimenta uma participação mais ativa do Brasil em questões mundiais, especialmente hemisféricas, como nos exemplos da missão da ONU no Haiti e da defesa da democracia em Honduras.
h) As relações com os EUA, após a grande frustração dos anos 90, são colocadas em um patamar mais realista e menos “ideologizado”, sendo conduzidas em base pragmática, calcada na negociação soberana de interesses concretos.
i) Há renovada ênfase no Mercosul, inclusive com a recuperação de seu sentido estratégico, e na integração da América do Sul.
j) A “autonomia pela integração” é substituída pelo o que se denominou de “autonomia pela diversificação”1, isto é, pela busca ativa de novas parcerias e espaços econômico-comerciais e político-diplomático.
k) Contrastando vivamente com o governo anterior e de forma consentânea com a busca de um maior protagonismo para o Brasil, a estrutura do Itamaraty foi consideravelmente fortalecida. Ampliaram-se significativamente as vagas para os concursos públicos de diplomatas, estabeleceram-se regras mais transparentes e consistentes para as promoções, foram melhorados os rendimentos em todos os escalões e, ainda mais importante, robusteceu-se substancialmente a nossa rede consular e de embaixadas.

Essa extraordinária inflexão tornou a política externa um fator de grande peso na constituição e manutenção desse novo processo histórico de desenvolvimento pelo qual passou o Brasil em período recente. Além das políticas internas, particularmente as de redução da pobreza e de distribuição da renda, a política externa também foi dos grandes sustentáculos do que convencionou chamar de “novo desenvolvimentismo”, que se verificou no ciclo histórico dos governos do PT.

Assim como o “novo desenvolvimentismo” estruturou-se, no plano interno, na distribuição de renda, na eliminação da pobreza e na consequente dinamização do mercado interno de massa, no plano externo esse novo processo de desenvolvimento refletiu-se na busca incessante de novos espaços econômicos e comerciais para o país, no investimento na integração regional, no estímulo aos vetores endógenos do desenvolvimento, na articulação dos interesses dos países em desenvolvimento no cenário mundial, na busca de uma ordem multipolar e na redução das assimetrias políticas, econômicas e comerciais entre as nações.

Instituiu-se um círculo virtuoso entre as políticas internas distributivas, que contribuíram decisivamente para desenvolver socialmente o país e torná-lo economicamente mais forte e sólido, e a política externa, que contribuiu para manter país menos vulnerável a choques externos e melhor projetar os interesses do Brasil no cenário mundial.

As políticas internas distributivas e desenvolvimentistas criaram uma base sólida para uma projeção mais assertiva dos interesses do país no exterior, e a política externa, por sua vez, retroalimentou o desenvolvimento interno, ao diversificar e ampliar nossas parcerias internacionais, estimular o desenvolvimento econômico e tecnológico, promover intensamente a integração regional e articular os interesses comuns de países em desenvolvimento.

O pressuposto implícito era o de que o papel do Brasil no cenário mundial não apenas refletia o modelo de nação que se pretendia construir internamente, mas também contribuía para reforçá-lo e consolidá-lo, criando as condições propícias para a projeção soberana de nossos interesses no exterior.

Nesse sentido, esse “novo desenvolvimentismo”, embora contivesse elementos nacionalistas, em virtude de sua ênfase política na soberania nacional e na busca de autonomia, é decididamente mais “internacionalista” e integrador que o velho desenvolvimentismo, pois apoiava a construção da Nação na integração regional, numa diversificação cada vez maior de parcerias comerciais e diplomáticas e na articulação dos interesses dos países emergentes nos foros globais.

De fato, a política externa brasileira implantada nos governos do PT, procurou, desde o início, recuperar o histórico sentido estratégico de promoção do desenvolvimento nacional sustentado e de elevação do protagonismo do Brasil no cenário mundial. Embora ligada aos objetivos históricos embutidos no paradigma do Estado Desenvolvimentista, essa política desenvolveu-se sob a égide do Estado que promovia ativamente, e de forma pragmática e racional, a maior e melhor inserção do país num cenário mundial em profunda transformação.

A diferença é que, nesse novo quadro, o país não retrocede à proteção econômica típica da era da substituição de importações, mas, ao contrário do que acontecia no período em que vigia o paradigma neoliberal do Estado Mínimo, procura inserir-se de forma mais dinâmica, planejada e consistente na globalização econômica e na ordem política mundial, a partir da identificação precisa e ampla dos interesses e das potencialidades nacionais.

Não havia mais a precipitação ingênua na adesão célere e incondicional à “globalização” e à “nova ordem mundial”, antes motivada por ideologias em crise ou por pressões de outros países. Porém, houve, sim, uma atuação diversificada e ampla no cenário mundial, que promoveu a integração regional, as parcerias estratégicas com outros países emergentes e a busca de uma ordem mundial mais simétrica, configurando nova relação virtuosa entre o fortalecimento econômico e social do país e seu maior protagonismo no plano mundial.

Essa nova relação entre as políticas internas e a política externa e entre a ordem nacional e a ordem internacional impulsionou o Brasil como um ator internacional de relevo.

II- A Importância Política de Defesa Nacional para os Interesses Estratégicos do Brasil, seu Desenvolvimento Econômico, Científico e Tecnológico e a Inflexão Verificada nos Governos do PT

A projeção dos interesses de um país no complexo e competitivo cenário mundial dá-se, essencialmente, de duas formas: pela política externa e pela política de defesa.

Assim, a plena projeção dos interesses estratégicos do Brasil no cenário internacional, embora dependa de uma política externa consistente, não pode prescindir, também, de uma política de defesa sólida.

Com efeito, um país das dimensões geográficas, demográficas e econômicas do Brasil não pode prescindir de uma política defesa eficiente. Mesmo no contexto de uma região pacífica, como a América do Sul, o Brasil, pela abundância de seus recursos estratégicos (água doce, biodiversidade, terras, pré-sal, etc.) e por sua recente projeção geopolítica internacional, desperta cobiça e rivalidades que tem de ser neutralizadas.

Entretanto, ao longo dos governos do neoliberalismo, colocou-se ênfase exclusiva na persuasão diplomática como instrumento para alcançar os objetivos estratégicos do país, no cenário internacional.

Sem dúvida alguma, a persuasão diplomática deve ser o meio principal de afirmação dos interesses das nações, principalmente das nações pacíficas, como o Brasil. No entanto, é forçoso reconhecer que tal persuasão funciona de forma mais eficaz quando complementada pela dissuasão estratégica.

Para Geraldo Lesbat Cavagnari Filho, a Política de Defesa dos governos do PSDB foi destituída de consistência estratégica, dada à centralidade exclusiva da persuasão diplomática em seu governo. Segundo esse importante teórico brasileiro:
Assim, no contexto das relações de força, ela (a persuasão diplomática) se apresenta como a única linha de resistência. Ou seja, ela descarta a força militar do jogo político-estratégico ao desqualificar a ação militar como substituto da ação diplomática.

Em consequência, a política de defesa não enfatiza o emprego da força como a possível segunda linha de resistência, na perspectiva de a ação militar substituir, se necessário, a ação diplomática. Essa falta de clareza poderá ser prejudicial aos interesses do País no momento da decisão – porque, tecnicamente, a força militar deve ser preparada para a defesa de tais interesses, onde eles estiverem ameaçados. Não importa que, em dado momento – ou por longo tempo –, o Brasil não possa empregar a força, quando necessário, na defesa dos seus interesses. Mas ele não deve perder, jamais, a perspectiva desse emprego.

Ora, a implementação de política de defesa consistente e a criação de capacidade dissuasória adequada às ambições e à grandeza do Brasil, passam, necessariamente, pelo reaparelhamento e treinamento adequados das nossas Forças Armadas.

Nos tempos neoliberais da década de 1990, Brasil renunciou, mediante a ratificação de vários tratados internacionais, entre eles o TNP, a desenvolver armas de destruição em massa, fossem elas nucleares, químicas ou biológicas. Mas o Brasil não renunciou e jamais poderá renunciar a ter força convencional ágil, profissional e capaz de promover a dissuasão estratégica. Trata-se de condição sine qua non para um país que reúne os elementos necessários para tornar-se uma grande liderança regional e mundial e para construir um espaço geopolítico próprio.

Como assinalou o ex-ministro das Relações Exteriores e ex-ministro da Defesa Celso Amorim:

Não se pode ser a sétima economia, ser membro do BRICS e do G-20, ter toda a importância que o Brasil assumiu e não ter Forças Armadas devidamente equipadas. A existência de forças equipadas e adestradas fortalece a capacidade diplomática e minimiza a possibilidade de agressões, permitindo que a política de defesa contribua com a política externa voltada para a paz e o desenvolvimento.

Em razão do referido período de desconstrução e desinvestimentos na área da defesa, ainda temos, neste campo, vulnerabilidades, as quais se expressam num déficit de meios operacionais e materiais militares para defender o país de eventuais agressões e proteger seu patrimônio, que é um dos mais ricos do planeta: reservas de água potável, biodiversidade, recursos minerais, terras férteis aptas à produção de alimentos, e fontes de energia diversificadas, como as recentes descobertas da camada do pré-sal. Saliente-se que esses ativos estratégicos não estão a salvo de cobiça de potências estrangeiras.

Não obstante, a principal vulnerabilidade que temos hoje, nesse campo, tange à inexistência de uma Base Industrial e Tecnológica de Defesa (BITD) capaz de aparelhar adequadamente as Forças Armadas.

A BITD é elemento essencial da postura estratégica e de defesa de um Estado. A importância da BITD advém tanto de seu caráter estratégico, decorrente da produção dos equipamentos de defesa do país, essenciais para garantir a defesa e sua autonomia, como de seus aspectos econômicos, que estão relacionados ao domínio de tecnologias sensíveis, muitas com caráter dual, e à geração de inovação, de empregos de alta qualificação e de exportações de elevado valor agregado.

A BITD é fator fundamental do que o ex-ministro da Defesa, Embaixador Celso Amorim, chamava de “Grande Estratégia”, que realça a articulação das políticas externa e de defesa. Remete igualmente a outro projeto estratégico do Estado: seu modelo de desenvolvimento. A BITD pode e deve ser um pilar central de um novo projeto de desenvolvimento focado na indústria de alta tecnologia e na inovação, sob indução e atento acompanhamento do Estado.

A esse respeito, deve-se assinalar que, em boa parte dos países desenvolvidos, a indústria vinculada à defesa nacional, inclusive a aeroespacial, é a grande propulsora do desenvolvimento científico e tecnológico nacional. De fato, na Rússia, na França, nos EUA, no Reino Unido, etc., a indústria de defesa tem sido fonte inesgotável de inovação tecnológica. A maioria delas é de uso dual, isto é, tem também uso civil, de modo que se espraia por vastos setores da indústria, num processo conhecido como spill-over, que aumenta a competitividade geral da economia.
Além disso, a indústria de defesa tem, em muitos países, uma expressão econômica substancial. Na Rússia, por exemplo, ela emprega cerca de 20% dos trabalhadores da indústria. Nos EUA, a indústria de defesa emprega ao redor de 3 milhões de trabalhadores, inclusive com muitos postos de trabalho de alta sofisticação.
Outro aspecto a ser considerado nessa importância da indústria de defesa tange ao fato de que ela, em geral, tem um comportamento contracíclico, que ajuda a arrefecer recessões em períodos de crise. Assim, mesmo nesse período de crise mundial, o Departamento de Estado dos EUA continua a demandar mais de US$ 1 bilhão de bens e serviços por dia. Lembre-se que a Grande Depressão de 1929 só foi definitivamente vencida, nos EUA, com os gastos efetuados pela indústria de defesa, ao longo da Segunda Guerra Mundial.
No caso do Brasil, a Base Industrial de Defesa começou a ser construída na década de 1960, com a criação da Embraer, Avibrás e muitas outras empresas, e teve seu auge nos anos 1980. Naquela época, essa base industrial supria em 90% as demandas das Forças Armadas com produtos de média e baixa tecnologia. Além disso, entre 1985 e 1986, o Brasil se tornou o nono exportador mundial de armamentos, com valores anuais em torno de US$ 2 bilhões.

Entretanto, com a crise da dívida e, posteriormente com o advento do paradigma neoliberal, essa base industrial foi sucateada, já que ela depende de investimentos estatais, e muitas empresas estratégicas, como a Engesa, por exemplo, entraram em colapso e foram à falência. Com isso, as Forças Armadas passaram a depender, para seu reaparelhamento, da compra de produtos estrangeiros, principalmente produtos usados e geralmente obsoletos.

Nos governos do PT, contudo, começou a se dar prioridade renovada à construção de uma Base Industrial de Defesa, a qual, em conjunto com o reaparelhamento das forças armadas, se constituiria no pilar estratégico central da defesa do Brasil.

Estimava-se que o governo deveria investir centenas de bilhões de reais nas próximas décadas em um conjunto de programas de reaparelhamento voltado para a modernização e o fortalecimento da estrutura de defesa (Plano de Articulação e Equipamento de Defesa [Paed]). A implementação desse plano seria fundamental para a posição que o Brasil almeja conquistar no cenário econômico e político.

Entre os programas principais previstos e desenvolvidos, estavam o Programa de Desenvolvimento de Submarinos da Marinha do Brasil (Prosub), o Projeto HX-BR (programa de helicópteros), o Projeto FX-2 (caças), o Subprojeto de Obtenção de Meios de Superfície (Prosuper) (embarcações de superfície), o Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (Sisfron) e o Sistema de Gerenciamento da Amazônia Azul (SisGAAz) (monitoramento da costa).

Em razão da necessidade de reaparelhar as Forças Armadas e de dar impulso a esses programas estratégicos da defesa nacional, os governos do PT conseguiram ampliar, de forma significativa, os orçamentos da defesa, como se observa no gráfico a continuação.

Além disso, foram tomadas várias medidas institucionais para se atingir o objetivo de dotar o país de uma Base Industrial de Defesa sólida.

Em 2005, foi lançada a nova Política de Defesa Nacional (PDN), que conferiu especial destaque à capacitação na produção de materiais e equipamentos com alto valor agregado em tecnologia, com vistas a diminuir a dependência externa do país nessa área estratégica.

Por sua vez, a Estratégia Nacional de Defesa (END), lançada em 2008, estabeleceu a “revitalização da indústria de material de defesa” como um dos três eixos estruturantes para a defesa do país, ao lado da reorganização das Forças Armadas e de sua política de composição dos efetivos. Dessa forma, a Estratégia afirmou o vínculo indissociável entre defesa e desenvolvimento. A BITD passou a ser vista como indutora de inovações tecnológicas com aplicações civis. A END também estimulou o desenvolvimento tecnológico independente, especialmente nos setores nuclear, cibernético e espacial.

Em 2011, com o lançamento do Plano Brasil Maior (PBM), reforçou-se o desenvolvimento tecnológico da defesa nacional. O PBM visava o aumento da competitividade da indústria nacional, mediante incentivos à inovação e à agregação de valor. Nesse sentido, o PBM escolheu o complexo industrial de defesa como um dos programas estruturantes em áreas estratégicas.

Com essas iniciativas, pretendia-se utilizar a capacidade de investimento estratégico do país para a reorganização e fortalecimento da indústria nacional de defesa.

Essas iniciativas internas foram complementadas, no plano internacional, com o estabelecimento de parcerias na área de defesa. A parceria estratégica com a França, por exemplo, é de vital importância para o desenvolvimento do submarino nuclear. Já a parceria estabelecida com a Suécia, é crucial, como se sabe, para o desenvolvimento do novo caça do Brasil.

Tal conjunto de iniciativas, tanto internas quanto externas, apontava para a construção de uma Base Industrial de Defesa diversificada, que daria suporte ao reaparelhamento adequado de nossas Forças Armadas e ao desenvolvimento tecnológico nacional.

Não obstante, é preciso considerar que essa construção, alicerçada em projetos estratégicos complexos, demandava longo tempo de maturação e consolidação. Infelizmente, esse tempo histórico considerável foi interrompido, em tempos recentes, pelo golpe parlamentar, comprometido com a implantação de uma agenda ultraneoliberal no Brasil.

Tal agenda regressiva, antipopular e antinacional compromete seriamente essa construção, bem como outras vertentes do projeto político dos governos do PT, que buscava a criação de um país justo, democrático e soberano.

III- Algumas Palavras sobre o Desmonte da Soberania pelo Golpe e sua Agenda

a) A Volta a Um Brasil Colônia

O golpe desencadeou uma série de ações e medidas que colocam em xeque a soberania, o patrimônio e a economia nacionais.

A venda, a preços aviltados, das jazidas do pré-sal, sem a participação da Petrobras como operadora única, aliena nossa capacidade de investir nas gerações futuras, como era o intento dos governos do PT. O fim da política de conteúdo nacional leva desespero e desemprego a vastos setores produtivos, especialmente à indústria naval. O impedimento do BNDES de emprestar cria grave entrave à retomada dos investimentos. A ofensiva geral contra o crédito público e os bancos públicos coloca obstáculo praticamente intransponível à retomada do crescimento, pois a banca privada não vai fornecer crédito numa situação de insegurança política e recessão econômica.

O desmonte da política externa “ativa e altiva”, particularmente do Mercosul, da Cooperação Sul-Sul e do BRICS, apequena o país e destrói um mercado externo importante para nossa indústria. A retomada das negociações para o uso da Base de Alcântara pelo EUA, nos termos assimétricos propostos por aquele país, ameaça o projeto do veículo lançador de satélites e o programa espacial brasileiro. A Lava Jato partidarizada, por sua vez, destrói a construção civil pesada nacional, a exportação de obras brasileiras para o exterior e assesta golpe mortal contra o projeto do submarino nuclear e vários outros projetos estratégicos da defesa nacional.

Até mesmo o território, base do Estado-Nação, está em perigo. A anunciada medida legislativa que permitirá a venda, em grande volume, de terras a estrangeiros para “atrair investimentos” suscita dúvidas sobre o domínio que o país poderá preservar sobre vários recursos estratégicos, como energia, alimentos e água.

A verdade é que tudo isso demonstra que o golpe tem como estratégia econômica o crescimento baseado no investimento privado estrangeiro, que aplicaria seu dinheiro essencialmente na compra de nossos recursos naturais (petróleo, terras, água, biodiversidade, etc.) e na privatização selvagem do patrimônio público. E demonstra também que o golpe tem como estratégia geopolítica colocar o Brasil, de novo, na órbita dos interesses dos EUA e aliados.

É a volta a uma espécie de Brasil colônia, que passaria a se integrar às “cadeias internacionais de valor” somente como produtor de commodities para as metrópoles ou como hóspede de “maquiladoras”, como o México.

Tal regressão imporá graves limitações à defesa nacional e a inserção soberana no Brasil no cenário mundial.

b) Repercussões na Política de Defesa

Os referidos projetos estratégicos para defesa do Brasil e o desenvolvimento nacional estão agora em perigo, com a Emenda Constitucional nº 95, de 2016, que congelou as despesas primárias por longos 20 anos. Nas simulações realizadas, os investimentos deverão sofrer contrações brutais, pois a despesas constitucionais obrigatórias, somadas ao aumento populacional, deverão aumentar substancialmente, nos próximos anos.

Mesmo supondo que os gastos com defesa não sofram contração ao longo desse período, uma hipótese altamente improvável, seu mero congelamento implicará, supondo que o Brasil volte crescer a uma média anual de 2,5%, um decréscimo substancial do gasto como percentual do PIB. Assim, cairíamos de 1,4% do PIB, para 0,85% do PIB.

Como se vê, apenas 10 anos depois da entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 95, já estaríamos gastando apenas a metade, como percentual do PIB, daquele mínimo que apregoavam Celso Amorim e outros estrategistas como gasto essencial para a defesa, ou seja, cerca de 2% do PIB. Considere-se, adicionalmente, que chegamos a esse número supondo um crescimento médio muito baixo do nosso PIB.

Na hipótese de um crescimento maior do PIB, ao longo do período de vigência da PEC, esses números seriam bem piores. Supondo, por exemplo, um crescimento médio de 3,5% ao ano do PIB, que ainda é baixo, chegaríamos a 2026 gastando menos de 0,8% do PIB e a 2036 com um gasto em defesa de 0,6% do PIB.

Além desse dano que a Emenda Constitucional nº 95, de 2016 inevitavelmente ocasionará à Estratégia Nacional de Defesa, é preciso analisar também que a Lava Jato vem causando prejuízos consideráveis à Base Industrial de Defesa.

Com efeito, todas as firmas que vêm sendo paralisadas e fragilizadas pela Lava Jato desempenham papel crucial nessa Estratégia e nessa Base Industrial, já que estão fortemente presentes nos grandes projetos da área.

Dessa forma, o Grupo Odebrecht, o Grupo Andrade Gutierrez, o OAS e o Queiroz Galvão têm relevante participação na indústria bélica e são os mais importantes agentes empresariais brasileiros da Estratégia Nacional de Defesa, que se assenta em firmas privadas.

A Construtora Norberto Odebrecht, que, através da Odebrecht Defesa e Tecnologia, controla as empresas responsáveis pela fabricação do submarino nuclear brasileiro, é, como se sabe, um dos principais alvos da Lava Jato.

Ademais, no campo específico da energia nuclear, a prisão do Almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva, considerado o pai do programa nuclear brasileiro, lançou suspeitas injustas sobre um projeto nos dá o domínio do ciclo atômico. Se isso não representa grave prejuízo geoestratégico, não sabemos mais o que poderia representar.

Não temos dúvida de que a combinação da Lava Jato, que está destruindo o braço empresarial da Estratégia Nacional de Defesa, com a Emenda Constitucional nº 95, de 2016, que reduzirá drasticamente o investimento estatal nessa área, poderá fazer o Brasil retroceder à década de 1990, quando a tônica dada pelo neoliberalismo era a do desarmamento do país.

Ademais desses fatores econômicos, é preciso lembrar que o Exército dos EUA participou, a convite do governo brasileiro, de um exercício militar conjunto que foi realizado, em novembro de 2017, na tríplice fronteira amazônica entre Brasil, Peru e Colômbia. Tal fato revela um fator político preocupante para a soberania nacional, no campo da defesa e da indústria de defesa.

Tratou-se de uma decisão inédita na história militar recente do Brasil, que causa estranheza. O nosso país, até o presente governo ilegítimo, vinha investindo na gestão soberana da Amazônia, em parcerias com países da América do Sul, estabelecidas em mecanismos de cooperação regionais, particularmente os da Unasul e os da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). Assim, esse convite a uma superpotência estrangeira, que não faz parte da Bacia Hidrográfica da Amazônia, representa um “ponto fora da curva”, na tradição de afirmação da soberania nacional numa região estratégica para o país.

Na realidade, esses exercícios vêm na esteira de uma série de iniciativas bilaterais que fazem parte de uma estratégia do governo ilegítimo de reaproximação subalterna aos EUA, tanto no campo da política externa, quanto no campo da política de defesa.

Nesse diapasão, o Ministério da Defesa do Brasil e o Departamento de Defesa dos EUA assinaram o Convênio para Intercâmbio de Informações em Pesquisa e Desenvolvimento, ou MIEA (Master Information Exchange Agreement), na sigla em inglês. Com tal decisão, o governo do golpe investirá na cooperação com os EUA, como forma de “desenvolver” nossa indústria de defesa. Na prática, isso significa renunciar a ter real autonomia no campo do desenvolvimento industrial e tecnológico da defesa nacional.

Ao que tudo indica, setores das Forças Armadas, hoje hegemônicos com o golpe, renunciaram ao desenvolvimento tecnológico relativamente autônomo e, agora, apostam numa relação de dependência com os EUA para o seu reaparelhamento.

No mesmo sentido, a renegociação do famigerado Acordo de Alcântara com os EUA, que impediria o desenvolvimento do nosso veículo lançador, denuncia a retomada de uma nova relação de dependência com aquele país.

c) Repercussões na Política Externa

Com vimos, nos anos pré-golpe, a política externa “ativa e altiva” dos governos progressistas alterou profundamente a inserção internacional do país. As relações bilaterais foram diversificadas, ampliaram-se as parcerias estratégicas com países emergentes, investiu-se mais na integração regional e a cooperação Sul-Sul adquiriu centralidade. Concomitantemente, abandonou-se a ideia ingênua de que a submissão aos desígnios da única superpotência e a inclusão acrítica no processo de globalização nos faria aceder a um Brave New World de independência e prosperidade. Enterrou-se a agenda regressiva da ALCA ampla e assimétrica, e o Brasil passou a criar espaços próprios de influência, articulando-se com outros emergentes em foros como o BRICS.

Agora, a agenda internacional do golpe, aproveitando-se da crise, pretende rever tudo isso. Desse modo, se multiplicam as pressões para que o Brasil assine, o mais rapidamente possível, acordos de livre comércio assimétricos semelhantes à finada ALCA, como o Acordo Comercial Transpacífico (TTP) e o Acordo Transatlântico de Comércio e Investimentos (TTIP), abandone o Mercosul e a integração regional e dê baixa prioridade ao BRICS e outros foros que conduzem a um mundo mais multipolar e menos assimétrico.

Saliente-se que a adesão do Brasil àqueles acordos de “nova geração”, sob a desculpa da necessidade do país se inserir “nas cadeias globais de valor”, dificultaria a possibilidade de implantarmos políticas de desenvolvimento e de ciência e tecnologia, tal como já aconteceu com o México. De fato, tais acordos contêm regras relativas à propriedade intelectual, compras governamentais, investimentos, serviços etc., que destroem mecanismos que permitem a adoção de medidas de estímulo ao desenvolvimento nacional, à industrialização e à promoção da ciência e tecnologia próprias.

A bem da verdade, estamos assistindo a uma atualização da fracassada política externa dos tristes e descalços tempos do neoliberalismo da década de 1990, que, ao buscar a chamada “autonomia pela integração”, conseguiu apenas mais dependência, menos integração e protagonismo reduzido. Apostando fortemente nas relações bilaterais com os EUA e na integração à modernidade globalizante da pax americanna, nos tornamos um país menor, de escasso prestígio mundial, além de economicamente dependente e débil.

Foi nessa época que nos desarmamos, atendendo às pressões da “comunidade internacional” (EUA), abrimos nossa economia sem maiores critérios e nos submetemos aos desígnios da única superpotência do planeta. Não chegamos ao ponto da Argentina, que conseguiu a proeza de ter “relaciones carnales” com os EUA, mas chegamos perto. Nossa soberania foi bastante bolinada.

No cômputo geral, todo esse disciplinado investimento vira-lata em dependência, combinado com a âncora cambial, resultou, como assinalado neste texto, em déficit comercial total de US$ 8,6 bilhões em 8 anos, reservas líquidas de minguados US$ 16 bilhões, dívida externa líquida de 37% do PIB, uma participação no comércio mundial de mero 0,9 %, três idas ao FMI para pedir alívio financeiro e um baixo protagonismo internacional.

Em compensação, nos tempos da política externa “altiva e ativa”, (“ideológica, bolivariana e isolacionista”, segundo os arautos do neoliberalismo tardio), acumulamos um superávit comercial de US$ 312 bilhões (até 2014) e reservas líquidas de US$ 375 bilhões, eliminamos nossa dívida externa líquida, nos tornamos credores internacionais, inclusive do FMI, aumentamos nossa participação no comércio mundial para 1,46%, em 2011, e obtivemos protagonismo mundial inédito, com Lula se convertendo numa liderança internacional cortejada e respeitada. Nunca uma política externa “ideológica e isolacionista” rendeu tanto, em termos concretos e pragmáticos.

Agora, no entanto, tenta-se o retorno à mesma política externa fracassada. Há, porém, uma grande diferença. Na época de FHC, o mundo vivia o auge do paradigma neoliberal. O Consenso de Washington dominava corações e mentes. A queda do Muro de Berlin era uma memória muito recente. A Rodada do Uruguai do GATT e a criação da OMC tinham acabado de ocorrer. As autoridades europeias e os representantes do Departamento de Estado norte-americano estavam empenhadíssimos na abertura comercial e financeira em todo o mundo, que era socada goela abaixo dos países em desenvolvimento. Os EUA exerciam liderança praticamente inconteste na ordem mundial marcada pelo unilateralismo belicista. Ademais, a economia e o comércio internacional iam de vento em popa, com pequenos sobressaltos causados por crises regionais e locais autocontidas.

Porém, hoje o mundo vive a pior crise econômica desde a Grande Depressão de 1929. Crise profunda, sistêmica e duradoura causada justamente pela desregulamentação neoliberal, que aprofundou desigualdades e fez colapsar as economias reais. O Consenso de Washington tornou-se um anacronismo político. A outrora pujante OMC é hoje uma instituição de utilidade duvidosa. A liderança antes inconteste dos EUA atualmente convive com a ascensão meteórica do BRICS e com fraturas entre seus aliados históricos.

Assim, a ordem mundial é hoje muito diferente e muito mais complexa que a ordem que prevaleceu na década de 1990, quando os ideólogos do “fim da História” proliferaram como fungos. Além disso, está claro que o novo governo norte-americano e alguns governos europeus não têm mais o menor interesse em promover livre comércio ou desregulamentação de regras, em suas relações com países em desenvolvimento.

Dessa forma, a tragédia de ontem se repete hoje como farsa.

Há também o sério agravante do comprometimento da imagem do Brasil pelo golpe. De modo compreensível, ninguém quer estabelecer contatos amplos com golpistas que substituíram uma presidenta honesta pela “turma da sangria”, entalada em denúncias de corrupção. O fato concreto é que o golpe isolou o Brasil. O grande fiador internacional do golpe, os EUA, agora tem uma administração hostil às ideias de seus novos chanceleres.

Por isso, ao longo de sua temerária gestão, os chanceleres do golpe só conseguiram expulsar ilegalmente a Venezuela do Mercosul, brigar com o pequenino Uruguai e distribuir golpes contra a Unasul, o Mercosul, a Comissão de Direitos Humanos da OEA e países “bolivarianos”. Dedicados à defesa indefensável do golpe e empenhados na venda do patrimônio nacional, fizeram do Brasil um país pequeno e menor.

O pior é que, além de não conseguir maior integração com EUA e aliados, a política externa do golpe pretende destruir importantes vertentes da nossa inserção internacional, como o Mercosul e a integração regional, com prejuízos gravíssimos para o país.

d) O Papel Estratégico da Política Externa na Restauração do Neoliberalismo

As novas diretrizes econômicas e políticas regressivas, que conduzem a implantação de num modelo ultraneoliberal no Brasil, foram gestadas internamente e, por isso, poderiam ser revertidas por um governo popular, nacional e progressista. Contudo, é necessário estar atento a estratégias destinadas a “blindar” tais escolhas.

Todos sabem que as políticas internas influenciam a condução da política externa. Mudanças no governo produzem, com frequência, câmbios significativos na inserção internacional do país. Ao contrário do algumas vezes que se diz, a identificação dos “interesses nacionais” que conduzem a política externa se dá, numa democracia, com base em eleições, não em castas burocráticas. Mudando-se as condições internas, a política externa muda também, até mesmo porque, num país e num mundo em transformação, políticas externas imutáveis seriam extremamente ineficientes. Isso é bastante óbvio.

O que não é óbvio é o outro lado da moeda: a política externa e a inserção internacional do país também condicionam fortemente a condução das políticas internas. Na realidade, em alguns casos, a política externa pode criar balizamentos estreitos e irreversíveis para a condução das políticas internas. Pode até impedir, ou tornar muito difícil, a implantação de políticas autônomas relativas ao desenvolvimento científico e tecnológico, ao desenvolvimento industrial e ao desenvolvimento econômico como um todo. Pode criar novas formas de dependência relativas ao capital financeiro internacional. Pode até mesmo criar obstáculos intransponíveis à implementação de algumas políticas de cunho social, como as relativas à saúde pública.

Em síntese, a política externa e a forma de inserção no cenário mundial podem contribuir fortemente para tornar o Brasil, de novo, um país periférico, deitado eternamente no leito de Procusto das políticas neoliberais amigáveis ao capital mundializado, que geram mecanismos de dependência de difícil reversão, uma vez sedimentados em tratados internacionais.

Assim como golpes de Estado substituem a soberania do voto popular pela vontade de maioria parlamentares circunstanciais, uma política externa de país periférico pode substituir a soberania do Estado-Nação pelos interesses de nações hegemônicas e pelos ditames do capital internacional.

O grande golpe contra a democracia pode ser construído no cenário externo, pelos mecanismos aparentemente neutros e “técnicos” dos compromissos internacionais.

Em caso extremo, não haveria mais espaços para decisões políticas internas importantes que se mostrassem contrárias a esses interesses, e os pleitos democráticos seriam, na prática, mero exercício fútil de cumprimento de formalidades.

Com efeito, a maneira mais eficiente de blindar uma opção econômica e política contra a soberania popular é consagrá-la em compromissos internacionais.

É melhor até do que inscrevê-la na Constituição.

O Congresso Nacional pode modificar a Carta Magna por decisão de três quintos de seus membros. Mas o Congresso Nacional não pode denunciar acordos internacionais, uma vez ratificados. Essa é uma prerrogativa exclusiva do presidente da república. Além disso, retirar-se de um acordo internacional de peso é muito complicado.

Esses acordos, especialmente os de livre comércio, criam interesses e compromissos de reversão muito difícil, mesmo para países poderosos. Está aí o exemplo de Trump, que tenta fazer malabarismos para voltar a proteger a economia norte-americana. Está aí também o exemplo do Brexit, que vai suscitar forte retaliação da União Europeia.

O quadro é muito pior para países em desenvolvimento, com menor poder de barganha. O México, por exemplo, selou seu destino quando assinou o NAFTA. Ao fazê-lo, e ao celebrar também vários outros acordos de livre comércio, o México comprometeu-se definitivamente com o neoliberalismo e chutou a escada de seu próprio desenvolvimento. Quaisquer que sejam os governos eleitos naquele país, eles ficam manietados pelas cláusulas liberais desses atos internacionais. O espaço decisório interno para políticas públicas, especialmente para políticas econômicas, políticas de desenvolvimento, políticas de industrialização e políticas para a promoção da ciência e da tecnologia, fica consideravelmente reduzido.

No caso do Brasil, a adesão acrítica a esses acordos ou mesmo a acordos bilaterais de livre comércio com os EUA, que têm cláusulas muito semelhantes, implodiria o Mercosul e a integração regional, tornaria inútil a nossa participação no BRICS e inviabilizaria a vertente Sul-Sul da nossa política externa. Voltaríamos a ter uma política externa dependente, periférica, que orbitaria em torno dos interesses da única superpotência do planeta e de seus aliados tradicionais.

No plano geopolítico, perderíamos protagonismo regional e, principalmente, mundial, revertendo o ganho diplomático evidente que obtivemos, nos governos do PT.

No plano econômico e comercial, após uma provável euforia inicial causada pela abertura irrestrita da economia, teríamos o esfacelamento de vastas parcelas de nosso setor produtivo, principalmente em nossa indústria e nosso setor de serviços, déficits comerciais crescentes e, sobretudo, incapacidade do Estado em implantar políticas relativamente autônomas de desenvolvimento, de industrialização e de ciência e inovação, entre outras.

O dano maior, contudo, seria à democracia, pois, uma vez que a opção pelo neoliberalismo tardio ficar cristalizada em acordos internacionais, será difícil revertê-la por iniciativas internas emanadas do nosso sistema político. Ficaríamos dependentes dos “direitos” e interesses dos investidores internacionais.

Ficaríamos numa posição parecida à do México, que aderiu a todos os acordos de livre comércio existentes e comprometeu-se, já no início da década de 1990, com as cláusulas limitantes do NAFTA. Naquele país, os inevitáveis efeitos negativos da integração tão assimétrica com a maior economia mundial e com outras economias de ponta se tornaram cada vez mais evidentes.

Houve substancial esfacelamento da estrutura produtiva nacional. Muitas empresas mexicanas não conseguiram sobreviver à concorrência da produção industrial dos EUA, muito mais moderna e eficiente. Outras tantas foram compradas a baixos preços por grupos econômicos norte-americanos. Na área agrícola, o NAFTA gerou insegurança alimentar. O México, que era exportador de grãos, no período pré-NAFTA, passou a importá-los dos EUA em sua quase de totalidade. Tal processo de destruição das culturas agrícolas familiares se deu inclusive no que tange ao milho, base da alimentação e culinária mexicanas. Hoje em dia, o milho utilizado no México é quase todo colhido nos EUA, que subsidia fortemente a sua produção.

Nos primeiros 10 anos deste século, o PIB per capita (PPP) do México cresceu somente 12%, bem abaixo do que cresceu o do Brasil (28%). As famosas “maquiladoras” criaram somente 700 mil empregos no período mencionado, ou cerca de 35 mil ao ano, número ridículo, quando se leva em consideração que, nesse intervalo de tempo, ao redor de 1 milhão de mexicanos entraram todos os anos no mercado de trabalho. O resultado é que os salários dos mexicanos não aumentaram.

Cerca de 75% das exportações mexicanas são compostas por insumos importados. Dos US$ 400 bilhões que o México exporta anualmente, cerca de US$ 300 bilhões são meras exportações de importados, o que explica a falta de geração de empregos no setor manufatureiro e o desestímulo a novos investimentos. Ou seja, trata-se de exportações que não têm um impacto significativo na cadeia produtiva nacional. É uma espécie de enclave econômico, que gera pouco valor, poucos empregos, e nenhuma tecnologia. Para completar, 51% da população mexicana vive hoje abaixo da linha da pobreza, segundo algumas estimativas. Não é um bom exemplo para o Brasil.

Muito embora a perspectiva de o Brasil ingressar em acordos de “nova geração” seja remota, face ao atual protecionismo dos EUA e outros países desenvolvidos, a anunciada adesão do país à OCDE também teria efeitos semelhantes.

De fato, o governo do golpe já anunciou seu novo grande trunfo para comprometer-se internacionalmente com a agenda neoliberal: aderir à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), organização que reúne 35 países, a grande maioria nações plenamente desenvolvidas, com algumas exceções, como México e Turquia, por exemplo. É também conhecida como o “Clube dos Ricos”. Seu objetivo político e econômico fundamental é o de promover as virtudes da “economia de mercado”, que ela associa indissoluvelmente à “democracia” e aos “direitos humanos”.

Assim, trata-se de uma organização comprometida com os valores, os princípios e as teses neoliberais, bem como com o funcionamento desregulado do capitalismo financeirizado, tal qual convém a um “Clube dos Ricos”.
Saliente-se que a anunciada adesão do Brasil à OCDE, se concretizada, não virá de graça. A OCDE só aceitará o Brasil após uma avaliação rigorosa de suas políticas e de suas práticas. Caso julgue necessário, a OCDE demandará as devidas correções de rumo.

Por conseguinte, essa adesão formal ao “Clube dos Ricos” significa, do ponto de vista político e diplomático, que o Brasil renuncia definitivamente a sua política externa anterior e se submete aos desígnios estratégicos dos EUA e aliados e às demandas do mercado financeiro globalizado. Com tal adesão, o Brasil sinaliza ao mundo que abre mão de ser um líder mundial dos países sem desenvolvimento. Sinaliza que renuncia as suas parcerias estratégicas com países emergentes. Mostra que abre mão de um papel de relevo no BRICS. Sinaliza que renuncia a ideia de ter um espaço próprio e independente no concerto das nações. Na realidade, essa adesão ao “Clube dos Ricos” é uma capitulação política e diplomática.

Razão tinha De Gaulle, nacionalista convicto, defensor da grandeza da França, que afirmou que a “política mais ruinosa é a de ser pequeno”.

Quem pratica política de país pequeno acaba ficando pequeno.


1. A Política Externa de Lula da Silva: A Estratégia da Autonomia pela Diversificação*. Tullo Vigevani** e Gabriel Cepaluni***

PT Cast